O relógio bate quase as cinco e meia da tarde. Em Paris, a primavera decidiu chegar um dia mais cedo e, nas margens do Sena, dezenas de grupos de todas as idades brindam aos raios de sol que tocam a superfície das águas, multiplicando-se em reflexos brilhantes.
Luísa, Manuel, Francisco e Gabriel caminham através da margem direita do rio a passo apressado. Dentro de meia hora, na L’Atlas Galerie des Mondes inaugura-se Lisboa Não Sejas Francesa, exposição coletiva da qual os quatro fazem parte, pensada para promover o intercâmbio artístico entre Lisboa e Paris e o diálogo intercultural.
A galeria localiza-se no bairro La Felicité, ironia que faz sorrir ao observarmos o entusiasmo com que os artistas caminham e conversam. Francisco pisa a capital francesa pela primeira vez na vida, Gabriel recorda as férias de família passadas neste local e Manuel, que chegou um dia antes dos outros, conta a Luísa que o espaço da galeria é espetacular.
Estão felizes. Não só porque estão prestes a mostrar o seu trabalho em Paris, numa exposição patente até 17 de maio, mas também porque a mostra foi especificamente pensada para dar a conhecer artistas portugueses ou residentes em Portugal ao público francês.
Em Paris pela mão de Ben Gonthier, dono da galeria que os representa em Lisboa, a Foco, os quatro sublinham a forma rara como este se bate constantemente por novas oportunidades para os “seus” artistas, como se de família se tratasse.
Uma exposição, 13 artistas
Poucos minutos antes das seis, chegamos à L’Atlas. Nas janelas de vidro, o famoso refrão de Amália Rodrigues acolhe-nos num reconfortante português. O título faz-nos sorrir, até porque Ben é francês. Porém, “além de se ter mudado há 11 anos para Lisboa e ter aprendido perfeitamente português, criou esta galeria através da qual nos tem dado tantas oportunidades”, sublinha Luísa.
“É uma pessoa especial”, corrobora Manuel. De facto, Ben poderia ter escolhido trazer apenas um ou dois artistas, mas quis dar oportunidade aos 13 que representa, assumindo, para isso, também o papel de comissário da exposição. “Queria que houvesse uma identidade forte, um fio condutor e uma história a contar, em vez de uma simples justaposição de obras”, explica.
Através dos trabalhos de Luísa Salvador, Márcio Vilela, Clara Imbert, Gabriel Ribeiro, Manon Harrois, Francisco Trêpa, Nádia Duvall, Mia Dudek, Maria Appleton, Manuel Tainha, Hugo Cantegrel, Pauline Guerrier e Rodolfo Quintas, artistas portugueses ou a viver e a trabalhar em Portugal, Lisboa Não Sejas Francesa apresenta uma narrativa ligada a Lisboa e ao nosso país, com reflexões sobre a sua geologia e luz, a relação da cidade com o mar, a noção de domesticidade e a inovação digital.
À entrada, encontramos logo a obra de Luísa, O luto das pedras, uma espécie de enorme pergaminho preenchido de cima abaixo com o próprio título, desenhado numa caligrafia sulcada através de camadas de acrílico e pastel de óleo.
Refere-se a uma instalação, apresentada nos Açores, composta por peças de cerâmica a imitar fósseis, as quais, passados três dias, haviam desaparecido do local onde se encontravam expostas.
Apresentada há pouco mais de um mês em Retomar o Passo, exposição individual da artista, na Foco, a obra faz parte de “um tríptico de pergaminhos que perpetua obras que desapareceram”.

A sala começa a encher-se com os primeiros convidados. Gabriel explica a alguns deles que os quatro cianótipos nos quais criou um delicado jogo entre luz e bagos de uva em várias fazes de deterioração, são um prelúdio da exposição que apresentará brevemente.
Já Francisco encontra um casal de colecionadores de Lisboa, que o abraçam efusivamente. Mostra-lhes uma das suas criaturas de cera e cerâmica, seres híbridos que não pertencem exclusivamente ao mundo real nem ao mundo onírico e que, no último ano, lhe valeram o Sovereign Portuguese Art Prize e um lugar entre os finalistas da 15ª edição do Prémio Novos Artistas Fundação EDP.
Recordar Lisboa em Paris
A energia é vibrante. Há portugueses que vieram de propósito de Lisboa, outros que moram em Paris e aproveitam a ocasião para rever amigos e conhecidos. O mesmo acontece com os franceses. Quem “perdeu” para Lisboa os amigos artistas vem agora vê-los expor na cidade natal, pela mão de uma galeria lisboeta.
O público, composto por, além de amigos e conhecidos, jovens estudantes de arte, antigos secretários de estado da Cultura, diplomatas, galeristas, colecionadores, programadores culturais e artistas, circula entre os dois andares da galeria e o pátio onde se brinda com minis e vinho da região de Lisboa especialmente vindo do O Pif, um bar localizado nos Anjos, em Lisboa.

No primeiro andar, Teresa, uma jovem de 19 anos que acabou a Escola Artística António Arroio há um e chegou a Paris há meio, para estudar moda, aponta para uma boia de cerâmica montada sobre rodas e afirma: “Esta obra já a vi em Portugal, naquela galeria do teu amigo”.
A obra é Every man for himself, de Hugo Cantegrel, e a “galeria do amigo” é o espaço Ostra, na Ajuda, um local onde artistas e curadores de vários países podem expor e dialogar sobre arte, do também artista Bartolomeu Santos, talvez a personificação mais perfeita da expressão Lisboa Não Sejas Francesa.

Em dias de inauguração, para as quais os convites são sempre escritos à mão, Bartolomeu tem um alguidar de plástico cheio de gelo à porta da galeria com vinho e cervejas, copos de papel e um sistema “bem desenrascado” para nos servirmos de água, encaixado entre as barras de segurança das janelas da cave ocupada pela galeria.
Contar a quem nos ouve que uma inauguração como as da Ostra é algo que aquece a alma a um português é trazer para dentro da L’Altlas mais uma face de Lisboa. Da mesma forma que o é quando refiro que Hugo é também o dono da Mono, um espaço cultural na Penha de França que tem a varanda com a melhor vista da cidade.
“Quando forem a Lisboa passem por lá”, ouço-me dizer, enquanto penso que estou a fazer um convite para um lugar que, não sendo meu, nesta noite é mais meu do que de quem nunca bebeu um copo naquela varanda cor de ocre, com a Graça a desdobrar-se toda aos nossos pés até ao rio.
Matéria e ideias
Junto da obra de Hugo, encontram-se duas telas de Manuel Tainha. Desde a última vez que o JL escreveu sobre uma exposição do artista, Abalo, na Galeria Plato, em Évora, realizada precisamente há um ano, Manuel alterou levemente a forma como aborda a matéria.
Nessa altura, trabalhando com químicos e com a reação destes sobre o tecido, o processo de criação passava mais por subtrair do que por adicionar, tendo feito agora exatamente o oposto.
O caráter irreplicável, quase sagrado, de um momento fugaz, mas intenso, bem como “a tentativa constante de congelar processos intermédios” e “agarrar a ideia da memória, revivê-la”, ainda estão lá, porém, agora, materializam-se na adição de camadas de tinta e pigmento de cobre.
A poucos metros de distância, também a instalação têxtil suspensa de Maria Appleton joga com a sobreposição de camadas, ainda que, neste caso, sejam de tecido, linhas, luz e fotografia.
“A obra faz parte de um grupo de trabalho que se chama unperceptibles, corpos difíceis de visualizar e de difícil compreensão, tal como a informação que circula de forma descontrolada em relação às experiências do agora, situações que são físicas”, explica a artista.
Abrir-se ao mundo
À medida que a noite avança, as minis acabam e o horário de fecho da galeria se aproxima, é tempo de rumar de novo às margens do Sena. Sentados em bancos corridos e abençoados com uma temperatura primaveril, os que decidiram ficar conversam um pouco sobre tudo.
Os artistas e Ben brindam ao sucesso da inauguração. Fala-se da possibilidade de voltarem para conversas e conferências, de quem se mostrou interessado no trabalho de quem, fala-se de Lisboa debaixo de um temporal e das mensagens que de lá chegam.
O grupo de artistas que Ben Gonthier levou a Paris é um retrato de Lisboa atualizado a 2025. São aqueles que vivem e criam na cidade. Os que são de cá e os que de cá querem muito ser
É que, dos 13 artistas, mesmo os que não são portugueses parecem sê-lo. Trocaram a sua cidade natal por Lisboa de forma verdadeira. Com a ousadia de mergulhar, para o bem e para o mal, no tecido social e cultural da capital. Sofrem as suas dores e comentam-nas com o mesmo fervor de quem nasceu alfacinha.
Do corte de jacarandás para dar lugar a um parque de estacionamento ao terror infundido que se tenta associar a zonas da cidade onde muitos têm estúdios e ateliers.
As amizades procuraram-nas entre portugueses, resistem à tentação de sair apenas com grupos de expats e de usarem o inglês como língua preferencial de comunicação.
“Olha lá”, “pois”, “portanto”, “na boa”, não são expressões que se aprendam num dicionário. Vão-se ganhando à mesa de restaurantes, de cigarro na mão à porta de galerias e museus em dias de inauguração, em residências artísticas, numa ida à praia ou num daqueles dias que todos tentamos evitar na loja do cidadão.
O grupo de artistas que Ben Gonthier trouxe a Paris é um retrato de Lisboa atualizado a 2025. São aqueles que vivem e criam na cidade. Os que são de cá e os que de cá querem muito ser.
Avançam ainda para o bar restaurante Le Connectable, antes de rumar a casa, a dois passos do Centro Pompidou.
As poucas horas que os separam da aurora são ocupadas a trocar opiniões sobre o sistema artístico português, a imaginar um país com políticas culturais mais interessantes, a tecer elogios rasgados a Ana Jotta, cuja exposição individual se inaugura no dia seguinte também em Paris, e à verdade com que esta trabalha a matéria e se relaciona com o mundo.
LISBOA NÃO SEJAS FRANCESA. Sê portuguesa dentro e fora de Portugal, ruma a Paris e mostra-te. Numa galeria, nas margens do Sena, numa conversa tida, às cinco e meia da manhã, entre portugueses, franceses, italianos e brasileiros.
LISBOA NÃO SEJAS FRANCESA. Podem parecer poucos, mas há estrangeiros que ainda te querem portuguesa, com os teus, sons, cheiros, ritmos, “manias” e, sobretudo, com as tuas gentes.
Aquelas gentes que, como partilha Luísa, consideram-te testemunha do que vivem e sentem diariamente, palco de histórias e detalhes que as fazem “escrever, pensar, e cristalizar todos esses momentos”.
LISBOA NÃO SEJAS FRANCESA., tu és portuguesa. Só que agora… já não és só para nós.