VEJA O VÍDEO DA ENTREVISTA A MIGUEL CARVALHO NA SIC NOTÍCIAS
Quando, em agosto de 2010, o redator da VISÃO Miguel Carvalho se deslocou a Vieira de Leiria para recolher eventual matéria de interesse jornalístico na terra de origem de Lúcio Tomé Feteira, estava longe de imaginar que durante os doze meses seguintes uma imprevista obsessão por aquela mancha de casario baixo perdida no grande pinhal lhe preencheria quase por completo os dias e as noites. Quem diz Vieira diz os seus habitantes, uma população sofredora, desde há gerações calcada por uma ou duas dinastias de industriais com inegável talento para a acumulação de capital e mais do que duvidosa veia filantrópica.
Miguel Carvalho, 41 anos, da delegação do Porto da revista, fora incumbido de escrever sobre o misterioso e mediático assassínio, ocorrido por esses dias no Brasil, de Rosalinda Ribeiro, antiga secretária e companheira afetiva do milionário vieirense falecido em 2000, com quase 100 anos. A ida à freguesia de onde Feteira partira à conquista de um império haveria de originar uma obra em dois volumes cujo primeiro tomo vai aparecer na próxima semana nas livrarias, com a chancela da Quidnovi: Lúcio Feteira, a história desconhecida.
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levara a conhecer o gelo.” Assim principia o romance de Gabriel García Márquez Cem anos de solidão, simultaneamente primeira pedra e pedra-de-toque do “realismo mágico” latino-americano. Miguel Carvalho acha – e bem – que a história da família Feteira de Vieira de Leiria tem sobre a dos Buendía da fictícia Macondo a vantagem de ser verídica, sabendo-se como se sabe que a realidade suplanta quase sempre a ficção quando se trata de imprevisibilidades, loucura, excessos, ódios, amores, vinganças e crimes.
E de todos estes ingredientes é feita a saga dos Feteira, que Miguel Carvalho faz arrancar em meados do século XIX e traz até aos começos desta segunda década do século XXI, ou seja, desde a fundação da fábrica das “melhores limas do mundo” no coração do pinhal de Leiria até ao homicídio a tiro de Rosalinda Ribeiro numa estrada de Maricá, um subúrbio distante do Rio de Janeiro feio por ação humana e bonito por natureza.
Um mundo de aventuras
Antes de entrar na história de Lúcio Tomé Feteira, o elemento mais famoso da família, Miguel Carvalho foi levado pelas suas horas de conversas gravadas e pelas escavações que fez em arquivos locais e nacionais a desvendar os capítulos esquecidos de uma saga que dará excelente tema para uma série de televisão que se espera que não tarde.
Tudo começou quando, pouco depois das Lutas Liberais, Joaquim Tomé fugiu de Mira para Vieira tal como Maomé fizera de Meca para Medina – para escapar à fúria dos conterrâneos. Acerca de um filho deste vindo à luz em 1847, Joaquim também, esperto, empreendedor e maçon, começou a constar pelo Pinhal do Rei que tinha pacto secreto com o diabo ou seres equivalentes, dos quais teria recebido o segredo da têmpera do aço com que fabricava as limas na indústria familiar que fundara. Não se tratava, bem entendido, de magia, mas de uma ciência empírica com odores alquímicos por onde passava uma dose certa de pó de corno de boi. O primeiro Feteira das limas teve uma dúzia de filhos de ambos os sexos, nascidos entre 1880 e 1904 – e a história de cada um deles dava tema para um romance. O mais velho, ainda Joaquim, único elemento da família arrebatado pelos ideais de esquerda, viveu na América do Sul as mais extraordinárias aventuras, incluindo um levantamento dos operários das obras de construção do Canal do Panamá, que lhe valeu a prisão e a condenação à morte. Comutada a pena em expulsão do território panamiano, atravessou toda a Amazónia, viveu como os índios, empenhou-se nas lutas laborais dos trabalhadores de uma linha férrea da selva e foi de novo condenado à pena máxima. Morreria afinal de forma prosaica, ao ingerir grande quantidade de água gelada no hospital de um cu-de-judas.
Dos outros irmãos machos, cada um teve a sua vocação específica, mas todos eles arrastaram em comum a atração pelo empreendedorismo industrial, num constante fazer e desfazer de empresas, e uma irrefreável atração pelo belo sexo que os levaria a abusar das camponesas e operárias da zona, cuja existência parecia justificar-se pelos serviços prestados aos senhores. A tal ponto foi levada esta prática totalitária que ainda hoje, na Vieira, terra de abundante paternidade incógnita, muita gente não sabe de quem é filha. Deste clã haveria de salientar-se Albano, protótipo do prepotente patrão salazarista com pelos no coração, sovina a tempo quase inteiro, esmoler quando tinha público, cobridor compulsivo de solteiras e casadas, morto já pós-25 de Abril, senil e rejeitado pela descendência legal. Naturalmente educadas para a subserviência, as mulheres (ou meninas) da família viveram as esperadas existências obscuras que lhes competia, mesmo assim iluminadas pela “santidade” de Olímpia, a queda na abulia da “maria-rapaz” Bernardina e os assanhamentos monárquicos de Júlia.
O grande industrial
Lúcio, de longe o mais famoso dos Feteiras, é o foco óbvio do grosso da investigação de Miguel Carvalho. Personagem fascinante porque contraditória, sonhou ser um grande industrial da estirpe de Alfredo da Silva, e se falhou nesse objetivo foi por pouco. Para alimentar o sonho de grandeza, para o qual partiu depois de ter levado uma juventude estroina na Paris dos Loucos Anos Vinte, não receou afrontar Salazar, sem deixar de ser um apoiante do Estado Novo.
Este paradoxo ergueu um muro de mistério em torno da personagem, sabendo-se como se sabe que financiou conspirações contra o regime aliando-se na sombra a Henrique Galvão, Palma Inácio e outros ativistas de recorte romântico. Tais andanças na noite e no nevoeiro, que lhe valeram estar na constante mira na PIDE, são no livro investigadas com rigor.
O perfil do homem é, aliás, traçado com minúcia, entrecruzado com o do capitalista, com o qual se confunde. Louco por saias como todos os Feteira, mantinha a cônjuge no altar da indiferença e no limbo da distância enquanto corria o mundo de avião (uma opção ainda algo pioneira nos idos de 1950) acompanhado por secretárias pressurosas e maternais, fazendo negócios e por vezes contornando ou pisando lealdades.
As circunstâncias do mediático assassínio, no ano passado, de Rosalinda Ribeiro, a última das secretárias-companheiras do milionário vieirense possuem – sobretudo devido ao envolvimento direto no processo do advogado e antigo líder parlamentar do PSD Duarte Lima – todos os ingredientes para apaixonar a opinião pública, quer pelo mistério policial em si quer pela obra de Miguel Carvalho, cujo segundo volume, a lançar na próxima primavera, promete ajudar a fazer luz nas trevas.
Três lançamentos
Lúcio Feteira, a história desconhecida, que chega às livrarias no dia 21, terá três sessões de lançamento. A primeira, dia 26, no auditório da Junta de Freguesia de Vieira de Leiria, com apresentação do vice-presidente da CM da Marinha Grande, Paulo Vicente, e do antropólogo Francisco Oneto Nunes. A segunda, dia 4 de dezembro às 17 horas, em Lisboa, na FNAC-Chiado, com a presentação de Mário Zambujal. A terceira a 9 de dezembro no Porto, na FNAC-Norteshopping, pelas 22 horas, com apresentação de Carlos Daniel. E às três será de vez.