A vida é um processo cognitivo. Não é possível imaginar a vida sem cognição: como se pode, de facto, pensar que um ser vivo não tenha a capacidade de resolver problemas? Que não seja capaz de, numa palavra, ser “inteligente”? Para sobreviver, até o mais simples dos organismos precisa de conseguir resolver problemas a qualquer momento da sua existência. Em contraste com esta observação óbvia, o Homem sempre defendeu ser o único – ou um dos poucos – ser inteligente. Sem dúvida, o mais inteligente e com pouco ou nada a partilhar com os restantes seres vivos. Para corroborar esta representação, fora da Natureza e superior a ela, imaginámos as nossas características como sendo únicas. A principal fonte da nossa suposta superioridade encontra-se, obviamente, no nosso enorme cérebro e na sua tremenda capacidade lógica, que lhe permite fazer coisas que os outros seres vivos não têm a capacidade de fazer: nós escrevemos, pintamos, elaboramos teorias, compomos sinfonias. Mas esta habilidade distingue-se realmente das dos outros seres vivos? E, sobretudo, implicará uma condição de superioridade em relação a outros seres vivos?
Comecemos por responder à primeira pergunta. O Homem sempre procurou definir conceitos como a inteligência, a mente e a cognição de forma a limitá-los a si mesmo. Para o fazer, elaborou conceitos cada vez mais limitados de inteligência e cognição. Mas os resultados não foram os esperados. A inteligência é a capacidade de usar instrumentos? São tantos os animais que usam instrumentos. A inteligência tem que ver com a capacidade de ter um pensamento abstrato? Muitos primatas (e não só) são capazes de elaborar conceitos abstratos. A inteligência deve ser estudada como um princípio biológico verdadeiro e próprio: algo muito semelhante ao modo como encaramos a reprodução. A capacidade de reprodução pertence a todos os seres vivos. A vida reproduz-se, a vida cria-se a si mesma; a reprodução é um princípio fundamental da vida. Quem alguma vez pensaria em afirmar que só nós, seres humanos, nos reproduzimos? É certo que existem sistemas diferentes e muito complexos: nós, seres humanos, reproduzimo-nos segundo sistemas realmente complexos; as plantas têm sistemas reprodutivos extremamente originais; os fungos, os insetos e as bactérias reproduzem-se de maneiras tão distintas que são fenómenos dificilmente comparáveis. Contudo, todos têm em comum o mesmo resultado: a reprodução da vida. E, na verdade, a reprodução tem a definição mais ampla possível: a capacidade de se multiplicar. Sem considerar as suas especificidades.
As particularidades humanas não são significativas em relação ao modo de reprodução de outras formas de vida. Devemos encarar a inteligência da mesma maneira: considerando-a uma propriedade fundamental da vida que deve ser definida da forma mais ampla e inclusiva possível. Por exemplo, designando-a como a capacidade de resolver problemas, uma característica comum a todos os seres vivos. Neste ponto, devemos perguntar-nos: de onde vem esta ideia de superioridade? Como viemos a inserir-nos numa categoria distinta da dos outros seres vivos, e superior a eles? Certamente cada um de nós se considera melhor do que, por exemplo, uma vaca, um damasqueiro, um verme ou uma bactéria; quem disser o contrário mente. Darwin escreveu: “A evolução premeia o mais adaptado.” Trata-se de uma lei à qual não podemos subtrair-nos. Uma lei que tem a mesma validade da da gravitação universal. Porque não usou Darwin a palavra “melhor” em vez de “mais adaptado”? Porque o termo “melhor”, no contexto da vida, não faz qualquer sentido. “Melhor” em relação a quê? “Melhor” só tem sentido se existe um objetivo. Pensemos num exemplo: se o objetivo for saltar mais alto, quem saltar 2,10 metros é melhor do que aquele que salta apenas dois metros. Contudo, o aspeto essencial da vida é que o seu objetivo final é a capacidade de sobreviver e propagar a própria espécie. Agora que temos estas questões mais esclarecidas, pensemos se o ser humano, com a sua inteligência particular e graças ao seu enorme cérebro que permite a elaboração de teorias, sinfonias, sonetos, etc., é mais ou menos adaptado à sobrevivência do que as outras espécies. Adotando esta perspetiva mais correta, é inevitável que mudemos de ideias acerca do facto de ele “ser melhor”. Na verdade, estima-se que a vida média de uma espécie seja de cinco milhões de anos. Existem, portanto, espécies ainda mais longevas: pensemos nas coníferas, nos fetos, nos almíscares, ou mesmo nos crocodilos, todas espécies que surgiram há muitas dezenas de milhões de anos e que ainda existem. Ainda assim, concentremo-nos apenas na duração média: cinco milhões de anos. O Homo sapiens surgiu há cerca de 300 mil anos. Para termos a certeza de que o nosso enorme cérebro – o órgão de que tanto nos orgulhamos – seja uma verdadeira vantagem evolutiva, teremos primeiro de passar a bitola dos cinco milhões de anos. Na verdade, se sobrevivermos mais quatro milhões e 700 mil anos, estaremos apenas na média das outras espécies; temos de superar este limite para demonstrar, em termos darwinianos, que o nosso cérebro é uma vantagem. Imagino que, depois de considerada a possibilidade de a nossa espécie sobreviver outros quatro milhões e 700 mil anos, o número de pessoas inclinadas a sentirem-se melhores do que um damasqueiro diminua consideravelmente. Contudo, é este o sentido da evolução. Um damasqueiro não pode fazer muito para se extinguir; uma vaca tão-pouco. Mas ambas as espécies se extinguirão, como tantas outras, apenas em consequência de modificações ambientais tão extensivas que não permitirão a sobrevivência da espécie. Trata-se, felizmente, de eventos catastróficos que acontecem em intervalos de milhões de anos. Já a espécie humana, pelo contrário, produz, sem solução de continuidade, como numa linha de montagem, sempre novas possibilidades de causar a própria extinção. Em todo o caso, se nos extinguirmos antes de passarem mais quatro milhões e 700 mil anos, teremos demonstrado que possuir um cérebro tão desenvolvido não constitui qualquer vantagem. Veremos.
Pessoalmente, sou um otimista. Estou convencido de que o nosso cérebro é realmente uma vantagem evolutiva, só o facto de existirmos há 300 mil anos é que ainda não nos permitiu utilizá-lo da forma correta. A esse propósito, gostaria de fazer ver aos pessimistas – sei que são muitos – que quando se fala, por exemplo, de um dos maiores problemas da nossa espécie em termos de perspetivas de futuro, o aumento da população, estamos a esquecer o outro lado da moeda. A questão é: como faremos em 2050 – quando formos dezenas de milhares de milhões – para sobreviver? Pensando apenas em termos de consumo de recursos, como se fôssemos uma praga de gafanhotos, o pessimismo poderia parecer razoável. Mas não somos gafanhotos, e temos de ter em conta que estes três mil milhões de pessoas que se juntarão a nós nos próximos 30 anos representam mais três mil milhões de cérebros pensantes. Um recurso imenso! O verdadeiro problema é deixar que estes três mil milhões de pessoas sejam livres para pensar. Se isso acontecer, tenho a certeza de que as vantagens que teremos serão muito superiores em relação aos recursos relativamente limitados que servirão para nos sustentar.
*Stefano Mancuso é uma das autoridades de maior renome mundial na área da Neurobiologia Vegetal. É professor associado na Universidade de Florença e dirige o Laboratório Internacional de Neurobiologia Vegetal. É autor de vários best-sellers internacionais de divulgação científica, entre os quais A Nação das Plantas (Editora Pergaminho)