Nasceu há 61 anos, numa família de agricultores em Longos Vales, Monção, no Alto Minho. Desde miúdo que o mais velho de sete irmãos adorava a terra e a botânica. Conta que demorava cinco horas a percorrer os três quilómetros entre a casa dos avós e a dos pais, porque se entretinha a medir o crescimento das plantas com a régua da escola. “O meu sonho era ser um agricultor evoluído, e fazia experiências com milho para produzir mais. Julgo que em parte o local onde nascemos nos condiciona a vida”, assume. Estudou Agronomia em Lisboa e faz vindimas há 35 anos, tendo passado por todas as regiões do País. Nos primeiros dez anos, trabalhou na Borges, que considera ter sido “uma escola”, enquanto fazia experiências com a casta Alvarinho. Em 1998, lançou o primeiro vinho, Muros de Melgaço, envelhecido em barricas de carvalho, e continuou a inovar com técnicas como a curtimenta (fermentação de um branco como se fosse um tinto). Com 130 hectares de vinha entre Monção, Melgaço e Vale do Lima, “o senhor Alvarinho”, como se tornou conhecido – título que lhe terá sido atribuído pelo crítico norte-americano Robert Parker –, é um dos nomes mais respeitados do mundo vitivinícola, estando presente em 50 países. A VISÃO conversou com ele na Quinta da Torre, uma propriedade do século XIV, com 60 hectares (50 de vinha Alvarinho), numa das nove sub-regiões dos Vinhos Verdes, Monção/Melgaço, que acaba de abrir ao enoturismo.
No senso comum, há ainda quem pense que o vinho da Região Demarcada dos Vinhos Verdes é… verde. Costuma dizer que é “um acidente com três séculos”. Quer explicar?
Vivi grande parte do meu percurso a ouvir a história do Vinho Verde da forma mais simplória: é verde porque a região é verde. Com base no estudo, arranjei uma fórmula a que chamo a “desconstrução dos quatro dogmas”. O primeiro relaciona-se com o facto de o Vinho Verde não ser um tipo de vinho: é uma Denominação de Origem, onde há branco, tinto, espumante, aguardentes e por aí fora. O segundo tem que ver com a História: o responsável foi o milho vindo da América, nos finais do século XVII, princípios do século XVIII, que começa a ser cultivado intensamente e domina o Minho. A chegada do milho possibilita que haja mais pão, comida e, logicamente, a população cresce. Era preciso mais terra e foi a vinha que sofreu com isso, pois acabou relegada para as bordaduras dos campos, o que não permitia que ganhasse grandes níveis de açúcar e tinha pouco álcool. Então aparece um vinho novo, extremamente ácido, porque as uvas realmente não amadureciam, a que as pessoas chamaram naturalmente verde. O terceiro dogma é o da efemeridade, que o verde é para beber no ano. O quarto é que não tem de ser necessariamente barato, sempre teve uma conotação de vinho menor. Na verdade, hoje podemos dizer que esta é a grande região dos brancos em Portugal.
Dados de 2023 indicaram, aliás, um crescimento de oito por cento nas exportações, o segundolugar a seguir ao vinho do Porto e à frente do Alentejo. Como vê o futuro?
Felizmente, esta região melhorou. Custa-me dizer isto, mas a mudança climática também contribuiu nesta viticultura para um equilíbrio de vinhos fantásticos, em termos de álcool e de acidez. Depois conseguiu-se conjugar algumas castas, em grande parte autóctones. Com o melhoramento da viticultura, o conhecimento das suas castas e este clima fantástico, por enquanto isto é um paraíso. Mas o Vinho Verde não é todo igual: um Avesso de Baião é bastante diferente de um Loureiro do Lima, de um Alvarinho de Monção/Melgaço, de um Azal de Amarante ou de um Arinto de Basto. Defendo denominações dentro da própria região, porque isso acrescenta valor. Será preciso algum tempo, mas é o futuro.
A região está a atrair produtores. Os Symington, família histórica do Douro, juntaram-se a si para formar uma sociedade: a Mendes & Symington.
O namoro já tem seis anos, o casamento é recente. Eles vieram para cá, compraram uma quinta, a Casa de Rodas [em Monção], de que estamos a tomar conta. É a primeira vez que uma família do Douro se junta a uma família dos Vinhos Verdes. Temos muitas coisas em comum: o gosto pela terra, conhecer o local onde produzimos as uvas. Respeitamo-nos mutuamente e eles estão com tempo. Em termos de capital social, fizemos um 50-50, o que não é uma coisa fácil.
Há pouco falava do “clima fantástico” no Minho. O que acontecerá a estas regiões vinícolas do País face às alterações climáticas?
É bastante complicado. É difícil desenhar o futuro. Há um mapa [da Organização Internacional da Vinha e do Vinho] que nos mostra como vai ser a viticultura do mundo em 2030, 2050, 2080 e 2100. É devastador olhar para aquilo. O mapa das vinhas vai mudar. Esta região mais atlântica, que partilhamos com a Galiza, e as zonas de altitude, como as de Trás-os-Montes ou Beira Interior, serão as que vão sobreviver de uma forma mais suave face a esta agressividade. Para o Douro será muito complicado e para o Alentejo também. O Sul vai sofrer imenso. Já não é uma questão só de água, é também uma questão térmica.
É uma situação que prevê a curto, médio prazo?
Olhando para aquele mapa, provavelmente em 2050 já não haverá vinha em grande parte do Sul. Mas estas coisas podem ser mais rápidas do que pensamos. O problema não é apenas a subida da temperatura, é o facto de existirem muitas estações dentro de cada estação. No Douro, talvez as zonas baixas que fazem o vinho do Porto voltem a produzir aquele vinho que só usava a aguardente para o embarque e não para parar a fermentação. Ou seja: as uvas amadurecem já com um doce natural.
É um apaixonado por agricultura. Como traça o panorama no País?
Gosto demasiado de agricultura e ela não é bem estimada. Depois do 25 de Abril, foi necessário reduzir o quantitativo de pessoas do meio rural, mas, quando olho para os países desenvolvidos, vejo tudo cultivado. Então, por que motivo em Portugal há tanto terreno devoluto? No caso do Minho ou do Interior, não é preciso transformar isto em herdades, mas nunca se estudou como se fixam as pessoas modificando-se a estrutura fundiária. Como se parte de um minifúndio para unidades que possam fixar as pessoas e ter rentabilidade? Este País, principalmente o Norte, com o que chove em média, podia ser um oásis do ponto de vista agrícola. Mas, para isso, seriam precisos planos. Estou de acordo com o que diz o economista Nuno Palma no livro As Causas do Atraso Português: a maldição dos recursos, como as bazucas ou os fundos, empobrece-nos. Estamos a abandonar completamente a agricultura. Toda a gente fala do Interior, de como se fixam as pessoas. Só através da agricultura.
O novo ministro da Agricultura, José Manuel Fernandes, numa entrevista ao jornal Público, disse que era preciso pôr um “travão” ao apoio à plantação de vinhas. Concorda?
Do ponto de vista da oferta, há um excedente nacional, principalmente no Alentejo e no Douro. Para se controlar e regular a oferta, ter-se-á de tomar medidas, e uma delas é não plantar mais se houver excedentes. Parece-me correto. Tem de se olhar para as regiões, uma a uma, e haver algum equilíbrio. Perante os factos, há uma diminuição também do consumo [de vinho] mundial, principalmente em tintos. Os brancos estão a crescer.
Que conselhos daria, então, a um jovem enólogo?
Acho que um enólogo terá de ser sempre alguém que conhece a parte agrícola e vitícola. Não pode ser só um enólogo da adega. O vinho nasce na vinha. Tem de ter primeiramente essa noção e depois perceber que o vinho é um produto cultural, não é uma bebida. Se fosse uma bebida, talvez não houvesse vinhos a um euro e outros a mil ou a dez mil euros. Mas, ao mesmo tempo, um jovem enólogo tem de ser inovador, atrevido e não dar tudo por adquirido.
Hoje é mais fácil fazer vinhos do que há 25 anos (quando lançou o primeiro vinho, Muros de Melgaço) ou o setor está mais competitivo? Tornou-se uma moda?
Ainda me lembro de que, no meio rural, se distinguia um trabalhador do campo de um da construção civil. O vinho era algo que repugnava as pessoas. Quando se deu o 25 de Abril, tirando o vinho do Porto, pouca gente engarrafava e exportava. Ia todo a granel para as colónias portuguesas. Em 50 anos, aconteceu uma revolução que, em alguns países, durou uns séculos. Neste aspeto, o País deu um salto brutal, mas é bom não adormecer. E, do ponto de vista genético, temos a vantagem de ter muitas castas autóctones.
Está a recuperar algumas delas…
Os primeiros vinhos portugueses a ser exportados daqui de Monção eram tintos e chamavam-se Parduscos. Eram vinhos pardos, com pouca cor, na altura feitos nos conventos. Decidi também fazer um Pardusco. A partir de 2012, comecei a plantar vinhas de Alvarelhão, Pedral e Verdelho-Feijão, na Quinta Rabo de Cuco, onde fazemos esse tinto, para também mostrar que esta região, hoje célebre pelo Alvarinho, pode dar outros vinhos.
Costuma dizer que o Vinhão é uma epidemia. Porquê?
Porque, em cada 100 videiras de um tinto que se planta, 99,9% são Vinhão. Chamo-lhe epidemia não por ser uma má casta, que não é, mas nem só de Vinhão vive a viticultura aqui no Minho. É uma casta, na verdade, bastante regional. Com uns sarrabulhos, umas cabidelas, umas lampreias, tudo bem, mas para criar um vinho internacional não passa, porque é muito rústica.
Como vê esta tendência dos vinhos naturais?
Isso não existe. Vou citar aquela célebre frase do Pasteur: “O vinho é a mais sã e natural das bebidas.” Vinho natural não é um vinho turvo, cheio de defeitos. Vinho natural é um vinho bem feito: com boas uvas, utilizando o mínimo de fertilizantes químicos e técnicas na adega, por forma a ter o mínimo de sulfitos. Isso é que é um vinho. O vinho em si já é natural. Quando as pessoas dizem que estão a fazer um vinho natural, desconfio logo. Então os outros devem ser uma miséria… É aquilo a que se chama um tiro no pé. Ainda não consegui perceber o que é um vinho natural. Se é um vinho que fermenta na garrafa, em Pét-Nat, ou se é um vinho de mínima intervenção, todo turvo e que parece estar cheio de defeitos. Vão desculpar-me: isso não é um vinho natural, é um vinho muito mal feito. Provavelmente, ao ser analisado, as pessoas vão arrepiar-se. Cada vez fazemos vinhos, se quisermos, ainda mais naturais do que Pasteur dizia. No fundo, isto é uma ferramenta abusiva de marketing que está a ser usada.
Há quem defenda o aumento do preço dos vinhos portugueses. O que pensa sobre isso?
Os preços não se aumentam por portaria: é por credibilidade e notoriedade. Vamos lá chegar, se fizermos tudo direito, se continuarmos a melhorar a agricultura, a preservar as nossas castas, a fazer vinhos autênticos, que expressem a terra onde nascem.
Atualmente, está envolvido só nos negócios da família. Como “o senhor Alvarinho” ocupa o tempo livre?
A estudar livros. Gosto de me atualizar no mundo do vinho, da vinha e da economia.
E, pelo que sei, de cozinhar…
Ultimamente, não tenho cozinhado muito [risos]… Faço cabidela, lampreia, um bom ensopado de borrego, mas também um ceviche ou um marinado de robalo.