Serralves, 10 de julho de 2024. As viagens no tempo têm muitas formas de acontecer. Milão, Amado Mio – Atti Impuri, 1982. O essencial é manter viva a memória. Lisboa, Poetas de Sodoma, 1923. Riscá-la nos muros, gritá-la nos palcos, celebrá-la e mostrá-la, dando mesmo uma festa em sua honra.
Serralves, 10 de julho de 2024. As portas do salão da casa cor-de-rosa abrem-se de par em par para o jardim, repleto de convidados. Ao centro da sala, num enorme charriot redondo, repousam dezenas de casacos de cabedal nos quais foram bordadas referências a eventos, livros, artistas, pensadores, realizadores e escritores, de Pasolini a António Botto e Derek Jarman, entre muitos outros.
A festa está montada e as memórias convocadas. Sob o olhar atento dos convidados, os do jardim e os dos casacos, João Pedro Vale (JPV) e Nuno Alexandre Ferreira (NAF) trocam alianças, escrevendo mais um capítulo na história da Casa Vale Ferreira, que trazem agora a Serralves, numa mostra antológica de 25 anos de trabalho, com curadoria de Inês Grosso, patente até 17 de novembro.
Do casamento que acabou de acontecer sobreviverá uma placa comemorativa, eco da “performance” de uma vida, a qual ficará exposta na fachada da capela da Casa de Serralves, nos próximos meses, rebatizada Casa Vale Ferreira. É que, por mais anos que passem e por mais voltas que o Mundo dê, JPV e NAF continuam a usar o “criticismo, algum cinismo e muito humor” para questioná-lo.
A ironia refinada é cunho identitário da dupla, há 25 anos a desenhar-nos sorrisos na cara através de obras mordazes, que, colocando-nos frente a frente com a realidade, têm-nos feito refletir sobre temas tão variados quanto a identidade nacional, a dignidade humana, as relações interpessoais e as ideias preestabelecidas necessárias, ou não, ao funcionamento do sistema social.
A viagem através da carreira dos dois artistas tem início precisamente em The Tearoom, a instalação composta pelos blusões de cabedal personalizados com referências a personagens (que já tenham morrido), eventos ou lugares do imaginário queer com influência direta no trabalho de JPV e NAF.
“As pessoas são convidadas a fazer parte da peça, vestindo um casaco à sua escolha enquanto vêm a exposição, acabando por realizar as suas próprias performances, ao circularem pelo espaço, a ver os casacos que os outros têm vestidos, ao mesmo tempo que também são vistas por eles”, explica NAF. “É como se, através do público, a própria obra contaminasse o resto da casa”.
Do salão aos quartos, sala de leitura, biblioteca, cozinha, jardim e capela, a dupla tomou de assalto o espaço e povoou-o com uma fotografia bem tirada daquilo que tem sido a sua prática artística.
Com trabalho realizado em áreas tão distintas quanto a escultura, instalação, vídeo, fotografia e performance, as obras expostas em Serralves, à exceção de The Tearoom, idealizada de raiz para a exposição, são reinterpretações das originais ou vestígios de performances realizadas no passado.
É o caso, por exemplo, da reprodução do interior de um navio, a qual, apesar de à primeira vista parecer, nas palavras dos artistas, “uma reconstrução de um museu etnológico”, foi o cenário utilizado em Hero, Captain and Stranger, simultaneamente um filme pornográfico gay e uma adaptação curta e livre de Moby Dick, resultante de uma residência artística realizada em Nova Iorque, em 2009, cuja estreia ocorreu no mesmo ano, no antigo Cine Paraíso, em Lisboa.
“O espaço é perfeitamente inócuo, a sugestão faz o resto”, comenta JPV. A sugestão está presente um pouco por toda a casa, vibra em cada divisão, dando corpo a uma exposição “eminentemente performativa”.
O convite não é direto, mas está lá palpitante. É praticamente impossível resistir à tentação de pegar num dos balões vazios, onde se lê Get a Voice, que repousam junto de uma botija de hélio, enchê-lo e inspirar o gás que se encontra no seu interior, recriando, inconscientemente, a performance homónima que, em 2002, a dupla realizava em parceria com Ana Pérez Quiroga.
Da mesma forma, o conceito de casa não se quer literal. Por vezes, surge de forma mais evidente, na relação das peças com o espaço, como acontece com as reproduções, em pratinha de chocolate, de algumas jóias do Tesouro Nacional, expostas no quarto da condessa, ou a edição de 12 mil garrafas das Milagrosas Águas de São Bento, espalhadas pela cozinha.
Mas também metaforicamente, como em Vadios (palavra utilizada na lei de Julho 1912 que penalizava a homossexualidade), réplica de um urinol de rua, coberto de inscrições manuais de excertos de textos de Raul Leal, António Botto, Almada Negreiros e outros escritores que, ao longo do século XX, fizeram referências explícitas ao tema da homossexualidade, que se encontra instalada na antiga sala de leitura da condessa.
“Estivemos sempre rodeados de pessoas, do Manuel Reis ao Julião Sarmento, que nos ensinaram que as coisas fazem-se coletivamente, […] que sozinhos podemos ser o que quisermos, mas somos só para nós e isso não chega”
Acima de tudo, foge-se da ideia de domesticidade. Casa não são quatro paredes, não é um quarto onde se dorme e uma sala onde se janta. São sim os que dormem no quarto e os que são convidados para jantar na sala.
É sentido de pertença: a uma comunidade, um ideal, um grupo de amigos, uma família, uma mão cheia de memórias.
Casa é vínculo e relação com as obras, o espaço, o público, o passado, o presente, com 25 anos de trabalho e colaboração artística.
“É um espaço seguro, uma comunidade, uma família que não é família de sangue, mas um grupo de pessoas cuja afinidade está relacionada com uma ideia de proteção mútua”, sublinham os artistas que, sobretudo desde 2008, dedicam declaradamente o seu trabalho a temáticas queer, “a uma comunidade que já foi hiper-marginalizada, que era expulsa de casa ou mal tratada pela própria família”.
Casa são ainda os poucos que, ao percorrer as divisões da Casa Vale Ferreira, conhecerão as histórias por detrás de cada obra, pois delas também fizeram parte.
São os que, ao entrarem no escritório e virem Toro, uma cortina de veludo amarela e encarnada, lembrar-se-ão dela à entrada do LUX, bem como da festa “Malícia no País das Maravilhas” durante a qual, vestidos de forcados, com sapatos de salto alto, JPV, NAF e mais seis artistas e amigos apresentaram pela primeira vez Festa Brava, uma “pega” a quem subia a escadaria principal da discoteca lisboeta.
Casa é, sublinha NAF, “uma comunidade que te ajuda, suporta e legitima”, algo que a dupla nunca perdeu de vista ao desenvolver os seus projetos artísticos. “Estivemos sempre rodeados de pessoas, do Manuel Reis ao Julião Sarmento, que nos ensinaram que as coisas fazem-se coletivamente, que é preciso chamar toda a gente, porque não se consegue fazer nada sozinho, que é preciso um coro que te empurre, que te meta à frente, que sozinhos podemos ser o que quisermos, mas somos só para nós e isso não chega”, acrescenta JPV.
Na Casa Vale Ferreira as portas estão abertas a todos os que quiserem entrar, ser mais do que convidados, assumirem-se como agentes ativadores das obras, capazes de fazer reverberar as ideias e histórias invisíveis nelas contidas, renovando a sua leitura até que, junto delas, se sintam em casa.
[casa] é um espaço seguro, uma comunidade, uma família que não é família de sangue, mas um grupo de pessoas cuja afinidade está relacionada com uma ideia de proteção mútua
joão pedro vale + nuno alexandre ferreira
Recordar o passado em Serralves
Jornal de Letras – Ao fim de 25 anos, tiveram de olhar para trás e reler o vosso trabalho. Houve surpresas?
Nuno Alexandre Ferreira (NAF) – Acho que não. Apesar de sermos peritos em fazer desvios, somos um bocadinho obsessivos, é como se houvesse sempre uma linha de pensamento continua, com as mesmas preocupações, talvez um pouco mais densas, porque os contextos vão mudando, bem como a situação política e social. As coisas hoje não são vistas como eram há 20 anos.
João Pedro Vale (JPV) – O nosso trabalho é muito colaborativo, tanto nas nossas obras como nos momentos em que chamamos pessoas para mostrarem o seu trabalho no nosso atelier, por exemplo. Eu pensava que isto tinha começado a acontecer mais a partir de 2009, quando estivemos em Nova Iorque e depois quando começamos a colaborar com o Teatro Praga, mas ao olhar retrospetivamente percebemos que não, que tinha estado sempre lá.
E relativamente aos temas que levantam? As obras continuam a ter a mesma capacidade de agarrar as pessoas que tinham há 25 anos?
NAF + JPV – Hoje em dia, as pessoas já estão mais habituadas e têm mais ferramentas para falar sobre determinadas temáticas, mas gostámos de perceber, olhando retrospetivamente para o nosso trabalho, que estas questões foram pertinentes na altura e continuam a ser pertinentes hoje. É que temos quase 50 anos e, ainda que de uma forma diferente do que acontecia aos 20, continuamos a ter de justificar a nossa própria homossexualidade
Fazer esta leitura foi uma experiência emotiva?
JPV – Sim, porque faz-te pensar em memórias e em todas as pessoas que já fomos. Um bocadinho como As Horas, em que a Mrs Dalloway é sempre a mesma personagem, mas com várias vidas, tudo isto que se repete. Nós os dois, a Casa Vale Ferreira, já fomos muitas coisas.
E o facto de misturarmos a vida com o trabalho é algo que queremos que continue, que seja sempre possível, independentemente do formato em que as coisas possam ser apresentadas. Fazer arte não é quando o objeto está feito, mas sim quando está em vias de acontecer.
Como é que decidiram quais as obras mais adequadas para ilustrarem estas vossas vidas na exposição?
NAF – É sempre uma conversa, uma negociação com a curadora. Já tínhamos feito uma exposição grande com a Inês Grosso em 2019, no maat, além de a conhecermos desde 2009. No processo da escolha de obras a dificuldade maior é a questão da criação de um discurso, de ir vendo umas a seguir às outras e de que forma é que isto interfere no resultado final.
Porque não há um percurso especifico neste caso?
JPV – Acaba por haver. É o da arquitetura da casa. Não há uma sequência de salas obrigatoriamente específica, mas começa-se cá em baixo, com os blusões, e depois segue-se o percurso da casa, vai-se avançando ao longo das divisões, podendo-se escolher se se vai logo ao primeiro andar e depois à cave ou vice-versa.