Com apenas 40 anos, arrecadou agora o Prémio BIAL de Medicina Clínica, no valor de 100 mil euros, por uma investigação em que revela que certas regiões do cérebro são afetadas de maneira diferente pelas várias proteínas tóxicas responsáveis pela doença de Alzheimer. Este é um estudo que abre caminho para um diagnóstico mais precoce e melhores tratamentos para a patologia degenerativa mais prevalente em Portugal e no mundo. Só quem não conhece o médico e investigador Tiago Gil Oliveira é apanhado de surpresa: aos 26 anos, ele já liderava uma pesquisa sobre o papel dos lípidos no cérebro, na aprendizagem e na memória, e em doenças neurodegenerativas e psiquiátricas. Na entrevista que se segue, dá-nos conta de grandes novidades – há uma nova terapêutica para o Alzheimer que, se for aprovada pela Agência Europeia de Medicamentos e pelo Infarmed, “representará uma revolução no nosso Sistema Nacional de Saúde”, como diz, sendo que a sua investigação a complementa na perfeição.
Em pequeno, se lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande, o que respondia?
Jogador de xadrez.
E levou esse desejo avante, chegou a competir?
Sim. Até participei em campeonatos nacionais. Mas depois os estudos e o meu trabalho de investigação científica acabaram com o jogador de xadrez.
Se não fosse isso, acha que chegaria a xadrezista profissional?
Não. Não era jogador para esse nível.
Quando fez a escolha da Medicina?
Foi no Ensino Secundário. Gostava de Matemática, Química, Biologia, Física… Além do mais, era um curso que me permitia fazer uma escolha num grande espectro de possibilidades. As especialidades médicas são muito diferentes umas das outras, e tinha tempo para poder pensar no que queria mesmo ser. Isso foi algo que me agradou no curso de Medicina e que me levou a escolhê-lo.
Acabou por escolher a especialidade de Neurorradiologia. Porquê?
Tive esse clique numa fase muito precoce do curso, o de ter encontrado uma especialidade em que iria sentir-me realizado. Ser neurorradiologista é ter a possibilidade de olhar para o interior das pessoas, estudar essa neuroanatomia e aplicá-la na compreensão de como isso tem impacto no que as pessoas são e nos seus comportamentos. E também percebi muito cedo, no curso, que o estudo do cérebro me fascinava.
E quando começou a sério a sua carreira de investigador?
Nesses termos, embora já viesse de trás, nos períodos extracurriculares do curso – o meu primeiro artigo científico, por exemplo, é da área do cancro –, iniciou-se quando tive a sorte de estar no momento certo, à hora certa e no lugar certo.
Como assim?
Foi quando abriu o Programa MD/PhD, na Escola de Medicina da Universidade do Minho, inovador em Portugal. Esse programa tem parcerias com a Universidade Columbia, em Nova Iorque, e a Universidade Thomas Jefferson, em Filadélfia. Os estudantes que entram nesse programa podem ir para uma universidade ou para a outra. Interrompi então o curso de Medicina no 5º ano e fui três anos para a Universidade Columbia fazer o meu doutoramento. Nesse período, de 2007 a 2010, só pensei em investigação, e tinha de escolher um tema. Escolhi estudar Neurociências e também uma doença que afetasse muitas pessoas e que estivesse relacionada com o cérebro. Decidi então estudar a doença de Alzheimer.
Escolha ousada, essa…
Escolhi esse tema de forma um pouco ingénua, embora achasse que era uma boa oportunidade de aprendizagem. Mas, ao fim de um mês de estar no laboratório, percebi que tinha um grande desafio em mãos. Dentro das diferentes questões que se podia abordar, decidi estudar o metabolismo e a função dos lípidos no cérebro, uma área nessa altura subexplorada. Integrei a equipa de investigação do meu orientador de doutoramento, o professor Gilbert Di Paolo. Foi mesmo muito difícil, porque tive de estudar toda aquela biologia complexa, algo que não tinha aprendido no curso. Mas foi um desafio que me fez crescer, sempre com a ideia de trazer essa experiência de volta para Portugal, não só ao nível da formação médica, mas também dos conhecimentos que adquiri numa universidade como a Columbia, das melhores do mundo em Neurociências.
O que se seguiu?
Regressei à Universidade do Minho para fazer o ano, o 6º, que me faltava para concluir o curso, e para depois defender a minha tese de doutoramento. Entretanto, candidatei-me a um financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia, que consegui e me permitiu arrancar com a investigação. Na altura, tinha 26 anos e foi uma grande oportunidade para começar a montar as minhas linhas de investigação e pôr em prática as minhas ideias. Estava numa fase precoce da minha carreira, mas abracei este desafio com grande motivação para concretizar os ensinamentos que trazia dos EUA, juntando-me às equipas de Neurociências do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde, da Escola de Medicina da Universidade do Minho, e ao meu co-orientador de doutoramento, o professor Nuno Sousa. Tive de começar a decidir como iria integrar a investigação com a prática médica, porque ainda estava a acabar o curso.
E ainda lhe faltava fazer a especialidade…
Fiz a especialidade em Neurorradiologia enquanto geria, em paralelo, uma equipa de investigação em ciência fundamental, ou seja, usando modelos animais, para tentar perceber o papel dos lípidos na aprendizagem e na memória, e em doenças neurodegenerativas e psiquiátricas. Só depois de acabar a especialidade, em 2018, é que comecei a integrar as abordagens por ressonância magnética nas minhas linhas de investigação. Agora, a minha investigação é integrada, não só com a ressonância magnética, mas também com os doentes. Em paralelo, elementos da minha equipa – no total, são cerca de 20 – trabalham mais em modelos fundamentais, inspirados pelas ideias que vêm da prática clínica.
Na doença de Alzheimer, vejo a longo prazo algo que pode evoluir de modo parecido com a forma como lidamos com a hipertensão arterial
Qual é o atual estado da arte médica em relação à doença de Alzheimer?
Temos hoje uma muito maior compreensão da doença do que tínhamos há 30 anos, por exemplo. Hoje sabemos que a doença de Alzheimer é secundária à acumulação de proteínas tóxicas específicas no cérebro, que são o peptídeo amiloide. Formam-se placas de amiloide no cérebro, e as acumulações tóxicas da proteína tau originam os emaranhados neurofibrilares. Estas duas características patológicas são as que definem a doença de Alzheimer. Conseguimos identificar estas alterações já depois de os doentes falecerem. É claro que isto não ajuda nada – o doente já faleceu e dizemos que teve Alzheimer. Mas, por outro lado, é a confirmação científica.
Como se faz o diagnóstico da doença em pacientes ainda vivos?
Ao longo dos anos, tem-se desenvolvido uma série de estratégias para conseguir identificar evidência de que aquelas acumulações estão a ocorrer no cérebro do doente. E isso é feito através do estudo dos biomarcadores. Estes biomarcadores podem ser de fluidos do corpo. Por exemplo, o fluido que recobre o sistema nervoso central, que é o líquido cefalorraquidiano. O estudo da composição desse líquido permite detetar alterações moleculares que indicam que estas patologias estão a ocorrer, e com isso temos uma alta probabilidade de diagnosticar a doença de Alzheimer quando o paciente ainda está vivo. A outra hipótese é a de análises de imagem cerebral, em que, com os estudos de PET, tomografia por emissão de positrões, conseguimos detetar as acumulações, ou das placas de amiloide ou da patologia da proteína tau.
E há notícias de novas terapêuticas?
Há. Um tratamento farmacológico para remover as placas de amiloide do cérebro destes doentes já foi aprovado nos EUA, no Reino Unido, no Japão, na Coreia do Sul e na China, entre outros países. São dois medicamentos, produzidos por duas farmacêuticas diferentes, que dão um nível de proteção e de redução da taxa de diminuição da cognição ao longo do tempo e que oferecem mais anos de vida às pessoas, com a cognição mais preservada. É a primeira resposta em muitos anos que temos na Medicina para oferecer aos doentes, para retardar o aparecimento dos sintomas. E isso decorre da remoção das placas de amiloide do cérebro.
Em que situação se encontra a autorização de uso clínico desses medicamentos na União Europeia?
Estão agora em avaliação para aprovação pela Agência Europeia de Medicamentos [EMA]. Devo dizer que há efeitos secundários que têm de ser muito bem monitorizados. Nem todos os doentes podem usufruir destes potenciais fármacos. Daí ainda estarem em avaliação na EMA, a que se seguirá o escrutínio do Infarmed.
Mas, quanto ao Infarmed, será só uma formalidade…
Não é linear. Pode demorar algum tempo. Não quero dar isso como garantido. Acho que devemos seguir os passos todos, porque, como se imagina, este é um tratamento muito caro. Mas, caso seja aprovado, representará uma revolução no nosso Sistema Nacional de Saúde.
Quem é que vai usufruir destes fármacos?
Há um grande volume de pessoas que têm de ser avaliadas, para se saber se os tomam ou não. E é neste preciso ponto que a investigação da minha equipa, na minha opinião, pode contribuir imenso na identificação dos doentes que vão potencialmente beneficiar mais destes tratamentos e dos que não vão beneficiar tanto. O que também indica que temos de fazer mais e identificar outras estratégias terapêuticas alternativas para os doentes que, muito provavelmente, não vão beneficiar destes novos tratamentos.
Qual é o efeito secundário mais temido nestas novas terapêuticas?
É um efeito secundário que chamamos de anomalias imagiológicas relacionadas com amiloide. Identificamos estas anomalias por ressonância magnética. São dois tipos de alterações que estão relacionados com a inflamação do cérebro, num caso, e, no outro, com a deposição de resíduos de hemossiderina, secundários a pequenas hemorragias. Neste contexto, usamos a ressonância magnética para verificar se estas alterações estão a ocorrer. E, se estiverem a acontecer, temos de interromper a medicação, caso o nível das alterações seja grave. Por isso, sublinho que é preciso monitorizar com muito cuidado estes doentes, se estiverem sob as novas medicações.
Em relação a esta nova terapêutica, enquanto médico, no caso de os fármacos em questão serem aprovados, diria que um doente, para deles beneficiar, tem de apresentar um qualquer sintoma, para então ser estudado?
Isso é algo que está em ativa discussão na comunidade médica. Será que, para abordar a doença de Alzheimer, basta demonstrar que existe a evidência do tipo da patologia no cérebro, antes de os sintomas aparecerem? Ou tem de haver alterações do comportamento ou cognitivas para se dizer que a pessoa tem Alzheimer? Esta é uma questão que não está completamente clara na comunidade médica, porque, tendo a patologia no cérebro, isso não garante que o indivíduo irá ter alterações cognitivas. Um dos aspetos que estudámos, assim como outras equipas no mundo, foi o de perceber quais é que são as pessoas e os fatores inerentes a essas pessoas que contribuem para alguns indivíduos serem resistentes à doença de Alzheimer. Porque é que alguns têm neurodegeneração e outros não. Daí que ter a patologia da doença de Alzheimer pode não significar que os défices cognitivos apareçam. No entanto, há uma outra corrente – e eu, enquanto médico e cientista, estou aberto a tentar perceber qual pode ser a melhor opção para os doentes no futuro – que propõe que se iniciem os tratamentos o mais precocemente possível e mal exista uma evidência suficiente de que há patologia relacionada com as acumulações de amiloide no cérebro. Ou seja, que se comece de imediato o tratamento para remover essas acumulações, de modo a prevenir que contribuam para a neurodegeneração e, eventualmente, para alterações cognitivas. Mas o que tem sido proposto é que tem de haver algum grau de alteração cognitiva, para que se iniciem estes tratamentos. Foi também este o método usado nos ensaios clínicos. Está em aberto, porém, a hipótese de se alterar esta visão e começar mais precocemente.
Para qual das propostas, neste momento, se inclina mais?
Inclino-me mais até para outra hipótese, que é a de não nos focarmos só numa terapêutica. Devemos investir, enquanto comunidade médica e de investigação, na procura de uma gama de terapêuticas para diferentes alvos, e que possam contribuir para a proteção em relação à doença de Alzheimer. Acho que estes anticorpos têm um papel importante, mas devemos ter em consideração outras estratégias.
Daí que eu e a minha equipa estejamos a focar-nos na procura de perceber que outros fatores podem conferir proteção ao cérebro.
Uma dessas estratégias poderá ser a manipulação da composição dos lípidos do cérebro.
E como pode ser feita essa manipulação?
Pode ser feita, por exemplo, com estratégias farmacológicas em que manipulamos as enzimas que regulam os lípidos do cérebro. Podemos também contribuir para essas alterações da composição dos lípidos, por exemplo, através da dieta. Precisamos de preparar uma gama de soluções, porque, como a nossa investigação está a demonstrar, outras copatologias, que ocorrem no cérebro, podem ter um papel de sinergia com a doença de Alzheimer, levando a mais neurodegeneração. A doença de Alzheimer é uma patologia mais complexa do que aparentava ser há uns anos.
Vê a longo prazo um cenário clínico em que a doença de Alzheimer deixe de ser tão prevalente como é hoje em Portugal e no mundo?
Vejo a longo prazo algo que pode evoluir de modo parecido com a forma como lidamos com a hipertensão arterial. No caso da hipertensão arterial, temos um modo de medir a patologia com um biomarcador específico, a medição da pressão arterial, e com isso podemos intervir ainda antes de as consequências dessa hipertensão arterial afetarem as diferentes partes do corpo, incluindo alterações cerebrovasculares.
Como já hoje se faz, em função de cada um dos doentes institui-se uma estratégia terapêutica diferente. Em algumas situações até se prescreve mais do que um tipo de anti-hipertensor, conjugando-se diferentes anti-hipertensores para se obter o resultado pretendido. Vejo o futuro do tratamento da doença de Alzheimer indo um pouco nesta direção, em que vamos compreender a grande diversidade de subtipos dentro da patologia e adequar as terapêuticas com maior precisão para cada um destes subtipos.
