É um dos arquitetos mais respeitados da nossa praça, com projetos emblemáticos como o Palácio de Estói, no Algarve, o Museu Nacional Machado de Castro, em Coimbra, ou as torres Estoril-Sol Residence, junto à marginal de Cascais. Premiado dentro e além-fronteiras, Gonçalo Byrne, de 79 anos, tem em mãos uma tarefa ainda mais ambiciosa: como candidato à presidência da Ordem dos Arquitetos, cujas eleições irão decorrer em junho, cabe-lhe dignificar uma profissão que, apesar do estatuto, é das mais precárias da sociedade portuguesa. Frontal, o arquiteto aponta ao dedo ao poder central que tem estimulado e perpetuado esta situação, que poderá ser agravada com a pandemia.
De que forma o confinamento vai levar as pessoas a repensarem o espaço que habitam?
As pessoas ficaram confinadas às suas habitações em situações completamente anómalas e, nessa retenção forçada, começaram a perceber que a casa tinha outras dimensões de que, até então, não se apercebiam. Algumas passaram a valorizar as janelas viradas a sul, que permitem que o sol entre dentro de casa; outras lamentaram ter a casa atulhada de muitas coisas, que confinaram ainda mais o seu espaço. E depois há ainda as outras, famílias em que se inclui o casal já de certa idade que acolhe o filho, a nora e um neto ou dois, e ali têm de viver todos, porque o casal mais jovem não consegue encontrar habitação acessível, pois o Estado se demitiu olimpicamente de investir neste tipo de construção e delegou na banca. Para estes, o confinamento é ainda mais complicado. E se, por acaso, uma pessoa adoecer dentro de casa e não for para hospitalização, será que tem sequer um quarto com WC incorporado para fazer ali uma quarentena como deve ser? A Constituição consagra o direito à habitação para toda a gente, mas quem tem vindo a gerir isso, nos últimos 40 anos, tem sido a banca, com os resultados que estão à vista.
Na crise anterior, muitos arquitetos emigraram. Que escapatória há com esta nova recessão?
Na outra crise, o impacto económico foi muito forte nos países meridionais, da coroa mediterrânica, mas a economia dos países ricos continuava a funcionar e com força. Agora esta crise também está a abalar a economia dos países mais ricos, é transversal. Portanto, se houver uma diáspora, a pergunta é: para onde? Mas não quero cair no discurso quase monocórdico e quase unânime de que vamos todos sucumbir… Também quero acreditar que, apesar de tudo, as coisas estão a acontecer, que, desta vez, a Europa vai ser mais Europa, que a Troika não vai voltar e que a austeridade será gerida de outra maneira, apesar das dissidências. E o Governo português tem estado empenhadíssimo.
Num estudo da Ordem dos Arquitetos, concluiu-se que Portugal é o segundo país com maior número de arquitetos per capita da Europa, ganhando apenas dois terços do que os licenciados portugueses de outros cursos…
A partir do final dos anos 80, houve uma explosão de licenciaturas e apareceram mais de 20 faculdades de Arquitetura privadas ou universidades com cursos de Arquitetura – com uma grande concorrência entre as próprias escolas para aumentarem o número de alunos. Isso levou a um crescimento muito grande de licenciados, o qual, à dimensão de Portugal, criou esse rácio que, ainda assim, está muito longe, por exemplo, do da Itália. Lembro-me de que, há cerca de 20 anos, a Itália tinha mais estudantes de Arquitetura do que a Europa toda junta! Isso provocou imensos problemas, uma enorme diversificação, a qual, de resto, também acontece em Portugal: temos imensos arquitetos que estão a fazer coisas que têm alguma relação com a arquitetura, mas que não são propriamente projeto. De qualquer maneira, com a crise de 2008-2009, a frequência em Arquitetura nas faculdades baixou radicalmente, ao ponto de várias privadas terem encerrado e de algumas públicas terem reduzido também o número de estudantes.
Como se consegue solucionar a questão da precariedade, dos falsos estágios, para que haja uma justa remuneração?
A questão da justa remuneração na arquitetura é muito pertinente e é preciso analisar o efeito-cascata… A Administração Pública instituiu uma série de regras para a contratação dos serviços de projetistas, não só de arquitetura mas também de engenharia. Curiosamente, dentro dos vários modelos de concurso, aquele que é usado até à exaustão é o do concurso de aquisição de serviços pelo mais baixo preço. E esse preço mais baixo que tinha ainda uma barreira de um valor predeterminado que permitia um desconto até 50% (que já era muito grande), neste momento nem sequer essa limitação do desconto tem. Isto quer dizer que esta regra, que eu chamo um “resquício da Troika” e que é claramente um resquício do pensamento neoliberal europeu, fez com que a aquisição destes serviços – e estou a falar do setor público – funcione, literalmente, como uma simples compra de batatas!
Como assim?
A crise é de tal maneira grande que há grupos – muitas vezes até nem são ateliers de arquitetura, são grupos de projetistas que se organizam a partir de um gabinete de mediadores e de orçamentistas – que fazem preços de concorrência completamente inviáveis dentro de um patamar mínimo de qualidade. Dou-lhe um exemplo recente: um gabinete ganha um concurso com um preço, neste caso um preço por hora, anormalmente baixo. E o encomendador, porque a lei assim o permite, pediu uma justificação, pois achava que o preço era anormalmente baixo. E uma das justificações apresentadas foi: “Porque pagamos mal aos nossos colaboradores!”. Isto, aparentemente, até ficou escrito. Ora bem, quando se chega a este estado, percebe-se um pouco do que se passa. Este caso nem é muito significativo, mas revela um estado generalizado de esmagamento e de desentendimento sobre o que é a prestação dos serviços de arquitetura. Há uma autoridade que defende estes princípios da adjudicação aos custos mais baixos, e eu não entendo como a concorrência se remete exclusivamente às questões financeiras…
Assistiu a este tipo de situações?
O meu atelier cresceu muito, sobretudo nos anos 90, graças aos concursos públicos, de aplicação dos fundos europeus. Na altura, obrigavam a fazer concursos, mas eram concursos públicos de arquitetura, não eram adjudicações de batatas! Toda a legislação que se desenvolve a partir dos anos da Troika para a contratação pública é uma legislação que regulamenta os vários tipos de concurso – e devo dizer que alguns até estão bem regulamentados –, só que são pouquíssimos os que utilizam esse mecanismo. Isto porque quer as autarquias, quer o Estado, quer o Governo, tendencialmente, vão pela solução mais óbvia que é a atribuição do trabalho exclusivamente pelo custo mais baixo. Se um quartel tiver de adjudicar o fornecimento de batatas vai decidir pelo preço mais baixo, mas sempre pode fiscalizar a qualidade das batatas – apesar de tudo não as compra se elas estão podres. Mas, aqui, para a prestação de serviços de arquitetura, não há qualquer controlo de qualidade.
Quais são as consequências?
Há consequências que podem ser resultantes de soluções construtivas também elas muito pragmáticas e muito primárias, do ponto de vista da performance e, depois, da qualidade do edifício. Mas há outras que são mais difíceis de avaliar: a qualidade espacial, da luz, da térmica, etc. Ou seja, o desempenho destes edifícios. A outra consequência que é muito imediata é a erosão acelerada desse edifício, porque este, se for feito utilizando materiais mais pobres e soluções mais expeditas, obviamente ao fim de quatro anos já está a precisar de uma pintura, os isolamentos já não serão suficientes…
E como é no setor privado?
O setor privado vai atrás e ainda esmaga mais os preços. Mas quem abre esta porta é o setor público.