Fecha-se o romance Os Dias do Ruído (D. Quixote, 264 págs., €17,70) e desejamos o silêncio. A cacofonia das redes sociais é, aqui, ensurdecedora e certeira – para nós e para a sua protagonista. Laura, fotojornalista de guerra, tornou-se notícia planetária ao matar um terrorista e impedido um atentado num café de Paris. O estatuto de nossa senhora de todos os scrolls, paixões, comentários e ameaças de morte, é um vício. David Machado, 47 anos, autor de romances, contos e livros infantis, multipremiado e publicado em mais de 20 países, domina a narrativa com mão inspirada. Mas soluções milagrosas, para o mundo filtrado por Instagram, Facebook e companhia, não é o seu objetivo. Escritor que quer denunciar as redes sociais? “Hoje queremos que alguém diga uma frase que solucione tudo. Agora, serei eu com este livro que vai finalmente salvar os nossos jovens! Mas não sou eu e o meu livro que vamos acabar com as redes sociais… E eu espero que nenhuma literatura seja uma denúncia: a literatura é apenas um ponto de partida para pensarmos e sentirmos”, afirma, sereno.
A protagonista de Os Dias do Ruído é uma fotojornalista. Este romance é uma fotografia do mundo atual?
Para mim, não. Porque essa ideia de captar o mundo contemporâneo numa única imagem não faz sentido: o mundo é tão complexo, tão contraditório, tem tantas nuances, que fazer uma “fotografia” nunca será um retrato fiel. Deixamos sempre muitas camadas de fora. Aliás, é o que acontece hoje: estamos, finalmente, a olhar por outro prisma para a História da Humanidade, e começamos a perceber que as questões raciais, ou as respeitantes às mulheres, não foram tratadas de uma certa maneira pelos historiadores. E não é que estes tenham feito um mau trabalho, simplesmente produziram esse retrato em que muito ficou excluído. Mas, lá está, eu não acho que a literatura sirva para fazer um retrato real, no sentido de englobar toda a realidade. Ela vai ao encontro da verdade, mas não de toda a verdade: isso seria um trabalho megalómano e impossível de concretizar.
Que fios o puxaram a criar esta tapeçaria narrativa sobre as redes sociais?
A distância entre o mundo atual, subjugado às redes sociais e à Internet, em relação à literatura e à arte em geral, ou seja, um mundo muito rápido e muito imediato, e que não exige profundidade a ninguém. Nas redes sociais, ninguém precisa de refletir ou aprofundar nenhum tema, porque o que é mais imediato será sempre vencedor, e o mais fácil de entender terá mais passagem para a plateia do que aquilo que é complexo e exige uma explicação mais longa. Essa distância criou-me, nos últimos anos, um enorme desconforto. Também porque tenho filhos adolescentes [13 e 15 anos] com quem temos conversas profundas e complicadas ao jantar e em viagens, e apercebo-me de que eles, muitas vezes, não encontram depois espaço na realidade para aplicar esse olhar sobre as coisas.
Escolher a “profundidade de campo” é fundamental?
Exatamente. Eu escolhi passar a minha vida a aprofundar a minha visão sobre as pessoas e sobre a realidade, e não ir à procura de conclusões universais e inequívocas. Escolhi ir em busca das nuances, dos cinzentos, em vez do que é preto ou branco. Passo os meus dias a pensar, a ler, a escrever. Mas também a ouvir música, a ver cinema, a ir ao teatro, e tudo isso proporciona uma camada de profundidade e de subjetividade em relação ao mundo que, para mim, é superinteressante. Se calhar tenho muito azar, mas não encontro isso quando abro o Facebook… Estou a exagerar, obviamente, porque sei que há muita gente por esse mundo fora que procura essa reflexão mais lenta e mais profunda. Mas aquilo de que as redes sociais vão à procura, através do algoritmo, não é isso.
Há quem defenda o lado pedagógico das redes sociais: ficar a saber que existem as ideias, os projetos, um autor chamado David Machado…
Não concordo nada com essa visão. É verdade que a informação está muito mais acessível e é mais vasta do que era há 20 ou 30 anos. Mas o meu problema não é com a quantidade, é com a qualidade dessa informação. Se eu abrir as redes sociais, encontro as notícias da guerra, da política. Está lá tudo. Mas como posso eu saber realmente o que se passou hoje na Ucrânia através de um post de duas frases? Não é possível. Vou ficar com uma ideia simplista e muito aquém da realidade. E nas redes sociais essas frases pequenas são sempre as que terão mais sucesso se forem trabalhadas de uma forma extremada, ou seja, que proporcionem o extremismo: com aquela frase determinante arrumamos o assunto. E arrumarmos o assunto da guerra na Ucrânia com uma frase é completamente absurdo!
“No planeta virtual há sempre indignação”, escreveu. É a vaidade de achar que as nossas opiniões ao minuto são essenciais?
Temos uma necessidade enorme de nos sentirmos validados, de que não estamos a perder tempo nesta vida, que estamos a ir pelo melhor caminho. E a nossa opinião é uma parte do que somos. Se alguém tem uma opinião diferente da nossa, isso põe-nos em causa: “Afinal, aquilo que eu sou está errado, perdi um bocadinho de mim…” Enfim, isto é tão primitivo e tão infantil. Hoje, o mundo complexificou-se imenso, precisamente porque os seres humanos aprenderam a pensar e a ir por caminhos diferentes. Se algumas dessas ideias nos chocam, ainda bem: fazem-nos refletir, adaptarmos as nossas ideias uns aos outros. Mas essa intenção só acontece se houver tempo e disponibilidade para nos ouvirmos. Na Internet, essa disponibilidade não existe, até por uma razão muito simples: não nos estamos a ver uns aos outros. Geneticamente, os seres humanos aprenderam que funcionam melhor se virem o rosto do outro. Só o facto de não nos olharmos, olhos nos olhos, cria barreiras, suscita desconfiança, elimina a empatia. Face àquilo que nos chega através das redes sociais, só queremos reagir. O ator somos nós.
Tem expectativas de que o livro faça eco nos adeptos das redes?
Não sei se vai ter. Mas não posso pensar nisso quando escrevo. Agora, seria mais interessante que chegasse a leitores com redes sociais do que a alguém que não tem essa experiência. Mas isto não existe, pelo menos aqui na Europa. Mesmo quem não está nas redes sociais, está em contacto com elas: a forma como os jornais dão as suas notícias, hoje em dia, está formatada, e é alimentada pelas redes sociais… Mas eu espero sempre que os meus livros, incluindo as obras infantis, provoquem alguma reflexão.
No meio de tanta contaminação das redes há “saídas de emergência”?
Às vezes, também caio na tentação de pensar: “Estamos perdidos.” Mas consigo dar sempre um passo atrás e ver as coisas de outra maneira: “Nós não somos a primeira geração que passa por crises, económicas, sociais, filosóficas, culturais… A Humanidade vai avançando e adaptando-se.” Esta crise, porque é uma crise, preocupa-me no sentido de que está a acontecer muito rapidamente e não temos tempo para pensar sobre o que estamos a fazer mal e a fazer bem. Mas as coisas vão acontecendo. Por exemplo, eu acredito que, daqui a uns anos, vamos olhar para trás e rir da ideia dos miúdos todos terem telemóveis na escola. Tal como hoje nos rimos quando pensamos que, há umas décadas, os miúdos podiam fumar nas escolas. Ridículo!
Como é que se liga o alarme?
Há uma parte que podemos ir resolvendo através de decisões de grupo, por exemplo do Estado. Mas as pessoas têm de ter liberdade. Nas redes sociais, podem gritar tudo o que lhes apetecer, e é muito difícil impedir alguém de as ouvir. Mas o problema é estarmos todos com tanta avidez em querer ouvir tudo. Isto é só ruído… Preocupa-me é que, ao estarmos tanto tempo a fazer scroll down nas redes sociais, não estejamos a fazer outras coisas que nos completam mais, que vão fazer subir o nosso índice de felicidade. Porque quando chegarmos ao final do mês, do ano, da vida, ninguém vai pensar no pequeno vídeo do Instagram…
Laura redime-se, mas o romance evita armadilhas como a de a ver como completamente boa ou má…
Lá está, isso não me interessa nada. Essa premissa é tão absurda, tão infantil: é muito mais interessante perceber como, dentro da mesma pessoa, coexiste o bem e o mal. Teria sido uma perda de tempo escrever sobre uma personagem e a sua relação com estas redes sociais e achar que ela estava ou só refém das redes ou completamente ativista contra estas. Eu próprio tenho redes sociais: passo tempo a fazer scroll down, caio na tentação do vício, e já me arrependi de algum comentário que fiz. O importante é aprendermos com esses arrependimentos. Mas é isso que me incomoda nas redes: as pessoas escreverem como se estivessem do lado certo da moral.
Um dos parágrafos do romance que mais reações provoca respeita à questão de um comentador de TV dinamarquesa: “Considerando a história colonialista dos últimos séculos, uma mulher branca tem o direito de matar um homem muçulmano, mesmo que este se prepare para cometer um ato de terrorismo?” Onde se vai buscar um fio de prumo moral?
Não podemos estar reféns de um grupo de pessoas, muitas vezes pequeno, mas que fala muito alto. Mas há sítios onde os assuntos podem ser aprofundados, refletidos, discutidos. Quando aconteceu a pandemia, ninguém estava a contar que as pessoas que nos podiam salvar fossem os que estavam a escrever um post num impulso de segundos no Facebook; estávamos a contar é com aqueles que estudaram, durante décadas, medicina, biologia, organização social. A ideia absurda de que nós podemos resolver uma questão moral num segundo, comparada com milénios de estudo da filosofia, da história, da ética, etc. Os gregos andavam a trabalhar sobre isto! Enfim, essa aproximação ao que é moralmente certo está ao nosso alcance.
Teve receio de reforçar estereótipos, como o do terrorista muçulmano que ataca uma cidade europeia?
Pensei sobre isso, mas efetivamente é uma realidade que continua tão presente… A ideia para Os Dias do Ruído começou há muito tempo, talvez sete ou oito anos, e nessa altura tinham acontecido os ataques à redação do Charlie Hebdo e ao Bataclan [sala de concertos parisiense]. Fazia sentido que fosse em Paris. Como o Tarantino fez com os filmes Sacanas sem Lei ( 2009), em que altera os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, e o Era uma vez… em Hollywood (2019) em que ele cria uma realidade paralela e vinga as vítimas ao pôr as personagens a matarem os agressores [os discípulos de Charles Manson que assassinaram Sharon Tate em 1969]. Para mim, a questão do romance era essa, a de alguém conseguir fazer frente a esses terroristas – é uma forma de fazer justiça. Mas isto é só a minha história, não resume toda a história do terrorismo mundial… Alguém, certamente, escreveu uma história semelhante em que o terrorista não é muçulmano. Mas este é o tipo de pergunta e de argumentação com que hoje temos de lidar: se fizeste isto, não fizeste aquilo; se falaste num muçulmano, não falaste nos outros; se falaste dos outros, não falaste do muçulmano; se eu não falar de racismo, estou a ser racista; mas se falar sobre racismo sendo um branco, também estou a ser racista…
Sente-se, hoje, a escrever num terreno mais minado, entre medos e autocancelamento?
Eu quero ter o cuidado de olhar para o mundo e tentar escrever sobre ele da forma mais honesta possível. Mas não tenho medo nenhum de ofender, porque, ao fim do dia, é sempre possível ofender alguém. Mesmo estando calado.
Porque é que acha que o têm questionado tanto sobre o usar uma voz feminina?
Demorei várias entrevistas a perceber isso. Hoje, as pessoas sentem quase a obrigação de ter essa curiosidade. Mas ninguém me questiona sobre como é escrever com a voz de uma pessoa com 80 anos, ou de um soldado português em África, como já fiz. Esse é o trabalho de um ficcionista, conseguir ir ao encontro de outras vidas. A questão do lugar da fala está na ordem do dia. Será que um homem branco tem o direito de falar na voz de uma mulher? Para mim, esta questão não faz sentido, sobretudo quando estamos a falar de arte. E isto não é uma tese académica sobre o que é a mulher! Admito que este livro terá falhas nesta voz feminina. Mas também não é suposto um romance não ter falhas. O Gabriel García Márquez dizia que escrever um romance é como ir caçar coelhos: no final do dia, podemos tê-los caçado ou não. Mas passeámos, estivemos na companhia de amigos, usufruímos da Natureza, tropeçámos e sujámos as calças, aconteceram coisas.
“Fazem-me todo o tipo de perguntas, querem a minha opinião acerca de política internacional, religião, terrorismo, o futuro, o papel da mulher no mundo, trauma, relações amorosas, guerra, a morte, a masculinidade tóxica, arte, literatura, moda, as redes sociais, comida”, enumera Laura. É-lhe confortável a ideia do escritor como oráculo?
Faz sentido, tendo em conta o livro que escrevi. Se fôssemos agora esmiuçar os arcos narrativos e a construção da personagem do romance, seria só um exercício de ego. Não preciso assim tanto disso… As entrevistas são para dar espaço, não a mim mas ao livro. Eu quero mesmo que Os Dias do Ruído seja lido, que encontre leitores de vários géneros. Eu não tenho mais soluções do que aquelas que estão no livro, e que são muito poucas. São pontos de partida para reflexão, e para pensarmos e sentirmos coisas.
Abordam-se, aqui, temas como os campos de refugiados, ou o da “banal tragédia” das mulheres: “O mundo está cheio de mulheres especiais que todos os dias enfrentam adversidades tremendas, heroínas cuja história deve ser escutada”, diz Laura sobre uma professora de Jerusalém que foi presa por defender o povo da Palestina.
Eu gosto dessa ideia, que é a base da investigação do novo livro que Laura quer escrever, do que é um herói e uma heroína, e da forma como o dicionário os define. Um herói homem é sempre definido pela coragem e grandes feitos, enquanto uma heroína mulher é sempre definida a partir das virtudes, dos sentimentos grandiosos que já tem consigo. Isso é interessante. Mas pareceu-me mais importante ir ver as situações extremas em que as mulheres vivem no planeta, e em que se revelam como heroínas… mas à luz do critério masculino. E fiquei com pena de não estar a escrever esse livro.