A coluna de sobreviventes que fez 400 quilómetros desde a antiga Nova Lisboa chega a Caimbando, perto de Cubal, na linha da frente. Onde estão os portugueses? Pergunta sem resposta: não se encontram nem entre os mortos que jazem na picada, nem entre os moribundos e estropiados. Estão desaparecidos. Trinta portugueses deviam chegar nesta vaga de gente faminta. De mais uma centena de outros compatriotas, nem rasto.
Ouvimos gente a gritar por socorro, mas passámos como se nada fosse. Vínhamos tão mal que chegámos a isto: não poder dar a mão a quem está a morrer ao nosso lado. No caminho, vimos corpos putrefactos, de pessoas mortas talvez há três dias. Olha-se e passa-se», conta o major Revolução.
Acompanhado pelo capitão Jorge N’Tiamba, aquele militar acabara de chegar a Caimbambo, vindo do Huambo. Para trás tinham ficado cerca de 400 quilómetros percorridos a pé por montanhas e rios, sob emboscadas frequentes da UNITA. O major recorda: «Também vimos muitas crianças abandonadas. Os pais, exaustos e sem força, veem-se obrigados, primeiro, a deitar fora as trouxas e, depois, a deixar os filhos que já não conseguem carregar. Tentei trazer uma criança às costas, mas ela faleceu passados oito, dez quilómetros.»
A terrível batalha de 56 dias, na capital do Planalto Central angolano, obrigara os dois oficiais desmobilizados das antigas FAPLA a voltarem à guerra, na área da antiga Nova Lisboa. Perguntamos em que estado ficou a cidade. «No Huambo, a arquitetura portuguesa sofreu sérios estragos», respondeu o capitão N’Tiamba.
A coluna de retirada do Huambo, após a vitória do movimento de Jonas Savimbi, em 6 de Março, totalizava sete a oito mil pessoas, um terço das quais eram militares governamentais. Dez famílias portuguesas, com uma trintena de elementos, seguiram nesta longa marcha. Hoje, a coluna não existe. A perseguição e os ataques movidos pela UNITA fragmentaram a sua estrutura inicial em grupos que vagueiam errantes pela mata, além de provocarem numerosos mortos e feridos. Os helicópteros de evacuação das Forças Armadas angolanas enfrentam grandes dificuldades operacionais, por ser a época de chuvas.
ESPECTRO DA MORTE Em Caimbambo, um ponto minúsculo no mapa da província de Benguela, aonde nenhum jornalista português conseguira chegar, encontramos milhares de sobreviventes da fuga,exaustos e esfomeados. Esperavam um sopro de vida, masencontraram o espetro da morte. Nada foi preparado para os receber.
Uma só refugiada trouxe pela mão sete meninas e meninos do Huambo, recolhidos pelo caminho. Com a raiva que lhe restava, um homem mostrou-nos uma das crianças: olhar parado, corpo inerte, lábios esbranquiçados.
«Foram quinze dias a pé, a subir essas montanhas, quase sem comer, debaixo de fogo da UNITA. Muita gente ficou no caminho, morreu de fome. Chegámos aqui há quatro dias e só hoje (sábado, 20) nos dão este bocado de comida».
Um grupo de refugiados lutava encarniçadamente, um pouco atrás, pelas pequenas quantidades de fuba e peixe que eram distribuídas. Nem a notícia da próxima chegada de uma coluna de 30 camiões do Programa Alimentar Mundial, das Nações Unidas, oriunda de Benguela, fez diminuir a indignação dos refugiados. Eles protestavam contra o mercado que, num ápice, fora criado ali perto, com comida açambarcada, que lhes era destinada. «Um quilo de fuba custa 25 contos nessa praça e nós não temos dinheiro».
Alguns nem pararam. Preferiram andar mais 116 quilómetros, até Benguela. À chegada, darão graças a tudo, mesmo a uma boneca da sorte que alguém levou pendurada num fio, ao pescoço.
Em Caimbambo, ouviam-se, a espaços, rajadas de metralhadoras. A escassos quilómetros, no Cubal, as Forças Armadas e a UNITA combatiam pela conquista da cidade. Soldados governamentais feridos iam chegando. O «hospital» nem sequer tem condições para funcionar como um simples posto de primeiros socorros.
ESPERA DESESPERANTE Entre a comunidade portuguesa de Angola, a angústia é enorme. Pelas informações do consulado em Benguela, mais de cem portugueses viviam no Huambo, nas semanas que antecederam a batalha. Passados mais de oito dias sobre o início da chegada dos primeiros refugiados, apenas a transmontana Bernardete da Conceição Carneiro apareceu, com três dos seus cinco filhos.
Há uma semana. Francisco Borges, funcionário daquele consulado, dizia-se convencido de que portugueses começariam a ser localizados, nas horas seguintes. Isso não aconteceu. As expressões da vice-cônsul, Isabel de Sousa, e dos dois funcionários, Borges e o jovem António Almeida, reflectiam, dia após dia, uma inquietação crescente. «Mas onde é que eles estão?» Em Caimbambo não estavam.
Vários deslocados confirmam a morte de Jorge Dias, empresário de camionagem, e dos seus familiares, todos assassinados dentro de casa. O acto é atribuído às forças de Jonas Savimbi. Também se receia que o casal Gerardo — António Luís e Maria José — tenha tido o mesmo fim. Preocupante é a suspeita de que Elias e Alice Cardoso, de 78 e 60 anos, terão tentado o percurso da fuga, levando consigo dois netos pequenos.
Oficialmente, nada se confirma ou desmente sobre a situação dos portugueses. Mas saem do Huambo informações para o exterior, através da Igreja, da Cruz Vermelha e de alguns particulares. Há, assim, conhecimento de que alguns portugueses foram contratados pela UNITA como motoristas, na cidade do Planalto Central.
Bernardete Carneiro dá testemunho do que sabe: «O filho do sr. Pereira, que vendia peixe junto do palácio do governador, disse-nos, mesmo no local onde os helicópteros do governo nos recolheram, que o pai e os irmãos tinham sido mortos pela UNITA. Na casa em que a minha família se refugiou, no bairro de S. Pedro, controlado pelo governo, estavam outros portugueses: o sr. Manecas, massagista do Mambroa, um clube de futebol, a D. Fernanda, o sr. Cardoso, o sr. Rodrigues, a D. Lurdes… Ao todo,
éramos uns nove portugueses nessa casa. Quando me despedi deles, para ir para um carro onde não cabia mais ninguém, começaram a chorar. O sr. Manecas disse: “Prefiro matar-me aqui, mas daqui não saio”. Consta que foi assassinado. Se por acaso tiveram tempo de sair de S. Pedro, estão a caminho. Se não…»
As instalações católicas e protestantes foram «duramente atingidas» no decorrer dos combates, mas ninguém consegue, ainda, fazer uma estimativa das perdas sofridas.
Conhece-se, no entanto, um outro caso: três portugueses — António Manuel Caseiro, Eduardo Dinis Chaves e Quintino Feliciano Pereira — refugiaram-se na Missão do Cubal, quando as tropas do governo recuperaram a cidade à UNITA. Foram acusados de colaboração com o movimento de Savimbi. Posteriormente, os homens do Galo Negro bombardearam a Missão. E deixou de haver informações sobre aqueles portugueses.
A esperança vai sendo alimentada, desesperadamente, por familiares e amigos dos desaparecidos e por diplomatas. Todos recordam o exemplo de Marcolino Moko, primeiro-ministro angolano, natural do Huambo. Julgava que a família fora dizimada mas, na semana passada, quando visitou Benguela, descobriu um irmão, entre os refugiados
O menino que fugiu dos mortos
A portuguesa Bernardete reencontra o filho, muitos dias perdido na mata
Ao ver os cadáveres, desatou a correr e desapareceu na mata. Era de madrugada e o pequeno Mário, de 8 anos, acompanhava a família em fuga do Huambo para Benguela. De repente, o grupo avistou vários corpos espalhados pelo terreno, O miúdo não aguentou mais e fugiu. Só no dia 13 deste mês foi recolhido por um helicóptero do governo angolano e transportado, são e salvo, para o aeroporto militar da Catumbela. A mãe, Bernardete da Conceição Carneiro, 38 anos, natural de Mirandela, chegou três dias depois. O reencontro deu-se à entrada de um pavilhão do Hospital de Benguela, onde Bernardete fora imediatamente internada. Ela tinha os pés e as pernas em chaga. Mesmo assim, levantou-se da cama e arranjou-se o melhor que pôde. Quando surgiu na varanda, ainda se penteava. E chorava. Abraçou e beijou o filho Mário, sempre num silêncio contido. O miúdo tinha os olhos pregados no chão. Estava em estado de choque. No seu rosto não transparecia qualquer emoção. Mas deu ao irmão mais novo, José Henrique, de 5 anos, o apito que trazia ao pescoço. E beijou quase a medo a irmã, Ana Isabel, de 6 anos. Passada meia hora, junto da cama da mãe, Mário daria as primeiras duas notícias: “Dormi numa montanha”; “o meu casaco encarnado escapou.”
Bernardete, que assistiu a dois partos durante a penosa caminhada, sempre sob o fogo da UNITA, incluindo de “rockets”, perdeu um bebé de 8 meses. “Morreu à fome”, disse-nos. Um outro filho, Eduardo Ilídio, 11 anos, ficou para trás e, até segunda-feira, 22, continuava perdido. O marido, o inspector Ilídio, da Polícia do Huambo, também está na mata, ferido com duas balas numa perna e estilhaços no pé esquerdo, desde 10 de Fevereiro. Bernardete quer regressar, de vez, a Portugal, depois de 19 anos em Angola. ‘Vou só esperar pelo meu marido e tenho esperança que o meu Eduardo volte.’
E verdade que foi feliz no Huambo. ‘Mas agora não tenho nada, nem uma colher já tenho para comer.’
Quem a olha mais fixamente é um agente da UNITA. Quando o telefone toca, é a UNITA a tentar localizá-la. Vive aterrorizada por causa do movimento de Savimbi, e já teve um problema cardíaco.
Em pleno mato, a portuguesa ajudou a angolana Albertina Maria, 23 anos, a dar à luz dois gémeos. Os bebés morreram pouco depois, à fome e à chuva. Informámos Albertina, deitada numa cama, em casa de amigos, no Lobito, de que Bernardete reencontrou o filho, Mário. A angolana, muito afectada física e psicologicamente, abriu-se num sorriso: ‘Se não fosse a Dona Bernardete, que nos deu comida, a minha irmã e eu não tínhamos resistido.»