Nunca se tinha visto: em poucos dias, no final de 2015, o Parlamento chumbava um governo de direita, liderado pelo partido vencedor nas eleições de outubro, e entronizava um Executivo liderado pelo segundo mais votado. Os socialistas chegavam ao Governo com o apoio inédito de toda a esquerda e rebentavam com 40 anos de prática parlamentar e de arco da governação circunscrito a PS, PSD e CDS. Na sessão legislativa que agora termina, a direita remeteu-se à oposição e a relação dentro da “geringonça” foi ficando mais oleada. Conforme ficou demonstrado no último debate sobre o Estado da Nação, tudo parece fluir entre o PS e os seus parceiros no Parlamento (Bloco de Esquerda, Partido Comunista Português e o Partido Ecologista Os Verdes).O balanço impõe-se: o que realmente mudou no Parlamento, agora que está perfeitamente estabelecida uma nova arquitetura de poder? Mudou o centro do poder. O Executivo tem a sua autonomia, claro, mas a sua capacidade de ação está condicionada pelos seus parceiros – que não estão no Governo, mas na Assembleia da República. Para Carlos César, líder parlamentar do PS, o reforço do poder do Parlamento é pois “uma consequência prática do facto de os partidos que apoiam o Governo só coabitarem neste espaço institucional. Se os parceiros estivessem no Governo, o papel do Parlamento era outro, menos importante”.
Na prática, o trânsito no jardim e na escadaria que separam a residência oficial do primeiro-ministro (PM) da Assembleia da República intensificou-se. Há questões que chegam ao Parlamento já negociadas entre António Costa e os parceiros, tal como há assuntos que têm de ser mandados para a residência do PM, porque os entraves ao acordo entre as partes, no Parlamento, são difíceis de ultrapassar. E o trânsito já faz parte da rotina, porque “as zonas de fratura entre os três são impeditivas de uma gestão num mesmo espaço institucional”, explica César, para quem, mesmo assim, “a situação encontrada era a possível entre as impossíveis.”
Oposição do avesso
Na Assembleia, mudou também o conceito de oposição. Se o PSD é o partido mais votado nas legislativas de 2015, como pode ser considerado oposição? Quando se fala de oposição, a quem se referem os políticos? Ainda não é totalmente claro… Muitas vezes, a palavra, quando utilizada, é complementada por uma explicação, para ficar claro a quem se refere. Fala-se mais de “geringonça” (partidos de esquerda) e “caranguejola” (PSD e CDS) do que de “partidos no poder” e “oposição”.
Assim, mudou muita coisa, no Parlamento? “Mudou, seguramente”, confirma o líder parlamentar do CDS, Nuno Magalhães. Mas defende “que não foi para melhor, do ponto de vista da clareza política”. O deputado centrista não poupa nas críticas ao Governo e aos seus parceiros. Sustenta que os partidos que suportam o Executivo “às segundas protestam, às quartas têm dúvidas e às sextas votam” ao lado do Governo. E conclui: “o Parlamento, infelizmente, tornou-se uma encenação.”
Uma crítica que tem eco nas palavras de Luís Montenegro, que foi o líder da bancada parlamentar do PSD durante toda a sessão legislativa.
O deputado social-democrata diz que por vezes “parece que que há um ascendente nos debates por parte das forças que apoiam o Governo face às forças que se lhe opõem”. Considera que esta situação se deve “à desproporção” que existe no Parlamento entre oposição e os restantes partidos. Este cenário, que considera “invulgar e insólito”, traz maior dificuldade à oposição, já que, afirma o ex-líder da bancada social-democrata, “cada vez que um deputado do PSD ou do CDS fala, fazendo o seu trabalho de oposição, tem cinco intervenções a defender o Governo”. Ainda assim, Montenegro diz que o PSD conseguiu provar que é um partido que apresenta “várias propostas” enquanto mantém “o escrutínio e a fiscalização necessários” para a democracia.
O jogo de cintura à esquerda
Curiosamente, Heloísa Apolónia diz o mesmo sobre o seu partido. A deputada afirma que, apesar de apoiar este Governo, Os Verdes (PEV) nunca “deixaram de intervir quando tinham de o fazer”. No entanto, reconhece que a posição conjunta assinada com o Executivo no fim de 2015 faz com que as propostas apresentadas pelo PEV tenham mais acolhimento por parte do Governo. Isso traz vantagens, obviamente, mas também coloca os dois deputados do partido numa posição de maior exigência. “O trabalho parlamentar é mais importante agora”, explica Heloísa Apolónia, que confessa que não é fácil estar presente em todos os plenários – a deputada não faltou a uma única sessão – ao mesmo tempo que se preparam as “muitas reuniões” com o Governo, que descreve como “muito intensas”.As reuniões pela madrugada dentro, as conversas nos corredores e os acordos conseguidos no limite do prazo são hábitos que se introduziram na vida parlamentar. Há três posições conjuntas diferentes e é preciso jogo de cintura das várias partes. E, claro, tem de haver cedências. Mas João Oliveira, líder da bancada parlamentar do PCP, considera que “a questão das negociações não se coloca no nível das cedências”. Até porque, recorda, o partido rejeitou “o que entendeu”, como no caso da TSU. Prefere olhar sim para aquilo que foi alcançado. João Oliveira nota que o PCP tem hoje “uma maior capacidade de influência” e diz que uma das vitórias do partido é ter conseguido provar que as suas propostas “são realizáveis”.
O número de iniciativas legislativas que os parceiros do Governo apresentam são semelhantes aos de outras legislaturas. A diferença está na quantidade de propostas que são aprovadas. Mas Pedro Filipe Soares diz que há mais coisas que mudaram. O líder da bancada do Bloco de Esquerda explica que “agora há muito mais relacionamento com o Governo”, uma circunstância nova e “mais exigente”. A gestão de todas as tarefas não é fácil, mas o líder do grupo parlamentar do BE parece ter uma receita de sucesso: “muito trabalho, muita disponibilidade e muita abertura para o diálogo”. Pode não resultar sempre e pode não ter a eficácia desejada – já que, afinal de contas, “o Bloco de Esquerda queria ter avançado mais” –, mas até agora esta fórmula tem servido para aprovar várias iniciativas bloquistas.
E ainda uma estreia
Caso diferente é o do PAN. O partido está pela primeira vez representado no Parlamento e a estreia surge num contexto político inédito. Olhando para a atividade do partido, André Silva mostra-se satisfeito com os números alcançados – durante esta sessão legislativa o PAN apresentou 40 projetos de lei, apenas menos oito do que o PSD. Confessa que estes dados só são possíveis “porque há uma equipa que trabalha com esforço” e que “dorme muito pouco” para conseguir obter resultados. O deputado reconhece que a arquitetura parlamentar que se formou a seguir às eleições legislativas de 2015 pode ter beneficiado o PAN, já que “trouxe uma maior parlamentarização” à vida política portuguesa, permitindo “um maior diálogo” entre as partes.
Ao fim e ao cabo, há hoje um maior frenesim nos corredores da Assembleia da República. Reuniões e acordos que para serem assinados obrigam a muitas cedências. A oposição diz que a esquerda se descaracterizou e que “a geringonça” não serve para implementar reformas de fundo. A esquerda responde com a devolução de rendimentos e com os indicadores económicos. Discórdias à parte, uma coisa é certa: há agora mais adrenalina no Palácio de São Bento.
Artigo publicado na VISÃO 1273 de 27 de julho