Conhecida pela tira cómica que focava uma comunidade lésbica urbana (Dykes to Watch Out For,1983-2008), em 2006 Bechdel surpreendeu com Fun Home, uma narrativa sobre a sua vida familiar. O sucesso da obra alicerça-se, não só nos diversos temas fortes, mas na precisão cândida e cirúrgica com que são abordados. O fulcro de Fun Home é a figura do pai da autora. Homossexual não assumido, Bruce Bechdel ter-se-á suicidado ao sentir desmoronar a fachada que, ao longo dos anos, se esforçara por manter numa pequena comunidade dos EUA onde a sua família vivia há gerações. Pelo menos é esta a posição defendida em Fun Home. Estamos pois em presença de uma narrativa autobiográfica de cariz arqueológico; utilizando a memória familiar Alison Bechdel tenta desconstruir o modo como o pai ergueu a sua elaborada mentira, e, também, fazer luz sobre a sua própria vida. Fun Home tece por isso variações sobre dois temas fundamentais: isolamento e identidade. No primeiro, à componente física semirrural da cidade onde a família vive junta-se o isolamento individual dos seus membros. No segundo, a ligação entre pai e filha é clara, não apenas em termos de orientação sexual, mas enquanto luta constante de afirmação, seja através da renovação de casas antigas (pai) seja através do desenho (filha), tendo como ponto de contacto as referências que partilham. É impossível não correlacionar o pormenor do traço e a pesquisa quase obsessiva da autora, com o rigor que o seu pai colocava nos trabalhos de decoração e restauro, ou na gestão da vida familiar, que o dito traço ilustra.
O estilo realista, detalhado e preciso de Bechdel, e o modo como deliberadamente define cada vinheta e página enquanto cenário, sublinha o tom metódico da narrativa, fazendo uso de representações para criar uma narrativa/análise feita de aproximações constantes a realidades difíceis, sejam essas representações óbvias ou sublimadas, literais (espelhos, fotografias, cartas) ou simbólicas, com recurso a referências visuais, mas sobretudo a citações literárias (Proust, Colette, F. Scott Fitzgerald, James Joyce) e académicas (Benjamin Spock, dicionários/enciclopédias), nas quais a autora também (se) reflete. Em Fun Home há uma procura constante de sentido, criando um retrato poderoso de um tempo e de um modo de vida, e de como os transcender.
Este último aspeto sugere pontos de contato com outra excelente BD publicada recentemente, Blankets de Craig Thompson. E não só porque o sucesso de ambas desaguou em “sequelas” lógicas, mas problemáticas (Habibi e Are you my Mother?). Mas sobretudo por via das leituras alternativas possíveis. Por exemplo, que Fun Home é um livro narcisista e pornográfico na devassa que faz aos que rodei(ar)am a autora, criando retratos subjetivos que não têm contraditório; que a sua leitura é fascinante porque (também) voyeurista, como parar para ver um acidente na estrada; que, por muito que reivindique tentativas de entendimento, a autora nunca resiste a vincar a sua superioridade moral e intelectual em relação a ambos os progenitores, quanto mais não seja porque saiu enquanto eles ficaram, falou quando eles calaram. À parte o último desses pontos, estas não me parecem as abordagens mais úteis, mas não seria correto não as referir. Ainda mais do que Blankets (houve aliás uma tentativa para banir ambos de bibliotecas públicas no Missouri) este é sobretudo um livro que não deixará leitores indiferentes.
Fun Home: Uma tragicomédia familiar. Argumento e desenhos de Alison Bechdel. Contraponto, 238 pp., 16,80 Euros.