Xanana de Gusmão, líder histórico da resistência timorense e da guerrilha, nas montanhas; José Ramos Horta, representante da resistência nos aerópagos internacionais (Prémio Nobel da Paz, com Ximenes Belo, em 1996); D. Ximenes Belo, bispo de Díli, Prémio Nobel da Paz com Ramos Horta.; D. Basílio do Nascimento, bispo de Baucau; Ana Gomes, representante na secção de interesses e, depois, embaixadora em Jacarta; António Guterres, primeiro-ministro de Portugal; Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros; Jorge Sampaio, Presidente da República Portuguesa, e Bill Clinton, presidente dos EUA: estas são as nove figuras principais do processo que levou à independência de Timor-Leste (ou Timor Lorosae) em 2002, que se sucedeu ao referendo de 1999, com 78,5% dos timorenses a votarem pró-independência.
Xanana, na frente interna e, depois de capturado, a partir do cativeiro, em Jacarta, foi, durante anos, o farol que manteve acesa a chama da resistência ao invasor indonésio. Um David a combater Golias, fazendo da palavra e da persuasão internacional – a sua voz foi, na ONU e nas chancelarias, Ramos Horta – uma força que derrubou o exército do maior país islâmico do Mundo. Por falar nisso, a identidade distintiva timorense era representada pelo seu catolicismo, com a liderança de D. Ximenes Belo – uma estrela pop internacioonal – e de D. Basílio, o sacrificado interno, mais discreto e mais próximo do povo simples. Jaime Gama, chefe da diplomacia portuguesa, mantinha longos braços de ferro com o seu homólogo indonésio, Ali Alatas, um diplomata muito hábil e de trato possível, que acabou por ter o fair play necessário para reconhecer a derrota e, até, de uma certa forma, tornar-se “íntimo” de Gama.
Ana Gomes, no terreno, foi a dama de ferro que nunca vacilou. Lutar, na boca do lobo, pela libertação de Xanana e pela liberdade de Timor foi a missão da sua vida, que a fez tornar-se conhecida, e popular, entre todos os portugueses. A António Guterres, que foi o pivô principal nesta vitória da diplomacia portuguesa e do povo de Timor, coube convencer a superpotência global que mais do que a real politik, o que estava em cima da mesa eram os princípios morais. Nas suas memórias, Bill Clinton tem alguns parágrafos elogiosos ao então “jovem primeiro-ministro português”, com quem simpatizou à primeira, quando o conheceu, em Washington. Mas o poderoso aliado indonésio do ditador Jusuf Habibie, que sucedera, no ano anterior, a Suharto, dominava uma zona estratégica de captital importância para os interesses norte-americanos e não deveria ser confrontado pelo Ocidente. Isso mesmo pensava, também a diplomacia da União Europeia cujos líderes séniores (sobretudo, os britânicos), numa cimeira com os países da ASEAN, fizeram tudo para pressionar o estreante e recém eleito primeiro-ministro português para não fazer ondas com a Indonésia. Numa reunião informal, porém, antes das sessões oficiais, Guterres levantou-se e desafiou o seu interlocutor asiático (com quem, recorde-se, Portugal mantinha o grave diferendo sobre Timor e as relações diplomáticas cortadas, desde 1975…), para a abertura de delegações de interesses nos respetivos países. O repto foi aceite, para espanto de todos. Começava ali a desenvolver-se o que seria um desiderato.
Guterres pressiona Clinton
Com os bons auspícios da ONU – e das grandes potências, a começar pelos EUA – as duas diplomacias concordaram em marcar um referendo, para resolver a questão: os timorenses queriam mesmo, ou não, a independência? A consulta foi marcada para 30 de agosto de 1999, mas os indonésios terão concordado com reserva mental: reivindicaram a responsabilidade pela segurança, durante o período, no território, recusando a entrada de forças da ONU. Contavam com a habitual repressão (ou a ameaça dela, pela simples presença dos soldados) para dissuadir a participação dos timorenses, mas não tiveram outro remédio senão aceitar a presença de observadores internacionais, o que tolhia movimentos hostis mais explícitos. Para surpresa de todos, os timorenses perderam o medo e compareceram aos milhares nas filas eleitorais, numa participação na casa dos 90 por cento. Os esbirros de Habibie levaram as mãos à cabeça: era evidente que tinham perdido.
Os dias e as semanas que se seguiram foram de puro terror. Milícias pró-indonésias, fortemente armadas, com a complacência e, por vezes, apoio ativo, do exército indonésio, percorram cidades e vilarejos do território a matar indiscriminadamente e a incendiar casas, bairros e aldeias inteiras. As igrejas eram o único refúgio onde hesitavam em atacar mas, no final, nem os templos foram respeitados. Os jornalistas internacionais, quase todos, tiveram de abandonar o território, ali permanecendo um punhado deles, por sua conta e risco.
Portugal pressionava o único poder que podia parar com aquilo, ou seja, Washington. A administração Clinton hesitava: poderiam os EUA correr o risco de alienar um parceiro estratégico, tão poderoso, no sudeste asiático, por causa de um pqueno território perdido no mapa? Ou só para agradar a um aliado europeu garantido? Guterres não desarmava e ameaçava rever a participação portuguesa em missões da NATO, nomeadamente, retirando as nossas tropas no Kosovo. Não pela importância das missões do exército português, que a NATO podia facilmente substituir, mas pela atitude simbólica: o fiel aliado ibérico estava zangado e estava mesmo a falar a sério.
Sampaio dá uma ajuda
O Presidente Jorge Sampaio entrava em ação. Em consonância total com a estratégia de agressividade diplomática, e exercendo as suas prerrogativas no domínio da política externa, Sampaio convoca o embaixador dos EUA em Lisboa, Gerald McGowan, às cinco da manhã do dia 6 de setembro de 1999, para o Palácio de Belém. Já quando da entrega do Prémio no Nobel da Paz a D. Ximenes Belo e José Ramos Horta, em Oslo, Sampaio propusera ao pivô da CNN Jonathan Mann a sua participação num debate de mais de uma hora sobre a situação de Timor-Leste. Enfrentando em direto o embaixador da Indonésia junto das Nações Unidas, Nugroho Wisnumurtio, que intervinha a partir de Nova Iorque, o Presidente português foi motivo de orgulho de todos os seus concidadãos, esmagando, num Inglês perfeito, e com sólida argumentação diplomática, jurídica e humanitária, um a um, todos os argumentos da Indonésia. Nessa intervenção, Sampaio terá feito mais por Timor do que décadas de diplomacia. O público presente em Oslo, que assistia ao debate ao vivo e em direto, aplaudia o dirigente português. E o próprio Sampaio confessaria ao seu biógrafo, o jornalista José Pedro Castanheira, ter sido esse “um dos momentos mais altos” da sua vida política.
O papel dos portugueses
Mas o golpe de misericórdia nas ambições indonésias não foi desferido nem por Xanana, nem por Guterres, nem por Sampaio: o papel principal estava reservado ao povo português. Na sequência de frenéticos telefonemas para o amigo Clinton, Guterres terminou uma chamada crucial para a Casa Branca com uma inspiração do momento: “Senhor presidente, ligue a CNN e veja o que se está a passar em Lisboa!” Um gigantesco cordão humano, que cobria a capital e outras cidades portuguesas, com a população vestida de branco, provava a Clinton que a causa não era uma birra do Governo português, na sua “medição de testosterona” com os indonésios: isto era diferente. Isto era uma nação inteira, histórica e genericamente pró-americana, que se unia em volta do seu Governo e reclamava o respeito pelos direitos humanos e pela lei internacional. Intuitivo e rápido, Bill Clinton percebeu que tinha mais a perder se nada fizesse. No quadro do final da Guerra Fria, não se punha, sequer, a hipótese de que Timor-Leste caísse na órbita de um qualquer hipotético rival geoestratégico. E, assim como assim, desde a remoção de Suharto, um duro, os americanos já começado a patrocinar uma mudança de regime na Indonésia. Naquela manhã de 9 de setembro, o homem mais poderoso do mundo foi muito claro, interrompendo a agenda para ler, em direto, uma carta enviada ao seu homólogo indonésio: “A Indonésia deve aceitar a ajuda internacional em Timor-Leste”. Era la pièce de resitence: horas depois, tropas australianas sob bandeira da ONU intervinham em Timor, substituindo o exército indonésio nas operações de segurança. Três anos depois, a independência formal.