Sabe-se que o pai chegou de manhã à Faculdade de Ciências e Tecnologia, da Universidade Nova, no Monte da Caparica, Almada, deixou o carro no parque de estacionamento e foi trabalhar. E também se sabe que o bebé, que frequentava a creche do campus, a apenas 100 metros do parque, passou o dia inteiro fechado no carro.
Na terça-feira, 12, a temperatura do ar chegou aos 25 graus; no interior do carro poderá ter subido aos 40. Ao final da tarde, de nada serviram as manobras de reanimação feitas ao bebé por uma aluna que foi bombeira e tem formação em primeiros socorros. Quando a equipa da viatura médica de emergência e reanimação do Hospital Garcia de Orta chegou ao local, declarou o óbito.
A causa da morte do bebé será determinada pela autópsia. A perda e o trauma dos seus pais serão imensos.
“Estes pais devem procurar ajuda especializada, porque o auto-cuidado às vezes é uma falácia”, sublinha João Veloso, psicólogo do Observatório do Trauma da Universidade de Coimbra, em entrevista.
Do que falamos quando falamos de luto parental?
Falamos de um luto contranatura, porque há uma perda de sequenciação. E, portanto, são sempre mortes que têm um carácter de agressividade. Neste caso específico, o que torna o luto ainda mais complexo é a existência de um elemento que tira a coerência – a culpa.
Como é que se lida com um acontecimento destes?
Para conseguirmos lidar com o luto existe uma coerência: como vou comportar-me, vou chorar muito, vou sentir muito… Existe um conjunto de formas de estar e de sentir que dá uma certa coerência à vivência da morte. Mas, neste caso, esse construto perde a consistência porque se introduz a falha, a culpa, o que leva a que o esforço de consistência tenha de ser feito em mais de uma forma.
Não é só perder o filho, é como o perderam?
É também “devia ter feito isto ou aquilo”.
Mas no luto parental não existe sempre o elemento culpa? Os pais sentem que não protegeram o filho da morte.
No luto “normal”, sequencial, não introduzimos esse elemento. Numa morte de alguém com 100 anos, pensamos: “Viveu bastante”. Essa cognição é coerente com o tipo de intensidade que temos. No caso do luto parental, este equilíbrio entre o que podemos pensar e sentir é diferente. A culpa introduz um outro tipo de cognição que baralha o sentimento. Quando choramos, estamos a preencher o vazio, a perda. Nestes casos, a perda vai ter de ser compensada com qualquer coisa – com a tristeza e também com a culpa, o que torna mais complexo o preenchimento do vazio. Daí o luto parental ser tão complexo.
Existem estratégias de sobrevivência?
Nós dizemos para os pais se afastarem dos locais, da casa de sempre. Se não, estão sempre a pensar: “Ouço a chave na porta e lembro-me dele, ouço o elevador e…” A ideia é desligarem um pouco daquele tipo de preenchimento do vazio, para o preencherem de outra maneira. Porque alguns deles vão preenchê-lo com a culpa.
Fazemos o luto de maneiras diferentes?
O luto parental pressupõe existir um movimento comum e partilhado do casal, quando os lutos têm sempre ritmos diferentes. Imagine um pai que teve experiências de luto sempre muito dolorosas, por exemplo o seu primeiro funeral foi muito exuberante, e uma mãe que teve uma primeira experiência comedida, contida, tranquila. Naturalmente, perante uma perda, os dois reagem de maneira diferente. O pai, ao ativar as suas memórias, ativa um sofrimento extra.
E, neste caso, ainda temos a culpa acrescida.
A principal coisa é respeitar os ritmos de cada um deles, de como lidam com o luto. Mas, sim, o elemento de culpa, o potencial de estar sempre a reviver o processo que levou aquele evento, é muito complexo. O pai que deixou o bebé no carro vai estar sistematicamente a ser exposto à narrativa, a tentar encontrar uma explicação, a tentar perceber “como aconteceu daquela maneira?”. A reviver sistematicamente, intrusivamente, o evento. E, provavelmente, a mãe vai fazer o mesmo. “Quando liguei, por que razão não perguntei…” Ambos vão arranjar uma narrativa dos acontecimentos.
Em tempos, acompanhei uma mãe que se perguntava porque tinha ficado à porta do hospital onde estava o filho, porque não tinha entrado. Revivia permanentemente o processo. Talvez, se tivesse entrado, teria conseguido fazer alguma coisa para o salvar?
Volto à minha pergunta de há pouco: como se ajuda estes pais? Que estratégias existem?
Estes pais precisam de apoio especializado para lidarem com a perda e o trauma. Estas coisas têm de ser trabalhadas. As pessoas acham que são auto-suficientes em tudo o que tem que ver com a área da saúde mental, mas não são. É obrigatório ter apoio, algum tipo de psicoterapia. É preciso uma abordagem técnica, têm de procurar especialistas, pessoas com formação nesta área, habilitadas a lidarem com o trauma, para ressignificar a experiência, para que alguns dos acontecimentos ganhem uma intensidade diferente. Isto não é só ir a um psiquiatra e ficar embotado, anestesiado, com medicamentos.
Ressignificar a morte?
Não, isso só faz a religião. É de alguma forma conseguirmos dar um conteúdo cognitivo, emocional sensorial. Dar um novo sentido a estes três elementos, aquilo que pensamos, o que sentimos e como nos sentimos. Arranjar forma de a pessoa ter recursos para lidar com o evento.
Claro que há um conjunto de cuidados que todos nós tentamos fazer: dormir bem, alimentar-nos bem, ter atividade física, evitar o stresse, não fazer ritualizações, encontrar ocupações novas, conviver… Mas o ideal é procurar ajuda especializada que esteja habituada a trabalhar com o luto e o trauma. As pessoas devem procurar ajuda especializada, porque o auto-cuidado às vezes é uma falácia. Não chega.
Vai-se sempre a tempo?
Do ponto de vista técnico, o luto tem um prazo. Durante seis meses, podemos ter um conjunto de ações que podem parecer demasiado intensas. Depois disso, temos um luto patológico, precisamos da ajuda de alguém com formação específica. Relembro que no luto parental estamos a falar de duas pessoas. Cada uma delas tem de ter espaço para o seu próprio processo, e é preciso respeitar o seu ritmo de perda.
É possível “renascer” depois de um luto destes?
Cada caso é um caso, não há uma varinha de condão. Tudo o que é contranatura, a cicatriz fica lá. Mas, se tudo correr bem, não olhamos para ela todos os dias. E, mesmo perdendo filhos, é possível continuar a fazer coisas, a construir coisas.