Mal se ficou a saber que a dupla do Partido Democrata para as eleições de 3 de novembro seria constituída por Joe Biden e por Kamala Harris, o Presidente Donald Trump encarregou-se imediatamente de insultar a antiga procuradora-geral da Califórnia. Além dos muitos adjetivos que lhe dedicou – “falsa“, “desprezível”, “hipócrita” –, fez questão de dizer várias vezes o nome próprio da jurista e senadora: “KuH-mAH-la”, pondo a sílaba tónica onde mais lhe convinha.
A 14 de agosto, na Fox News, o polémico canal de TV que funciona também como câmara de ressonância das posições trumpianas, o apresentador Tucker Carlson fez mais ou menos o mesmo. Quando lhe explicaram qual a pronúncia correta, a sua resposta foi categórica: “Kuh-Mah-luh ou Kam-uh-luh Harris, vai tudo dar ao mesmo.” É aí que ele se engana. Nesse mesmo dia, na plataforma online The Conversation, Darin Flynn, um professor de linguística da Universidade de Calgary, Canadá, disponibiliza um artigo sobre este episódio e descreve-o como uma inequívoca “manifestação de racismo”.
Heróis e avestruzes
Para cúmulo, na sua autobiografia lançada em 2019, As Verdades que Nos Sustentam: Uma Viagem Americana (não traduzido para português), Kamala Harris revela no prefácio como deve ser dito o seu nome: “Comma-la. Significa flor de lótus, um símbolo importante na cultura indiana. Nasce debaixo de água e a flor cresce à superfície, enquanto as raízes ficam agarradas ao fundo dos rios.”
Embora a autora não o refira, lótus é também uma das designações alternativas da deusa Lakshmi, cujos poderes podem transformar os sonhos em realidade. E, neste capítulo, as ambições de Kamala são bem claras, seguindo à risca as palavras de um dos seus heróis, Thurgood Marshall, o primeiro afro-americano a sentar-se no Supremo Tribunal dos EUA (falecido em 1993): “Não podemos fazer de avestruzes. A democracia jamais floresce num ambiente de medo. A liberdade não floresce num ambiente de ódio. A justiça não ganha raízes num ambiente de fúria. A América precisa de meter mãos à obra. Temos de lutar contra a indiferença, contra a apatia, contra a desconfiança.”
Aqueles que não querem aprender a dizer Kamala arriscam-se a conviver com este nome durante muito tempo. Basta que Biden – com 77 primaveras cumpridas – lhe passe o testemunho como Comandante-Chefe. Ou seja, a filha de um casal de imigrantes (o pai economista jamaicano e a mãe oncologista indiana), apesar do seu nome pouco vulgar, pode tornar-se a primeira mulher, a primeira afro-americana e a primeira asiático-americana a tornar-se vice-presidente dos EUA. E, em 2024, se os eleitores permitirem, tem igualmente ao seu alcance a chefia do Partido Democrata e do Estado. Mais… Se tudo lhe correr de feição e cumprir dois mandatos, em teoria, pode permanecer na Casa Branca até 2032.
Além dos insultos e das questões fonéticas, Trump decidiu também prendar Kamala Harris com uma acusação absurda e conspirativa, semelhante à que usou contra um tal de Barack Hussein Obama. Para Donald Trump, o seu antecessor no cargo era um perigoso muçulmano nascido algures em África, nunca um cidadão americano de pleno direito que veio ao mundo numa maternidade de Honululu, no Havai. Quanto à candidata à vice-presidência, alega que a jurista californiana pode não cumprir os requisitos legais para estar nesta corrida, porque os pais eram “visitantes temporários” nos EUA quando ela nasceu há 55 anos na cidade de Oakland.
Claro que se trata apenas de mais uma manobra dilatória e populista de Trump, inspirada nas efabulações de um desacreditado e aposentado professor de Direito, John C. Eastman. A 14ª emenda da Constituição norte-americana, de 1868, e um acórdão do Supremo Tribunal, datado de 1898, concedem cidadania a todas as pessoas que nasçam em território dos EUA e Trump tem disso perfeita consciência, razão pela qual, há dois anos, tentou alterar a legislação e pôr termo ao jus soli (direito ao solo), através de uma ordem executiva. Em vão.
Confiança e orgulho negros
Kamala Harris é um excelente exemplo do melting pot norte-americano. A mãe, Shyamala Gopalan, oriunda de uma família de brâmanes (no topo do sistema de castas) do Sul da Índia, emigrou para os EUA com o intuito de fazer um doutoramento em Oncologia. O pai, Donald Harris, natural da Jamaica, tinha o mesmo objetivo mas em Economia. O casal conheceu-se na Universidade de Berkeley e ambos acabariam por se casarem contra a vontade das respetivas famílias. Os protestos pelos direitos civis e contra a Guerra do Vietname não os impediram de concluir os estudos, nem de levarem a filha mais velha num carrinho de bebé para estas manifestações – nas suas memórias, Kamala diz que ainda se recorda desses tempos, dos cânticos, dos gritos e, sobretudo, do mar de pernas à sua volta. A benjamim da família, Maya, iria nascer em 1967, quando as carreiras profissionais dos progenitores já estavam lançadas. Só que o casal acabaria por se divorciar cinco anos mais tarde e as duas irmãs ficaram ao cuidado da investigadora especializada em cancro da mama que adorava o jazz de Thelonious Monk, John Coltrane e Miles Davis.
Não é, pois, de estranhar que as meninas, sempre inseparáveis e boas alunas, tenham sido muito influenciadas pela figura materna. Shyamala incutiu-lhes o sentido do dever e da responsabilidade, preparando-as para as adversidades que poderiam enfrentar devido à cor da pele: “A minha mãe sabia que estava a criar duas filhas negras. Sabia que a sua pátria adotiva iria olhar para Maya e para mim como meninas negras, e queria ter a certeza de que iríamos crescer confiantes e orgulhosas como mulheres negras”, revela Kamala na sua autobiografia.
O tempo demonstrou que a cientista terá feito um bom trabalho. Kamala foi a primeira afro-americana a desempenhar os cargos de procuradora de São Francisco (2004-2011) e de procuradora-geral da Califórnia (2011-2017), a primeira indo-americana a ser eleita para o Senado dos EUA e a primeira não branca candidata à vice-presidência por um dos grandes partidos norte-americanos. Pelo meio, e após concluir o Ensino Secundário em Montreal, no Canadá – a mãe foi contratada pela Faculdade de Medicina da Universidade McGill –, Kamala quis ir estudar para um estabelecimento de ensino especial: a Howard University, em Washington D.C., fundada logo a seguir à Guerra da Secessão e em que a maioria dos alunos eram afro-americanos. Em 1986, com um canudo em Ciências Políticas e Economia, decidiu regressar à Califórnia e formar-se também em Direito, na Hastings College of the Law. Quatro anos mais tarde, era uma jurista profissional.
Durante um quarto de século, defende inocentes e culpados, acumula vitórias judiciais e fica com fama de ser simultaneamente progressista e implacável. Com ela, em São Francisco, a taxa de condenações de indivíduos envolvidos no tráfico de droga aumentou de 56% para 74% em apenas quatro anos. Mas por ser uma legalista até às últimas consequências e não acreditar na pena de morte, também teve de lidar, por exemplo, com a fúria dos sindicatos de polícia que nunca lhe perdoaram o facto de ter defendido a pena perpétua para o homicida de um agente. Em contrapartida, desde esses tempos que é acusada pelos setores mais progressistas do seu partido de ser a responsável pela aplicação de leis que conduziram à prisão de pais negligentes e cujos filhos faltavam à escola.
Contradições e retoques
O seu talento e capacidade de trabalho são consensualmente reconhecidos, além das suas iniciativas para criar equipas e departamentos especializados na criminalidade informática e ambiental. Uma das suas coroas de glória é o acordo por si conseguido para as vítimas das hipotecas de alto risco inventadas por Wall Street, na origem da Grande Recessão de 2008, em que o setor financeiro aceitou pagar 20 mil milhões de dólares em vez dos quatro mil milhões que inicialmente oferecera a famílias que perderam as suas casas.
De qualquer forma, não se julgue que Kamala Harris é uma socialista ou uma social-democrata como os senadores Bernie Sanders e Elizabeth Warren. Os seus detratores acusam-na de ser uma máquina de angariação de fundos devido aos contactos que tem com as elites de São Francisco e de Silicon Valley. Amiga de longa data de Gavin Newson, antigo mayor da cidade e atual governador da Califórnia, dá-se igualmente bem com Laurene Powell, viúva de Steve Jobs, e Sheryl Sandberg, diretora do Facebook.
A melhor prova de que consegue abrir muitas bolsas endinheiradas é que a campanha Biden/Harris recebeu 48 milhões de dólares em 48 horas após o anúncio de que ela iria entrar no ticket democrata para a Casa Branca, a 11 de agosto. O mais caricato é que a senadora que Donald Trump descreveu como “a corrupta ex-procuradora-geral da Califórnia” também recebeu doações do antigo empresário nova-iorquino. Em 2011 e em 2013, Trump contribuiu com seis mil dólares para as campanhas de Kamala e a sua filha Ivanka ofereceu dois mil dólares para os mesmos efeitos, em 2014.
Ao que parece, a então procuradora acabou por reencaminhar o dinheiro para instituições de solidariedade, mas o caso promete regressar nos próximos dois meses. Quanto mais não seja porque, em matéria de contradições, Donald Trump é imbatível. A candidata à vice-presidência, educada na cultura hindu, casada com um advogado judeu, crente na Igreja Batista (protestante), colecionadora de sapatilhas Converse e de colares de pérolas, sabe como poucos fazer a quadratura do círculo. Afinal, trata-se da mesma pessoa que recusa ser uma “versão feminina de Obama”, mas que não se importa de ver editada a sua biografia na Wikipédia a um ritmo vertiginoso. Só em junho, isso aconteceu 408 vezes, e os retoques sucedem-se. Será essa uma tendência até 2032?