Sem que nada o fizesse prever, o Centro Ismaili de Lisboa tornou-se no epicentro de uma tragédia que trouxe a morte e a tristeza à serena comunidade ismaelita em Portugal. O ataque de Abdul Rashid – que fez duas vítimas mortais – continua a ser investigado. Recorde tudo o que se passou (e o que já se sabe) nestas últimas 24 horas.
Centro Ismaili: local de paz e apoio
O dia 28 de março de 2023 nasceu com Sol, e céu limpo. Como habitualmente, o Centro Ismaili de Lisboa, localizado na Avenida Lusíadas, na zona das Laranjeiras, abrira cedo as suas portas para receber a comunidade ismaelita residente em Portugal. Inaugurado a 11 de julho de 1998, o Centro tornou-se mais do que apenas um lugar de oração, mas também um espaço onde se resolvem assuntos burocráticos (como a obtenção de vistos ou de nacionalidade), onde decorrem aulas de português e de costura para estrangeiros e ainda se dá apoio social, como comida e vestuário, a quem precisa.
Sede mundial de uma comunidade com cerca de 15 milhões de pessoas, espalhada por mais de 25 países, o Centro Ismaili de Lisboa tornou-se parte da vida da cidade. Os ismaelitas, conhecidos pelo elevado estatuto social e poder económico, com importantes ligações ao mundo dos negócios, são profundamente respeitados localmente. O diálogo inter-religioso é uma aposta constante.
Só em Portugal existem cerca de oito mil ismaelitas. O ramo, minoritário dos muçulmanos xiitas – e o único que tem um líder vivo –, segue a palavra do príncipe Karim Aga Khan (Mawlana Hazar Imam, para os ismaelitas), considerado descendente do profeta Maomé.

Os minutos da tragédia
Abdul Bashir, 28 anos (e não 40, como indicavam as primeiras informações), é um refugiado de nacionalidade afegã, licenciado em telecomunicações, que chegou a Portugal há pouco mais de um ano, em fuga do regime talibã, e tinha autorização para permanecer no País até 13 de Dezembro de 2026.
Ficou viúvo, pelo caminho, depois de a sua mulher ter morrido num incêndio, num campo de refugiados em Lesbos, na Grécia, onde permaneceu ao chegar à Europa. Pai de três filhos menores, de quatro, sete e nove anos, era “beneficiário de estatuto de proteção” – como confirmou, ainda ontem, o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro – e residia em Odivelas, mas, segundo apurou a VISÃO, sentia-se “infeliz” no País, e desejava partir para se fixar na Alemanha.

Na manhã desta terça-feira, Abdul Bashir deslocou-se, como habitualmente, ao Centro Ismaili, para mais uma aula do curso de português que frequentava, com outros 15 colegas, agendada para as 10h00. Cerca de 40 minutos depois, e sem aviso prévio, o homem atacou, com uma faca de grandes dimensões, o professor – que ainda se encontra hospitalizado no Hospital de Santa Maria, mas fora de perigo –, perante os apelos para que parasse dos presentes.
Fugiu da sala, largando a primeira vítima, mas, pelo caminho, cruzar-se-ia nos corredores do Centro com Mariana Jadaugy, 24 anos, e Farana Sadrudin, 49, que, atraídas pelo ruído da confusão, tinham saído das suas salas para perceber o que se estava a passar. Foram esfaqueadas repetidas vezes e morreram no local, como contou, à VISÃO, o afegão Nizam Mirzada, frequentador habitual do Centro Ismaili, e irmão de uma colega de Abdul Rashid, que se encontrava no interior da sala, em que decorria a aula de português, quando o ataque começou.
PSP travou o ataque em segundos
Terá sido o professor de português, ferido no abdómen e no pescoço, a dar o primeiro alerta às autoridades, ligando para o 112, às 10h57. Bastou um minuto para que os primeiros agentes da PSP, que seguiam num carro-patrulha nas proximidades do Centro Ismaili, chegassem ao local.
Os polícias depararam-se com Abdul Rashid, ainda com a faca na mão, pedindo-lhe de imediato que largasse a arma branca e cessasse o ataque. O refugiado afegão não obedeceu à ordem, avançando na direção dos polícias, o que obrigou os agentes a disparar, ferindo o agressor numa perna. Em comunicado enviado às redações, a PSP explicou que “o atacante foi socorrido e conduzido a unidade hospitalar, encontrando-se vivo, detido e sob a nossa custódia”.
Depois de, ainda ontem, ter sido operado no Hospital de São José, Abdul Rashid foi transferido, já esta manhã, para o Hospital Curry Cabral. Deverá ter alta daqui a duas semanas.

Mariana e Farana, as duas vítimas mortais
Como habitualmente, Mariana Jadaugy, de 24 anos, e Farana Sadrudin, de 49, chegaram aos seus gabinetes, no Centro Ismaili, logo ao início da manhã de terça-feira. Na sala ao lado, decorria a aula de português para cidadãos estrangeiros, que decorreria entre as 10h00 e as 13h00. Minutos depois, porém, quando o ataque de Abdul Rashid começou, o barulho levou as duas assistentes sociais a deslocarem-se àquele local, para ver o que se estava a passar. Pelo caminho, a faca do refugiado afegão atingiu-as fatalmente.
Mariana Jadaugy (que era responsável pelo processo de naturalização de Abdul Rashi) e Farana Sadrudin trabalhavam como assistentes sociais, na Fundação FOCUS – Assistência (na qual Farana era ainda a gestora nacional), funções que exerciam há pouco mais de um ano.
Mariana era licenciada em Ciências Políticas e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa e com mestrado na mesma área feito no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa. Por sua vez, Farana era formada em Engenharia pela Escola Superior de Tecnologia de Setúbal. Foi também representante da comunidade ismaelita em Madrid.
Profissionalmente, a jovem Mariana Jadaugy passou por lojas de vestuário, ainda como estudante, antes de assumir as atuais funções. Já Farana Sadrudin teve um percurso ligado a agências de seguros, em Portugal e Espanha, antes de ser nomeada para a Fundação FOCUS – Assistência.

Choque e consternação
Ao final da tarde de terça-feira, o ambiente era de profunda tristeza e consternação no Centro Ismaili, com familiares e amigos das vítimas a marcarem presença no local.
Também Marcelo Rebelo de Sousa se deslocou até às Laranjeiras, já após a Presidência da República ter publicado, no seu site, um comunicado a anunciar que “apresentou ao representante do Imamat Ismaili em Lisboa, Nazim Ahmad, sinceros pêsames pelo ato criminoso”, pedindo-lhe “que os transmitisse também ao príncipe Aga Khan e às famílias das vítimas”.
“O Presidente da República, que tem acompanhado permanentemente a situação, em contacto com o Governo, sublinha, por um lado, o facto de estarem a decorrer as investigações destinadas a apurar o sucedido, e, por outro, que, tal como declarado pelo primeiro-ministro, as primeiras indicações apontam para um ato isolado”, lê-se na mesma nota.
Ao longo do dia, outras figuras políticas estiveram no local, como Ana Catarina Mendes, ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, e Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Já José Luís Carneiro mostrou-se disponível para se deslocar à Assembleia da República para esclarecer todas as matérias de segurança que os partidos entenderem.

PJ continua a investigar
A Polícia Judiciária (PJ) continua a investigar o caso. Em conferência de imprensa, realizada na manhã desta quinta-feira, o diretor nacional da PJ, Luís Neves, afastou a possibilidade de “ataque terrorista” e apontou para que os acontecimentos possam ter resultado de um “momento de surto psicótico” de Abdul Rashid.
“Logo após o conhecimento destes factos, foi ativada a unidade de coordenação anti-terrorista, na perspetiva de aportar mais e melhor informação. Relativamente aos factos (…) o que podemos dizer é que estão afastadas todos os sinais de que possamos estar aqui perante um crime terrorista, está praticamente afastado”, afirmou. Luís Neves disse ainda que “todos os indícios apontam para um crime de natureza comum e o que pode estar aqui é um momento de surto psicótico, mas isso só uma perícia psiquiátrica poderá avaliar”. “Já falámos com o autor da prática destes factos e já temos bastante informação, que vai ao encontro do que referi. Não posso falar muito mais sobre este assunto, mas posso dizer que passou por um momento psicótico, é por aí”, acrescentou.
Entretanto, a PJ está à espera de um mandado judicial para realizar buscas à casa do suspeito, em Odivelas, indicou Luís Neves.