A controvérsia suscitada pela gravação áudio, que veio a público, do agressivo interrogatório da procuradora Cândida Vilar ao arguido Fernando Mendes – ex-líder da Juventude Leonina e um dos presos preventivos do processo de invasão, em maio, da Academia do Sporting, em Alcochete, por membros daquela claque que atacaram jogadores e elementos da equipa técnica – e o silêncio do juiz que presidiu à inquirição são facadas em algo de muito importante para o bastonário da Ordem dos Advogados: a “perceção do cidadão sobre a Justiça”, que considera crucial para a confiança no sistema. Ainda assim, como se vê nesta entrevista à VISÃO, Guilherme Figueiredo, 62 anos, dispensa o discurso radical dos seus antecessores, Elina Fraga e Marinho e Pinto, o que condiz com alguém que já publicou um livro de poesia, fez teatro na juventude e é um espectador inveterado de cinema – e que até se mostra compreensivo com a greve dos juízes. Mas não lhe falem em delação premiada. “Não podemos entrar numa deriva que levaria a que muitos inocentes fossem injustamente detidos, porque alguém delatou”, diz.
Que apreciação faz à gravação áudio que se tornou pública, em que se ouve o interrogatório “torrencial” da procuradora Cândida Vilar a um suspeito do processo de invasão da Academia de Alcochete, Fernando Mendes, ex-líder da Juventude Leonina, inquirição na qual o arguido se vê em grandes dificuldades para responder à magistrada e dar a sua versão dos factos?
Há duas questões: a primeira é o aparecimento no espaço público dessa gravação, facto que não pode deixar de ser averiguado e de ter consequências. O número restrito de intervenientes permite uma resposta, em prazo curto. A segunda é que a procuradora não cumpre a norma da urbanidade e respeito, circunstância que pode representar a ausência do princípio constitucional da presunção de inocência.
E que comentário lhe merece o silêncio do juiz de instrução criminal [JIC] que presidiu à inquirição?
Os juízes de instrução estão a deixar de ser, em alguns casos, os juízes das liberdades e das garantias dos cidadãos, o que é preocupante num Estado de Direito democrático. Há muito trabalho a fazer nessa área, quer do ponto de vista formativo, desde logo a exigência do enquadramento constitucional e legal na ação das magistraturas, quer quanto às avaliações.
Existem incumprimentos da lei por magistrados?
Por vezes sucede que, ao abrigo de interpretações “generosas” nos inquéritos, se ultrapassa o que a lei estipula quanto a liberdades, direitos e garantias, algo que nos preocupa muito.
O que quer dizer com interpretações “generosas”?
Quero dizer que, às vezes, o Ministério Público [MP] olha para as normas e considera que pode ir um pouco mais além. Imaginemos uma detenção que não ocorre em flagrante delito e que tem de ser resolvida, pelo juiz de instrução, num prazo de 48 horas. Mas essas 48 horas, estipuladas por lei, são ultrapassadas porque, por exemplo, ao fim de semana, não se pode apresentar a pessoa a um juiz, pelo que isso apenas se faz passados dois dias… Ou uma busca feita numa altura em que, por todas as razões e mais alguma, não se justificaria, uma vez que a pessoa se apresentou previamente. Por que razão, passados uns dias, se faz essa busca e se constitui a pessoa arguida, quando tudo isso já podia ter sido feito antes? E por que motivo a busca é feita à noite e em dias que são menos prováveis? Não me quero situar em qualquer caso concreto, apenas sigo exemplos que existem em matérias que têm natureza constitucional e que se relacionam com o equilíbrio que deve sempre haver entre uma investigação criminal e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. O MP não pode andar solto na fase de inquérito, que é autónoma e está por completo na sua mão. Entendemos que o inquérito deve ter uma fiscalização jurisdicional mais ativa.
Por parte de quem?
Do juiz.
De instrução criminal?
Poderia ser. No nosso sistema, a ideia do JIC é boa. Mas voltamos a ter aqui um problema de interpretações “generosas” – e mais grave. Isto porque o JIC sempre foi visto como o juiz das liberdades, aquele que verifica se as normas legais foram e estão a ser cumpridas, de maneira a acautelar as restrições fixadas pela Constituição às autoridades judiciárias, no que respeita aos direitos das pessoas e à presunção de inocência.
E isso nem sempre acontece?
Diria que a Justiça vive muito da perceção do cidadão, porque é ele quem cria a confiança no sistema. O tribunal, como espaço de centralidade da coesão social, é porventura o mais importante num Estado de Direito democrático. E se, em certas circunstâncias, um JIC aparece sempre envolvido nas buscas, nas acusações, numa mistura que o cidadão não percebe muito bem, ele não está no bom caminho. Gera-se, então, uma confusão na opinião pública: “Ah, aquele juiz não tem medo de nada, foi ele quem fez a acusação!” Não foi. Quem deduz a acusação é o MP.
Até onde vão as suas dúvidas?
Por exemplo, ninguém pode ser constituído arguido apenas porque há uma ideia de que é possível que esteja envolvido em alguma coisa. Existem na lei pressupostos bem definidos que obrigam a que haja prova indiciária, que possa conduzir a um certo grau de certeza que leve o MP àquele ato – o qual tem de ter atrás de si uma investigação que o fundamente. Com toda a franqueza, não sei se isto acontece sempre.
Como vê as suspeitas de não aleatoriedade na distribuição de processos aos juízes do Tribunal Central de Instrução Criminal?
Há mais casos. O problema relacionado com o chamado “juiz natural” é também uma questão constitucional, de independência e de afirmação do tribunal face ao que vai ser discutido e às pessoas. Espero resultados rápidos das averiguações do Conselho Superior da Magistratura.
Já agora, que apreciação faz à greve dos juízes, 21 dias espalhados por um ano, até fins de 2019?
Esta greve é geracional, dos magistrados mais novos. E é preciso que o cidadão compreenda que os juízes são titulares de um órgão de soberania, quando estão em funções. O verdadeiro órgão de soberania é o tribunal. Na greve, os magistrados não presidem a um órgão de soberania e, por isso, há muita gente que entende que não lhes pode ser coartado um direito constitucional.
E qual é a sua posição?
O assunto não é simples: os juízes não podem legislar para si próprios e, assim, terem o estatuto e a remuneração que entendem justos. Preocupa-me mais que a greve possa apanhar alturas em que há eleições. Acho que aqui há limites, não no que respeita aos direitos de cada um, mas no que toca aos fins da greve e, acima de tudo, à circunstância de serem juízes – e à perturbação grande que tem que ver com o próprio Estado de Direito. Já não estamos apenas face a um problema de estatuto e a um juiz que está fora do tribunal, e não a presidir a um órgão de soberania. Estamos perante aquilo que é a representação externa de um juiz para o cidadão.
Parece-lhe que a ministra da Justiça e o Governo não perceberam essa alteração de quadro geracional e desvalorizaram a greve, que desagrada aos juízes mais velhos?
Estou convicto de que o Governo desvalorizou o estatuto e a questão das remunerações, e introduziu mais problemas no conflito, desde logo a diferenciação remuneratória geracional. As questões devem ser resolvidas no âmbito das funções exercidas, deixando a antiguidade para soluções normativas conhecidas.
Ao comentar a proposta de Pacto da Justiça, avançada pelo PSD, a ministra Francisca Van Dunem disse que o País precisa de “medidas estruturantes” que se projetem por “vários anos” e que “alterem” o modo como o sistema se organiza. Concorda?
Não. Pensar que apenas se devem promover medidas estruturantes é um erro político, que pode conduzir a alterações sucessivas na estrutura de organização do sistema judiciário, provocando mais problemas do que soluções. Já as medidas avulsas, como, por exemplo, a redução das altíssimas custas judiciais, permitem manter a dinâmica do sistema numa perspetiva do seu melhoramento contínuo.
Mas a ministra “deu-lhe” o regresso dos processos de inventário aos tribunais, um dos pilares do seu mandato…
É uma matéria pela qual nos batemos muito. O inventário é litigante – quando não há litígio, a partilha é feita num notário, através de uma escritura. Estou a falar de heranças, por morte ou divisão do património, após a dissolução do casamento, que se tornam processos terríveis do ponto de vista emocional. E uma pessoa que requer um inventário num cartório pode esperar anos para que o processo apenas comece. O cartório tem uma cultura da convergência das partes – as pessoas estão de acordo. Os tribunais é que têm a cultura de decidir quando há litígio. Existem processos há anos pendentes em cartórios, em que só falta a decisão. A ministra criou uma comissão para estudar o assunto e tirar conclusões, com um prazo que acabou em novembro. É proposta a alteração do regime, permitindo que as partes escolham se querem ir para o tribunal ou se para o cartório. Espero que passe rapidamente a lei.
O que pensa fazer para, pelo menos, mitigar as interpretações “generosas” da lei que referiu?
Retomar as reuniões mensais que tinha com a ex-PGR e o anterior presidente do Supremo Tribunal de Justiça e, por inerência, do Conselho Superior da Magistratura, agora com os novos titulares dos cargos.
Essas reuniões foram produtivas?
Fizemos um caminho. Não quer dizer, como é óbvio, que tivéssemos os três a mesma opinião, mas estou convencido de que a circunstância de levarmos as nossas dúvidas, de carrearmos para a discussão factos de que íamos tendo conhecimento, influenciou cada um de nós na reflexão e nas atitudes tomadas.
Com a ex-PGR, Joana Marques Vidal, uma das discordâncias há de ter sido a delação premiada…
Sim. Os modelos apresentados são de contratualização: “Tu dás uma informação e nós pagamo-la de uma certa forma.” A Ordem estará sempre contra – além de que já temos, no nosso sistema jurídico, a “colaboração premiada” em certas circunstâncias, como é o caso do estatuto de arrependido. Não podemos entrar numa deriva que levaria a que muitos inocentes fossem injustamente detidos porque alguém delatou. A experiência que temos, quer do Brasil quer dos EUA, mostra muita delação falsa.
Como lida com as suspeitas de tráfico de influência sobre advogados-deputados?
Existe, no nosso panorama, quem ache que tem um espírito de “superioridade moral” quando fala também dos advogados. O problema não está no estatuto da Ordem. Ser deputado não é uma profissão. Coisa diferente é discutir isso ao nível do regime. Isto é: o Parlamento deverá debater se entende que, no seu estatuto de deputado, há uma incompatibilidade para o exercício de profissão. Não é da advocacia, é de qualquer profissão. O problema não está na incompatibilidade, está na densificação dos impedimentos e dos conflitos de interesse. A coragem que falta, no Parlamento, é a de concretizar esse quadro de incompatibilidades, que resolveria o problema.
Mas também há a proletarização da advocacia…
Temos cerca de 31 500 advogados e perto de três mil estagiários. Este é um problema difícil de conjugar e que tem consequências más. Levanta questões à Ordem de índole deontológica, de qualidade e, acima de tudo, de sobrevivência, em alguns casos. Isto tem de ser pensado a outro nível.