Apareceu mais uma tenda na esquina da Almirante Reis com a Rua Nova do Desterro, no antigo Hospital do Desterro, no centro de Lisboa. É mais uma, porque nos últimos meses multiplicam-se as pessoas forçadas a viver assim na rua. Mas esta tem uma carga simbólica. Está ali por pouco tempo, só o suficiente para denunciar um contrato em que o Estado vendeu um terreno por um preço, à luz das médias especulativas, pouco mais do que simbólico a um privado a quem a Câmara de Lisboa deu licença para construir mais um hotel e habitação de luxo.
“Este terreno foi vendido por 10,5 milhões de euros em dezembro de 2021 pela Estamo a um privado. Entretanto, houve alteração ao PDM que permite aqui a construção de um hotel e de habitação de luxo”, conta à VISÃO Nuno Ramos de Almeida, um dos organizadores do protesto que antecipa as manifestações convocadas pela plataforma Casa Para Viver, este sábado, por todo o País.
Terreno de luxo a preço de saldo
Ramos de Almeida faz as contas ao negócio. “Com uma área edificável de 18.705 metros quadrados, isso significa que a Estamo, que é do Estado, vendeu o metro quadrado a 561,32 euros”.
Os números do INE, divulgados em julho, apontam para um preço médio de 4.190 euros o metro quadrado em Lisboa. Quase dez vezes mais do que a Manside Investments pagou à Estamo, oito anos depois de ter assinado um acordo com a Câmara de Lisboa para a reabilitação do antigo Hospital do Desterro.
Na altura, no Idealista, a promotora anunciava que naquele espaço ia nascer um hotel de quatro ou cinco estrelas e uma “componente de alojamento mais descontraído”, ambas geridas pela Zero Hotels. O projeto ainda contempla uma área de restauração.
“O preço médio do metro quadrado é esse, mas aqui estamos a falar do centro de Lisboa, na colina de Santana. Mesmo que gastem o dobro em obras do que pagaram por metro quadrado, isso significa que um apartamento de 100 metros quadrados teria um preço de custo de 56 mil euros, um apartamento que podem vender por milhões”, denuncia Nuno Ramos de Almeida, para quem a história deste negócio é uma ilustração de como o Estado tem contribuído para a especulação imobiliária em Lisboa.
Segundo o site Idealista, em agosto de 2024 o metro quadrado na freguesia de Arroios estava nos 5.296 euros. Em setembro de 2022, pouco antes da Manside Investments assinar a escritura com a Estamo, o preço estava nos 4588 euros por metro quadrado. O que significa que um apartamento com 100 metros quadrados custaria nessa altura 458.800 euros e agora 529.600 euros.
“O Estado está a vender a um preço miserável o seu património e enquanto isso a Almirante Reis está cheia de tendas. Cada vez mais quem trabalha está obrigado a morar em tendas”, critica Ramos de Almeida.
Sem-abrigo em Lisboa aumentaram 25% no último
Segundo a Comunidade Vida e Paz, só em Lisboa há mais de 530 pessoas a viverem nas ruas, um número que subiu 25% no último ano. Um crescimento que é visível, segundo esta entidade, sobretudo em zonas como o Oriente, o Rossio, a Avenida Almirante Reis e a Avenida de Ceuta.
É em dados como este que o Casa Para Viver sustenta o protesto que vai acontecer este sábado, dia 28 de setembro, em várias cidades do País, entre elas Lisboa.
“Há cada vez mais lisboetas que são expulsos da cidade para ser construída uma cidade cenário para turistas. Somos um país pequeno no velho continente, mas Lisboa é a terceira cidade da Europa que vai abrir mais hotéis até 2026. São 36 novos hotéis e 4424 quartos”, lê-se num comunicado desta plataforma, que junta vários coletivos que denunciam o facto de este fenómeno ser cada vez mais nacional.
“Esta situação existe em outras cidades e regiões de Portugal, como Algarve, Lisboa e Porto com índices de Alojamento local muito superiores a cidades turísticas como Barcelona e Amesterdão”, afirmam os ativistas.