Barbara Jane leva a mãe a almoçar fora todas as primeiras segundas-feiras do mês. E assim foi na semana passada. B.J., como a realizadora e produtora é conhecida, tem quase 70 anos. A mãe, Dorothy, 98. Mas não comem sozinhas: um grupo de perto de vinte amigos, homens e mulheres, reúne-se com elas no Ponto de Encontro, simpático restaurante no Carvoeiro, de fácil acesso para quem já não tem a agilidade da juventude. O dono do espaço, Paulo, conhece-os pelo ‘Clube dos 100 anos’, um bando animadíssimo liderado por Charles Every – que completou precisamente um século em janeiro.
“Lembro-me de lhe ter dado os parabéns e ele me responder que estava muito triste: ‘Já não tenho amigos da minha idade, morreram todos. Agora, tenho de fazer outros’”, conta o português.
B.J. e Dorothy estão entre esses novos amigos. Todos os meses, na semana que antecede aquela primeira segunda-feira, recebem o telefonema de Charles a convocá-las para o almoço. As duas vivem no Algarve desde o início dos anos 60 – e, apesar do português com sotaque acentuado, já são mais portuguesas do que britânicas.
A história delas compõe bem essa imagem. Há muitos, muitos anos, Dorothy e o marido, Royston, já falecido, eram colonos britânicos na Tanzânia quando a independência do país os empurrou para uma aventura pela estrada fora. Foi assim que deixaram a sua casa perto do lago Victoria e seguiram até Mombaça, no Quénia, onde embarcaram num navio rumo à Europa. Chegaram ao porto francês de Marselha com os filhos e um carro, e aí decidiram virar à esquerda. Só pararam na Praia da Rocha, em Portimão. Com as poupanças compraram o Hotel Pinguim. E ali criaram os filhos. BJ era adolescente e entretanto já morou um pouco por todo o mundo – mas voltou sempre. Mesmo o filho que teve com um dinamarquês, Kristjan, também cresceu naquelas bandas.
“A verdade é que sou uma filha do Algarve. Por isso nem hesitei em produzir o filme que, há dois anos, o meu filho quis realizar”, revela. Falamos de O Sonho Certo, uma espécie de declaração de amor à região em forma de longa-metragem, e que conta a história de um inglês decidido a mudar de vida e a dedicar-se ao negócio das laranjas. Este The Right Juice, no original, é também uma parábola sobre como a fleuma britânica se adapta ao espírito português – ensinamentos que muitos já interiorizaram.
“Quando cheguei aprendi rapidamente o significado de ‘amanhã’. Quando respondi ‘tomorrow’, retorquiram que não. Significa ‘not today’. Quer simplesmente dizer que não é hoje”, há de dizer-nos Paul Luckmann, 70 anos, diretor do The Portugal News, jornal britânico de maior tiragem na região, sediado em Lagoa – um inglês que chegou antes de 1974 e ficou porque em lado algum do planeta se fez uma revolução assim, sem sangue. “É o melhor lugar do mundo para quem está reformado. Ok, a vida aqui não é perfeita, mas onde é? Vocês deviam ter mais orgulho do vosso país.”
A maioria dos convidados do centenário Charles Every já está sentada na esplanada do Ponto de Encontro, petiscando azeitonas e cenouras à algarvia, cheias de alho, salsa, azeite e vinagre. Falta pouco para a uma da tarde. Olhando para o grupo, são praticamente todos altos e louros, de pele muito branca, a mesma que às vezes o sol deixa num vermelho vivo. Como repetem vezes sem conta ‘come on’ ganharam a alcunha de ‘camones’, mesmo que hoje a maioria já seja residente.
“Bom, somos imigrantes, não é?”, acabará por nos reconhecer, horas depois, Fiona Almeida, 50 anos, e que está há cinco a trabalhar no restaurante Fim do Mundo, em Ferragudo, a poucos quilómetros de Portimão, um dos mais cotados no Trip Advisor. “Sou também presidente da Associação de Pescadores… Sim, têm uma bifa como presidente”, segue, em resposta ao nosso olhar de espanto, enquanto nos conta que a construção erguida no cais, para ajudar a manter a pesca artesanal ali na terra, foi feita com dinheiros da União Europeia. “Somos todos europeus, não é?”
Por enquanto…
À espera do resultado
Essa a questão que é impossível ignorar nos dias que correm e que também há de ser discutida à mesa do tal almoço do Clube dos 100 anos. O Brexit (Britain somado a exit – saída, no caso da União Europeia) não diz respeito apenas à ilhota do outro lado do canal: quando a 23 de junho os britânicos responderem sim ou não a ficarem na União Europeia, a decisão vai afetar tanto os que vivem no Reino Unido como os que vivem além fronteiras, um número que ultrapassa os dois milhões (ver caixa), segundo o Institute for Public Policy Research, o instituto britânico de estudo das políticas públicas.
Longe dos resultados das sondagens, que mostram um povo dividido entre sair ou ficar, e do resultado do referendo, daqui a uma semana, os camones do Algarve já sabem bem que pode haver muito mais a perder do que a ganhar para quem vive além-fronteiras.
“A incerteza sobre o futuro está a fazer os investidores refrearem os seus ânimos, e a deixarem contratos para depois”, confessa Douglas Knight, 50 anos, gerente imobiliário no resort Vale de Oliveiras, ali bem perto do Carvoeiro.
Douglas veio há três anos da Escócia, com a mulher e a filha, convencido de que não ficaria mais de dois anos, a tempo de ir celebrar o seu meio século a casa. Só que… “Elas adoram a vida cá. Bom, e eu também.” Claro que vai votar contra o Brexit.
Já na mesa de Charles e seus amigos, essa questão não se põe: a maioria está fora há muitos anos e é sabido que só pode votar quem tiver deixado o Reino Unido há menos de 15 anos.
“Na verdade, vai excluir muito mais pessoas: o que diz este regulamento é que quem se tiver registado para votar no Reino Unido há mais de 15 anos agora não vota. Eu, por exemplo, só vim para cá há 13 anos. Mas, como a última vez que votei foi há 18, agora não me deixam registar” Quem se queixa é Michael Reeve, o presidente da AFPOP, sigla inglesa para Associação de Proprietários Estrangeiros, organização fundada há 28 anos, e com sede em Portimão, onde também se instalou desde sempre o consulado britânico. Aliás, é na zona do Barlavento que vivem, de acordo com o Census de 2011, a maior parte dos britânicos do Algarve. Os números oficiais falam em poucos milhares; as estimativas variam entre os 39 mil e os 100 mil, em Portugal.
Mas Mike, o presidente da AFPOP, não se calou perante esse argumento de não votar há mais de 15 anos, e contestou. A carta seguiu no início de abril para David Cameron, Downing Street, 10, e começava por Dear Prime Minister. O pedido foi recusado: dada a expectativa de que o voto dos expats (nome chique que os britânicos que vivem fora gostam de dar a si mesmos…) fosse pelo sim à Europa, considerou-se isso iria perverter os resultados. “Mas assim também, vai, não é?”, insurge-se o inglês.
O sonho certo
Sair ou não sair é a questão, mas para a maioria dos britânicos com que nos cruzámos, neste raide à zona onde mora a maior parte, ficar é seguramente a resposta. Essa foi também a opção que Alison Blair, 65 anos, fez há uma década, quando veio com o marido. “Ele já estava reformado, eu pensei que podia dar consultas como psicóloga em part-time.”
Nada disso aconteceu. Instalada na Praia da Luz, tristemente conhecida desde o desaparecimento de uma menina inglesa, Maddie, em 2007, Alison decidio antes fundar uma associação sem fins lucrativos (Madrugada de seu nome) para ajudar pessoas nos últimos dias das suas vidas, e cujo primeiro patrono é o músico Cliff Richard, outro britânico apaixonado pela região há mais de 40 anos.
“O referendo não devia ser sobre sair ou ficar, mas sobre a forma de desafiar a Europa a procurar soluções para os problemas que nos inquietam”, aponta Alison, já mais que convertida a Lagos, ela que canta jazz nos tempos livres e ainda há pouco tempo se estreou em concerto com a orquestra municipal.
À mesa do centenário Charles, o almoço já está quase no fim, quando chegam os doces da casa e os cafés. Só há uma voz dissonante. “Queria mousse de limão com uma bola de gelado”, pede John. Também sobre o Brexit, apenas ele, do alto dos seus 89 anos, assume que, se votasse, seria inequivocamente pela saída. “Vejo que os mais novos não têm qualquer poder sobre o seu destino.” Logo se levanta uma outra voz, num tom entre o indignado e o irónico: “O quê? Vives no Algarve e queres sair da União Europeia?”
Há risadas em volta. Se este é o sonho certo, como conta o filme de B.J. e do seu filho, então o futuro nunca poderia passar por uma ilha sozinha no meio do mar.