Mais do que uma tendência, é uma realidade. Uma verdadeira comunidade, como haveríamos de comprovar num jantar em casa da professora de surf Marta Mealha, na aldeia da Raposeira, concelho de Vila do Bispo, que juntou mais de 50 pessoas. Todas com uma paixão comum, o surf. Por ele, largaram tudo e começaram uma vida nova onde as ondas são mais perfeitas… Para trás, ficaram os horários, o trânsito e a carreira. Ou um certo tipo de carreira. Feitas as contas, saem a ganhar, como garantem, nos retratos que se seguem.
João Rei: O ‘designer’ das ondas
Tinha 12 anos quando, pela primeira vez, se fez ao mar numa prancha. Desde aí, toda a sua vida se encontra ligada ao surf. Algarvio de Faro, João Rei, hoje com 40 anos, é um designer com trabalhos assinados para marcas como Vans, Adidas, MTV, Red Bull ou D&G, e material publicado em revistas e editoras internacionais, como a prestigiada Taschen.
Vive em Sagres há dois anos, onde trabalha como freelancer, tendo focado a sua atividade, quase em exclusivo, no mercado do surf, skate e snowboard. Em meados dos anos 1980, Sagres era o ponto mais próximo de Faro e com ondas de qualidade. As romarias tornaram-se num hábito: “Chegávamos e contávamos os tostões de todo o grupo, para comprar pão, água, leite…”, recorda João. “Na altura, não havia nada, a não ser a magia desta terra, quase irreal para nós, que vínhamos da costa sul.” João começou cedo a fazer as suas próprias pranchas. O fabrico, porém, seria interrompido por um acidente de trabalho, que lhe cortou os tendões de uma mão. Mas continuou ligado ao surf, como praticante e empresário. Com o amigo Nuno Viegas fundou, em 1999, a B-Side, marca de vestuário de surf a sua “grande escola” de design, pois não possui qualquer formação académica na área. “Sou completamente autodidata.” Por essa altura, vivia em Lisboa, mas a vontade de se fixar em Sagres não desaparecera. Sentia-se “cada vez mais apaixonado” pelas ondas, pela paisagem natural, pela calma da vila. A mudança aconteceu em 2008, quando a B-Side acabou. “Foi a altura certa para tentar algo de novo e iniciei uma carreira de freelancer, já aqui na Costa Vicentina.” Acompanhou-o a mulher, Patrícia, enfermeira. Casaram em Vila do Bispo e já deram um bebé à terra, Carolina. Hoje, é o ritmo das marés que comanda as rotinas de João. “Organizo-me em função do surf. Para lá de trabalhar, como toda a gente, consigo surfar, andar de bicicleta ou dar um passeio pela costa com a minha cadela, além de passar muito tempo de qualidade com a minha filha. O que posso querer mais?”
Álvaro Pereira: O pioneiro que veio do calor
No final da década de 1980, foi um dos impulsionadores do surf de competição, em Portugal. Natural de Florianópolis, no Brasil, Álvaro Pereira, 48 anos, até então pouco ou nada conhecia do nosso país.
Um amigo português convidou-o a passar uns dias por cá. E já não regressou. “Conheci uma galera que insistiu comigo para ficar”, lembra. “Comecei por fazer pranchas em Carcavelos. Não conhecia nada de Portugal, além do Roberto Leal e das famosas mulheres com bigode. Não podia estar mais enganado esta terra tem muita mulher bonita; aliás, acabei por casar com uma”, conta, bem humorado, à beira da piscina do Monte do Sol, o empreendimento de turismo rural que inaugurou na Arrifana, Aljezur.
Foi durante as suas deambulações pela costa que conheceu este recanto. Agora, diz que vive “num dos lugares mais bonitos do mundo”. Até há professores da sua filha (Daniela, de 13 anos), em Aljezur, que também são surfistas.
“Quer melhor que isso?” Mas não só: além da hotelaria, continua a fabricar pranchas e tem uma marca de vestuário de surf, a Energia Tropical. Pergunta obrigatória: ali, nas serranias da Costa Vicentina, Álvaro sente-se português ou brasileiro? “Sinto-me bem.”
Pedro Leitão: Formiga no verão, cigarra no inverno
Formado em Gestão, Pedro Leitão, hoje com 29 anos, fixou-se em Aljezur, em 2009, com a mulher, a filha de oito meses e a enteada, de 15 anos. Recebera um convite para se tornar sócio do L-Colestrol, um restaurante que é uma instituição local. “Tinha acabado de regressar de São Tomé, onde trabalhei durante sete meses num hotel”, conta, “e não podia desperdiçar a oportunidade de voltar a um sítio em que fui feliz.” Foi num verão da adolescência, mas nunca mais o esqueceu.
Pedro pratica bodyboard desde os 9 anos e as ondas de Aljezur, de tão irresistíveis, pesaram imenso na opção. É certo que, no verão, raramente vê a praia. “Trabalhamos no duro, do meio-dia às três da manhã.” Mas, nos restantes meses do ano, diz ter “uma qualidade de vida que dificilmente conseguiria noutro local”. O inverno, ali, “é qualquer coisa de muito especial…”
José Nuno, João Vieira e Pedro Barata: Os ‘três mosqueteiros’
O primeiro a chegar foi Pedro Barata, hoje com 30 anos. Natural do Porto, passou uns dias na Arrifana, em 2000. “Apaixonei-me logo”, conta à mesa de uma esplanada na praia de Monte Clérigo, em Aljezur. Depois de terminar o curso de Turismo, começou a pensar que, um dia, haveria de se mudar em definitivo para ali. O clique determinante deu-se após uma viagem à Costa Rica. “Quando regressei, percebi que já não queria voltar a viver no Porto.” Transferiu-se para Aljezur em 2006, e fez de tudo um pouco. Foi empregado de mesa, jardineiro, limpou piscinas… Depois, foi sempre a abrir: tirou um curso de Osteopatia, criou um serviço de spa para turismos rurais e, mais tarde, uma clínica, a In Good Hands. O surf, é claro, tudo moveu. “Não sei se, hoje, sou melhor surfista”, diz.
“Mas sou, com certeza, um surfista muito mais feliz.” Sentado ao lado de Pedro, João Vieira, 30 anos, também do Porto, confessa que invejava a nova vida do amigo. Engenheiro de formação, João transformou-se em fotógrafo de surf e radicou-se, igualmente, em Aljezur. “Neste momento”, diz, “se tivesse de resumir a minha vida numa palavra, seria liberdade.” Touché. À conversa, junta-se José Nuno, 29 anos, instrutor de surf na Algarve Adventures. Começou a dar aulas da modalidade em 2006, na praia de Matosinhos (atividade que conciliava com a profissão de manequim e o curso de Turismo), e sempre teve o “sonho secreto e algo irrealizável” de um dia se fixar na Costa Vicentina. Farto da “sensação de que faltava alguma coisa”, convenceu a namorada, professora de inglês, a partir com destino a um “lugar ideal para constituir família”. Foi o último do grupo a chegar, mas o primeiro a dar um bebé à terra. “Aqui ainda se consegue viver ao ritmo da Natureza. Não há melhor ambiente para uma criança crescer”, exulta.
Rodrigo Machaz: Fã do ‘less is more’
Rodrigo Machaz, 40 anos, tinha o destino traçado à nascença o avô foi o fundador dos hotéis Tivoli e tanto o pai como os tios dirigiram estabelecimentos hoteleiros. Mas não imaginava que seria em Sagres, o seu destino de férias de infância, que encontraria o paraíso que procurou em diversos lugares do mundo.
“Sempre quis equilibrar a minha vida profissional com a pessoal”, explica. “Pratico mergulho, surf e vela o mar é essencial para mim.” Longe vão os tempos da sua vida anterior, cosmopolita e atarefada (no Four Seasons de Vancouver, num hotel em San Diego, na Califórnia, como diretor de operações do Ritz, em Lisboa).
Rodrigo está agora sentado na esplanada (com vista para o mar, claro) do Memmo Baleeira, o hotel design que inaugurou em 2007, junto ao porto da Baleeira, em Sagres. Esta unidade de quatro estrelas, de decoração minimalista e contemporânea, substituiu um antigo hotel, fundado nos anos 1960, e, desde então, tem atraído uma clientela jovem e sofisticada, vinda dos quatro cantos do mundo. “A estrela, aqui, não é o hotel, mas a paisagem, a natureza, o mar…”, diz Rodrigo. “Queremos que os nossos hóspedes saiam, conheçam as praias, em vez de passarem o dia inteiro na piscina.” O Memmo tem como símbolo um camaleão, representativo da capacidade de adaptação ao meio envolvente. Um conceito que Rodrigo possui, literalmente, tatuado na pele exibe um camaleão no ombro. Fiel ao princípio, Rodrigo apostou na integração do projeto na comunidade. Muitos dos seus 40 empregados trabalhavam no antigo hotel. “Mantivemos o staff e demos formação. Também fizemos uma festa de pré-inauguração, só com os comerciantes locais.”
Rodrigo joga futebol ao lado do carteiro da terra e de militares da GNR. “Sou apenas mais um…” Arriscou e ganhou: “Tiro proveito de tudo”, conta. “Posso surfar à hora de almoço ou apanhar umas ondas com o meu filho [Joaquim, de 9 anos] ao fim da tarde, depois de o ir buscar à escola. Acredito, cada vez mais, que less is more…”
Marta Mealha e Rita Bueri: Amazonas do mar
Instrutoras de surf, Marta Mealha e Rita Bueri criaram um programa de treinos vocacionado para mulheres. Marta, 38 anos, é natural de Faro, e Rita, 36, veio de Cascais.
Conheceram-se em Sagres e tornaram-se sócias neste projeto de surf no feminino. A primeira a chegar foi Marta. Estudou Relações Internacionais, de que tem uma pós-graduação, e possui formação em jornalismo, pelo Cenjor. Mas foi no surf que encontrou o que sempre procurara. A mudança de agulha deu-se num mês de férias de verão, na praia do Amado. Arranjou emprego como rececionista num surf camp. “Fazia um pouco de tudo, mas o mais importante foi as pessoas que conheci”, lembra. “Mostraram-me que a vida não é só dinheiro e carreira.” Quando voltou a Lisboa e ao trabalho, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, sentiu-se uma alien. Sempre que podia, fugia para a Costa Vicentina. Até que tirou o curso de treinadora e, em 2004, mudou-se para Sagres. Hoje, vive na Raposeira, em Vila do Bispo. “Foi a melhor opção que fiz na vida…” Já no caso de Rita, a Costa Vicentina era um amor antigo. Estudou Economia e tem duas pós-graduações em Imobiliário, a área em que trabalhava, em Cascais, antes de rumar a sul. Sempre que ia de férias a Sagres, o cheiro da terra dizia-lhe que o seu lugar era ali.
“Quando partia, sentia uma tristeza enorme.” Até que, um dia, ficou mesmo. Vive em Sagres há sete anos, com o filho Santiago e a cadela Mar, que, tal como a dona, “também apanha umas ondas”. Naquela altura, recomeçou a surfar, após uma tentativa falhada por volta dos 16 anos. “Na minha adolescência, o surf era um desporto quase proibido às raparigas”, recorda. Deu aulas da modalidade nos últimos dois anos e, agora, quer aliar o surf a algo mais. “Pode funcionar como terapia para muitos problemas e é por aí que, neste momento, quero ir…”