Há um mês, Portugal ouviu falar de Florence Nightingale, numa das raras boas notícias relacionadas com a pandemia do novo coronavírus. Num agradecimento público à equipa de saúde que lhe salvou a vida nos cuidados intensivos do Hospital de Saint Thomas, em Londres, após ter contraído a Covid-19, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, destacou e nomeou um enfermeiro português, Luís Pitarma, 29 anos (a par de uma enfermeira neozelandesa, Jenny McGee).
Quando, já em recuperação, Boris Johnson quis saber pormenores sobre ele, Luís Pitarma disse-lhe que “sempre tinha sonhado trabalhar no Saint Thomas” desde que começara o curso de enfermagem em Portugal, em 2009, “pelo que aprendi sobre Florence Nightingale e a sua ligação àquele hospital”, contou depois o profissional a uma publicação do Serviço Nacional de Saúde britânico. Luís Pitarma não pôde dizer que tirou o curso numa universidade. Em Portugal, as Escolas Superiores de Enfermagem continuam incluídas no “ensino superior politécnico não integrado”, uma comprida expressão que as coloca no patamar abaixo da licenciatura universitária. Assim está no nosso país a profissão agora tão aplaudida (à imagem dos médicos) pelo socorro que presta aos doentes com Covid-19.

Recuemos 160 anos, até ao dia inicial do sonho de Luís Pitarma, aquele em que, em 1860, Florence Nightingale fundou uma Escola de Enfermagem no Hospital de Saint Thomas. Uma revolução: quem dirigia a escola era uma enfermeira (ela, Florence), a seleção de candidatas baseava-se em critérios que iam da condição física à aptidão profissional, passando pelos aspetos morais e intelectuais. E, sobretudo, foi introduzido o ensino teórico e esquematizado da enfermagem. Terminava a desqualificação da enfermeira, como alguém que fazia pouco mais do que distribuir remédios e aplicar emplastros.
Na escola de Nightingale já se ensinavam boas práticas de controlo da infeção, e que ainda hoje vigoram e são usadas, por exemplo, no combate ao coronavírus, como a lavagem frequente das mãos e a triagem, com a separação física de doentes por grau de gravidade, para que se lhes preste os cuidados de acordo com o estado que apresentam.
Com base no conhecimento epidemiológico da época, Nightingale redirecionou a ação da enfermagem para um processo reparativo da doença através da utilização do ar puro, da luz e do calor, da limpeza, da higiene, do repouso e da dieta como um mínimo essencial das energias vitais do paciente.
Adeus, família rica
Florence Nightingale nasceu a 12 de maio de 1820 (faz agora 200 anos) numa aristocrática e abastada família britânica, que se movia nos mais altos círculos – o seu pai, William Edward Nightingale, era um proprietário de terras riquíssimo. Embora fosse alvo de uma educação esmerada, incomum para as raparigas da época (aprendeu Literatura, Matemática, História, Filosofia, Grego e Latim), Florence tinha o destino traçado na muito conservadora sociedade vitoriana: casar-se, ser uma esposa submissa e gerar descendência.
Foi em visitas a doentes que fazia com a sua mãe que a cabeça da jovem começou a mudar. Às tantas, iniciou um trabalho regular junto de aldeões doentes. Daí à decisão de se tornar enfermeira foi menos do que um passo. A família não aceitou a sua opção e o conflito durou 16 anos – até a filha rebelde vencer.
Seria em ordens religiosas católicas que Florence aprenderia, como leiga (era devota, mas fiel à igreja Anglicana), os primeiros passos da “enfermagem disciplinada” que mais tarde adotou: regras e horários rígidos, associação da religiosidade à profissão, obediência à hierarquia e humildade. Acreditava, aliás, que tinha sido Deus a chamá-la para se tornar enfermeira.
Florence Nightingale considerava a enfermagem uma arte – e é
Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros
No seu livro mais conhecido, Notas sobre Enfermagem, publicado pela primeira vez em 1859, a celibatária Florence Nightingale escreveu que qualquer enfermeira “deve ser estritamente sóbria, honesta e, sobretudo, uma mulher religiosa e devotada”. Tinham por certo essas características as enfermeiras voluntárias que chefiou em Scurati, na atual Turquia, no socorro aos soldados britânicos feridos nas batalhas da Guerra da Crimeia (1853-1856), que opôs o Império Russo a uma coligação que juntava o Reino Unido, a França, o Império Otomano e o Reino da Sardenha, com o apoio do Império Austríaco.
No terreno, Nightingale deparou-se com falta de camas, condições sanitárias deficientes e tratamento incorreto dos doentes. Criou então cinco cozinhas dietéticas, uma lavandaria, e salas de café e de leitura. As enfermeiras faziam rondas noturnas com uma lâmpada para observar o estado dos soldados. Resultado: o índice de mortalidade entre os militares feridos diminuiu de 42% para dois por cento. Não admira que Nightingale tenha sido depois chamada para organizar, na Crimeia, outros dois hospitais militares.
Quando regressou a Londres, em 1856, os jornais chamavam-lhe “anjo da guarda dos soldados” e “dama da lâmpada”, atribuindo-lhe atos heróicos. Nightingale quebrara os preconceitos existentes em torno da participação da mulher no Exército e do valor da “enfermagem profissional”.
Homem não entra
Luís Pitarma, o enfermeiro português a quem Boris Johnson dirigiu o agradecimento público por lhe ter salvado a vida, não se safava com Florence Nightingale, apesar de a admirar. Na mesma medida em que se opunha à entrada de mulheres na profissão médica, Nightingale não aceitava homens na enfermagem. Há quem ainda hoje responsabilize a “dama da lâmpada” por ter tornado a enfermagem uma “profissão feminina”. Portugal reflete-o: do total de 75 928 enfermeiros, 82% (62 438) são mulheres e apenas 18% (13 490), homens.
Os detratores de Nightingale atribuem-lhe “manipulações maquiavélicas”
Mas será que, mais de um século e meio depois, faz sentido continuar a lançar culpas sobre Nightingale? Aliás, aos seus detratores, que se definem como “desconstrutores do mito”, não faltam razões para críticas eternas – Nightingale (que morreu em 1910, aos 90 anos) negou-se a participar no movimento das sufragistas, no final do século XIX, e opôs-se à contemporânea Ethel Fenwick, que defendia o ensino universitário da enfermagem (a “dama da lâmpada” restringia-o à prática hospitalar) e a criação de um organismo, constituído por enfermeiras, que tomasse em mãos o destino da profissão. Apesar da oposição de Nightingale e dos seus aliados ligados aos hospitais, aquele organismo seria mesmo fundado, chamando-se hoje Conselho Internacional de Enfermeiros (CIE), e a licenciatura universitária de enfermagem espalhar-se-ia um pouco por todo o lado, com exceções como Portugal.

O conflito com Ethel Fenwick é apresentado pelos detratores de Nightingale como um exemplo das “manipulações maquiavélicas” da “dama da lâmpada” para manter o seu poder. Mas o certo é que, por escolha já antiga do próprio CIE, o Dia Internacional do Enfermeiro assinala-se na data de nascimento de Florence Nightingale – o que diz muito sobre o seu legado de fundadora da “enfermagem moderna”. Esta terça-feira, 12 de maio, as comemorações em Portugal, condicionadas pela pandemia da Covid-19, limitar-se-ão a uma conferência via internet, com intervenções do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, da ministra da Saúde, Marta Temido, e da bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco.
“Do ponto de vista prático, tudo o que Florence Nightingale idealizou ainda hoje está perfeitamente atualizado”, diz à VISÃO a bastonária dos enfermeiros. As controvérsias, acrescenta Ana Rita Cavaco, são “pressupostos que remetem para o tempo em que ela viveu”, e que não eliminam o lema sempre defendido por Nightingale: “Considerava a enfermagem uma arte – e é.”