Como não podia deixar de ser, a primeira Girl Talk também sofreu os desaires de ser lançada em plena pandemia. Depois de várias semanas a tentar encontrar uma data possível para juntar à mesa a CEO da Dielmar e a Corporate Marketing Team Leader da Fidelidade, a alteração do mapa epidemiológico acabaria por nos trocar os planos: Ana Paula Rafael não conseguiu juntar-se ao nosso pequeno-almoço, no Martinhal Chiado, como estava previsto, para podermos, à boa maneira portuguesa, trocarmos ideias em redor de uma mesa.
Mas as novas tecnologias resolveram o problema e foram a peça fundamental para permitir à EXAME ouvir as opiniões das duas profissionais sobre inovação em negócios considerados tradicionais, as eleições norte-americanas e a liderança de equipas e os negócios internacionais.
A partir do escritório em Alcains, com vários blazers como pano de fundo, Ana Paula Rafael foi o rosto de um otimismo moderado, numa altura em que a maior parte das empresas nacionais luta com os efeitos da pandemia, numa economia que estava em franca recuperação. E aproveita para afastar a ideia de que o setor em que se move é tradicional. “Se o fosse, já tinha desaparecido do mercado!”, atira a responsável da mais antiga marca de alfaiataria nacional. “Na verdade, é um setor altamente inovador, até. Neste tempo de pandemia, em que todos somos treinadores de bancada, eu tenho dito isto: o setor da moda é o mais inovador que eu conheço, desde que estou cá. Eu sou advogada e trabalhei em muitas empresas, como sabem. E quando cheguei aqui é que validei isso: o que este setor tem é tradição.”
Por isso mesmo, o seu grande desafio passa por “continuar a acordar as pessoas que tenho à minha volta para continuarem a observar o mundo, para continuarem a observar o estilo de vida das pessoas, que vai mudando – olhemos para a pandemia! – e despertá-las para serem mais observadoras do que antes. No passado, tínhamos de inovar todas as estações e fazer coleções-cápsula na própria estação. Hoje, temos de redescobrir o estilo de vida do novo normal, e das pessoas que estão a fazer vários estilos de vida ao mesmo tempo, como disse há pouco a Jessica”, lembrava.
“As pessoas podem ter o pijama e a pantufa associado a uma camisa”
Logo no início da conversa, a responsável de marketing da Fidelidade referia como o teletrabalho tinha alterado a forma de nos vestimos, sendo possível estar a ter uma reunião formal com uma camisa e um blazer e, ainda, calças de pijama. “Hoje em dia, as pessoas podem ter o pijama e a pantufa associado a uma camisa, a uma camiseira, a um blazer… Porque têm de ter um aspeto sério, de estar a trabalhar no andar de cima, e podem estar a relaxar no andar de baixo”, atirou com uma gargalhada Ana Paula.
Um quê de informalidade que pode trazer algum divertimento ao setor segurador, comummente conhecido por ser dos mais clássicos, a par da banca. “É um setor tradicional, mas quando falamos de formalidade, há muitos mundos no setor dos seguros: o mais formal, junto do cliente virado para fora. Agora, nas áreas de cálculo, de marketing, mais virado para dentro, é mais informal”, garante Jessica. “Há de tudo a acontecer. Há pessoas que nunca foram formais!”, atira com um sorriso. “Mas é claro que é um setor tradicional, clássico, chato, até… no sentido em que trabalhamos com base no azar, na venda da probabilidade de haver um azar. Mas a verdade é que trabalhamos na proteção das pessoas. O nosso trabalho é proteger as pessoas, mas as seguradoras também podem tomar uma atitude nessa proteção. Foi isso que vimos, aliás, nos últimos meses. As seguradoras a irem para lá do que está na lei, para proteger, para apoiar, para estar presente.”
Porque [as pessoas] têm de ter um aspeto sério, de estar a trabalhar no andar de cima, e podem estar a relaxar no andar de baixo
Ana Paula rafael
As mudanças, no entanto, já se começaram a sentir há mais tempo, sobretudo após a crise financeira de 2011. “Há uns anos, a pessoa comprava o seguro e comunicava com a seguradora talvez uma vez por ano, na renovação, para voltar a pagar. Hoje, já não é assim, já temos muito mais contacto com as pessoas, graças a aplicações, com outras features e valências”, o que obriga a um esforço constante de inovação, de estratégia de comunicação para estar mais perto do cliente, que também ele é um consumidor diferente.

De Portugal para o mundo
No mesmo sentido, o facto de ambas as executivas trabalharem em empresas com presença internacional obriga a um maior esforço de comunicação e de estratégia de venda. Para Jessica, há duas regras fundamentais para trabalhar em outros mercados: respeito e humildade. “Eu estou na área de marketing internacional e estamos atualmente em 11 países, em quatro continentes. E se em Portugal somos uma empresa líder, em outros países estamos no top 3 e noutros mercados estamos ainda a conquistar uma posição. Temos de ser criativos, inovadores e abertos”, porque não é possível ter a mesma atitude em mercados onde não se tem a mesma posição.
A nossa criatividade tem de nascer da abertura. Por exemplo, o meu principal foco das manhãs é trabalhar com Macau, e logo de seguida África e Europa e, no final do dia, a América Latina.
jessica von haff
“Podemos levar os nossos 200 anos de experiência, mas temos de pensar como fazê-lo. A nossa criatividade tem de nascer da abertura. Por exemplo, o meu principal foco das manhãs é trabalhar com Macau, e logo de seguida África e Europa e, no final do dia, a América Latina. As necessidades são diferentes em qualquer uma das regiões, ainda que possamos, às vezes, enfrentar alguns problemas semelhantes. E essas partilhas são importantes, lembrando-nos sempre de que somos diferentes”, reafirma.
“Não há espaço para ter nenhum tipo de arrogância ou de imposição. Não dá para ter aquele espírito colonizador e dizer que “estamos na sede, então tens de fazer desta ou daquela forma”.
Ana Paula, por seu lado, salienta que “trabalhar com a Austrália, a Irlanda, o Reino Unido, França ou Espanha é muito diferente, porque são outros mundos. Trabalhamos com Marrocos, por exemplo, que ainda é outro totalmente diferente. Há um processo de comunicação que tem de ser muito eficaz, porque é fundamental” para o negócio, esclarece a gestora, recordando que, no seu caso, esta interação é feita sobretudo com os fornecedores que, depois, falam com o cliente final. “Por isso é que fazemos uma construção e um diálogo comuns com os nossos parceiros. Não fazemos um produto e entregamo-lo, simplesmente. Temos um sistema de vasos comunicantes em que somos coproprietários do que fazemos. E pomos no mercado aquilo que são as competências que criamos juntos.”

Para a advogada transformada em gestora, as peças que fabrica e vende são um produto com “um peso brutal na forma como as pessoas comunicam entre si e com o mundo. E temos uma responsabilidade muito grande com este precisamente por isso”, realça.
A importância da comunicação é algo que sente não apenas no final do processo de produção mas que também, defende, é importante estar garantido durante todo o tempo. Essa é também uma das razões pelas quais a horizontalidade da hierarquia se torna tão importante na empresa sediada no concelho de Castelo Branco. “Nós temos, internamente, uma comunicação e interação diretas. Somos 400 pessoas no mesmo espaço e comunicamos diretamente, porque, quando se constrói em conjunto, quando toda a gente conhece o objetivo e trabalha para ele, é assim que tem de ser. A verticalização das hierarquias está muito enraizada em processos mais administrativos, mas, quando as pessoas estão com a mão na massa, ela acaba por se esbater. Se estamos todos a construir uma calça ou um blazer, as pessoas estão no mesmo espaço com os mesmos objetivos, a tentar encontrar a melhor via para chegar ao sucesso, e onde todos podem ‘jogar ao criativo’. Todos têm uma palavra a dizer, aqui. A informalidade é tão grande que há ainda algumas colaboradoras que, às vezes, me chamam Paulinha”, revela com um sorriso.
Houve quem dissesse que eu era mal-educada, mas a minha decisão foi baseada no facto de eu sempre as tratar com muito respeito. Há ocasiões mais formais em que temos de tratar as pessoas pelo título, mas, se estamos no mesmo open space, isso não faz sentido
Jessica von haff
“Eu tive um choque muito grande quando me apercebi da formalidade das hierarquias em Portugal”, revela Jessica, adiantando que, depois de vários anos a trabalhar em França, foi dos maiores choques culturais que sentiu. “As pessoas em França tratam-se por vous, mas a partir do momento em que têm uma relação passar a tratar-se por tu. E não há título quando falam umas com as outras – não há dr., engenheiro, arquiteto. E eu, depois de pensar bastante, tomei a decisão de não adotar essa posição de tratar as pessoas pelo título, aqui, em Portugal. Houve quem dissesse que eu era mal-educada, mas a minha decisão foi baseada no facto de eu sempre as tratar com muito respeito. Há ocasiões mais formais em que temos de tratar as pessoas pelo título, mas, se estamos no mesmo open space, isso não faz sentido”, defende.
A especialista em marketing aproveitou ainda a ocasião para explicar que a Fidelidade tem levado a cabo várias iniciativas que implicam dar, em projetos específicos, funções diferentes às pessoas, precisamente para perceber que perfil estas podem ter e para que posições. Também ajuda a horizontalizar hierarquias, uma vez que, ao se atribuir a chefia de um projeto a um colaborador, ele pode passar a chefiar o seu superior formal. “É bom para quem pensa em assumir cargos de liderança, mas também para aqueles que descobrem que, afinal, liderar não é o que querem fazer.” E obriga, claro, a uma dose extra de humildade por parte das chefias.
Diversidade e inclusão
Outro projeto que passou a ter lugar na Fidelidade, no sentido de melhorar a comunicação e o envolvimento, é o do grupo de Diversidade e Inclusão que Jessica lidera desde a sua criação, uma vez que nasce por sua sugestão. “Tomámos a decisão de que esse grupo seria transversal a todas as áreas do grupo, e até mesmo às várias empresas do grupo. Estamos a tirar a fotografia da empresa, a ver o que já existe, e queremos que tudo fique agregado. O objetivo é estimular dinâmicas que promovam a diversidade e a inclusão, porque a Fidelidade é uma empresa líder, e há um caminho de posicionamento e de cidadania que a empresa tem de ter perante os outros”, começa por explicar.
“Esse grupo é profundamente impactante para nós – somos uma dezena de pessoas –, e deram-nos a liberdade para podermos trabalhar vários temas. Falar de dificuldade e de inclusão não é inovador, pode ser visto como uma tendência, mas isto é a nossa vida. Podemos ser uma mulher entre dez mulheres, mas há enquadramentos em que vamos ser uma ou das poucas entre muitos homens; podemos ser a única que fez Gestão entre todas as que estudaram Direito; podemos ser a pessoa mais velha da sala… a diversidade não é só nacionalidade, raça, género. Há imensa coisa que é diversidade e é isso que nós estamos a enaltecer”, conclui.
O setor da moda é o mais inovador que eu conheço, desde que estou cá
ana paula rafael
Declarações que foram ao encontro de um dos ensinamentos que Ana Paula Rafael considera fundamental que sobreviva ao período de pandemia que atravessamos: “As pessoas têm de ter a noção do coletivo. Pensar e trabalhar em coletivo. É preciso mesmo perder a ideia individualista do seu ser, da sua cidade, do seu país.” No mesmo sentido, a gestora espera que “a noção de que todos temos de construir um mundo melhor e de que a agenda do ambiente tem de estar em toda a nossa vida” tenham vindo para ficar, “porque senão vamos ter de construir outra arca de Noé”, brinca com muita seriedade. E, por fim, defende, “ninguém tem dúvidas de que neste momento é urgente que as pessoas pensem no futuro e de que forma vão conseguir contribuir para a sua cidade, para o mundo. Temos de criar formas claras de reproduzir o valor do trabalho – não o dos sindicatos, mas o valor intrínseco da contribuição que cada um vai fazer”.
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