Artigo publicado na edição da VISÃO de 24 de agosto, dois meses antes da primeira volta das eleições presidenciais na Argentina
Um dos grandes escritores do século XX, o argentino Jorge Luis Borges, autor de obras inolvidáveis como o O Aleph ou História Universal da Infâmia, deixou-nos personagens e aforismos que ainda traçam um bom retrato do que se passa atualmente na sua Buenos Aires natal. “Cada país tem a linguagem que merece” é apenas um exemplo e pode servir de pretexto para se analisar o discurso daquele que é, hoje, o político mais popular da Argentina, Javier Milei. A 22 de outubro, data em que celebra 53 anos, o economista, que se diz “liberal-libertário” e “anarcocapitalista”, pretende vencer as eleições presidenciais, logo à primeira volta, e começar a cumprir todas as promessas que fez. Até lá, vai com certeza multiplicar as ameaças e os insultos, que o tornaram uma celebridade global. Não é à toa que tem como lema favorito de campanha “Viva la libertad, carajo!”

Na última década, os discursos agressivos e politicamente incorretos de Milei fizeram dele um convidado obrigatório em tudo quanto fosse programa televisivo de entretenimento. Um dos seus alvos preferidos é a “casta” dirigente, à qual promete dar uma “biqueirada no cu” por ser exclusivamente constituída por “chetos” (queques) “incompetentes, corruptos, e por parasitas”, que “nunca trabalharam nem fizeram nada de útil na vida”.
Narcisista e revolucionário
As conversas crispadas deste académico, de origens humildes, não poupam ninguém. O Papa Francisco? Um “imbecil”, que “promove o comunismo” a partir de Roma. Os jornalistas? Uns “cretinos” e “deturpadores”, que, por norma, têm quase sempre “problemas de compreensão”, por serem “burros”. Os adversários políticos? Uns “zurdos (esquerdistas) de mierda”! No início desta semana, Martín Rodríguez Yebra, repórter do diário conservador La Nación, sintetizou de forma clara a postura desabrida e provocadora do professor de Teoria Monetária, que, nas tertúlias televisivas, também se arrogou de ser um mestre no sexo tântrico e de “aguentar 23 horas” sem ejacular: “A ideologia funciona como um traço identitário acessório. Um adorno narcisista para galvanizar um núcleo duro. O segredo da sua ação política reside na correta seleção do inimigo, que justifica a intervenção do iluminado.” Há três anos, quando decidiu entrar formalmente na política e candidatar-se a deputado, Milei apresentou-se como a única personalidade impoluta, antissistema e com propostas concretas para resolver todos os males nacionais: “Nunca subiremos os impostos, nunca criaremos mais impostos, nunca iremos contra a liberdade, nunca iremos contra a propriedade, nunca iremos contra a vida. (…) Estou aqui para dinamitar o statu quo, para varrer a casta política e os ladrões que nos empobrecem.”

As coisas correram-lhe de feição: o seu movimento, La Libertad Avanza (A Liberdade Avança), recolheu 313 mil votos nas legislativas de 14 de novembro de 2021, com ele a beneficiar das restrições pandémicas e da simplicidade do programa eleitoral. O político, que tentou ser jogador de futebol (foi guarda-redes do Chacarita Juniors) e estrela de rock (foi vocalista dos Everest, uma banda que tocava versões dos Rolling Stones), estava lançado. A aposta em demonizar as formações da direita tradicional e do peronismo, a par da sua disponibilidade para liderar uma “revolução liberal”, que recuperasse a grandiosidade da Argentina do início do século XX – uma versão local do “Make America Great Again”, de Donald Trump –, surtiram o efeito desejado, como se verificou a 13 de agosto, data em que se realizaram as primárias abertas, simultâneas e obrigatórias (vulgo PASO) para o sufrágio presidencial do próximo mês de outubro. As sondagens posicionavam-no num honroso terceiro lugar, logo atrás dos candidatos “oficialistas” de União pela Pátria (coligação de esquerda, que governa o país desde 2019) e Juntos pela Mudança (movimento conservador de centro-direita, na oposição). Só que a realidade e o veredicto popular baralharam por completo os estudos de opinião. Mesmo sem máquina partidária e sem concorrer em todos os círculos eleitorais, Milei arrecadou 7,1 milhões de votos e ficou em primeiro lugar em 16 das 24 províncias argentinas, incluindo alguns bastiões históricos do peronismo, seja na área metropolitana da capital seja em Santa Cruz, no Sul, região natal de Néstor e de Cristina Kirchner (ele Presidente entre 2003-2007; ela de 2007 a 2015, ocupando a vice-presidência desde 2019).
Minarquista misógino
Javier Milei, el Peluca (peruca ou cabeleira), o carismático comunicador que diz não se pentear há mais de três décadas, tem legitimidade reforçada para insistir no seu “programa motosserra” e repetir que as “ratazanas” e a casta devem “ter medo, muito medo!”. Não é preciso recorrer à semiótica, à ciência política ou à disciplina supostamente inventada por Adam Smith para perceber o que está em causa com o já apelidado “Trump das Pampas”. Ele fará tudo o que estiver ao seu alcance para fazer jus a outro adjetivo que usa para si: “minarquista” – de minarquismo, teoria que defende a redução do Estado quase à insignificância. E quais as prioridades de Milei, de acordo com este modelo de sociedade? “Incendiar” o Banco Central; acabar com a moeda nacional e adotar o dólar americano; reduzir ao máximo as despesas públicas e o défice orçamental; privatizar tudo o que for possível (a começar pela gigante energética, a petrolífera YPF); abolir os “ministérios dispensáveis” (Saúde, Educação, Desenvolvimento Social, Ciência e Tecnologia, Ambiente, Trabalho e Segurança Social, Cultura e ainda o das Mulheres, Géneros e Diversidade); desregulamentar o setor financeiro; liberalizar a comercialização de órgãos humanos (“A minha primeira propriedade é o meu corpo. Por que razão não hei de dispor do meu corpo? Há 7 500 pessoas a sofrer, à espera de transplantes”). Em suma: promover a “livre iniciativa das empresas e dos cidadãos”. Em teoria, um programa “libertário e de liberdade” para quase tudo, exceto para o sexo feminino. Milei alega que vai derrogar a lei da interrupção voluntária da gravidez, aprovada em 2020, mesmo nos casos de violação. O seu argumento é conhecido: “A vida humana começa na conceção. É um problema de matemática (…). Em que semana é correto fazer um aborto? À 14ª [como prevê a atual legislação]?”
Amigos populistas
Principais aliados políticos e simpatizantes de Javier Milei, fora da Argentina

Nayib Bukele
O Presidente de El Salvador tem apenas 42 anos, está há quatro no poder, assume-se como o “ditador mais fixe do mundo”, governa através das redes sociais, adotou a bitcoin como moeda oficial (em 2021) e instaurou um regime personalista. O país vive há 17 meses em estado de emergência, devido aos gangues ligados ao narcotráfico, mas ninguém duvida de que Bukele, com uma taxa de aprovação superior a 80%, será reeleito em 2024. A Constituição proíbe dois mandatos consecutivos, mas ele controla agora o poder judicial e tornou-se um exemplo de “mano dura”, que inspira Milei e outros nacional-populistas.

Santiago Abascal
O líder do Vox é um velho amigo de Milei. O economista argentino já esteve por várias vezes na capital espanhola, para participar em iniciativas organizadas por Abascal e pela Fundação Disenso, o centro de reflexão criado pelo partido neofranquista. Javier Milei é um dos subscritores da Carta de Madrid, o manifesto elaborado em “defesa da liberdade e da democracia”, em 2020, pelos movimentos de extrema-direita ibero-americanos, contra os “regimes totalitários de inspiração comunista”. O documento foi igualmente assinado por André Ventura e pelo Chega.

José Antonio Kast
O chefe de fila da extrema-direita chilena, admirador confesso do regime militar de Augusto Pinochet, perdeu as eleições presidenciais de 2021, embora se mantenha como líder da oposição e cultive os contactos internacionais. Foi dos primeiros a felicitar Milei pela surpreendente vitória que este obteve nas primárias de 13 de agosto.

Eduardo Bolsonaro
O filho mais ambicioso e influente de Jair Bolsonaro, ex-Presidente do Brasil, conhece Javier Milei há vários anos, e a cumplicidade política de ambos tem sido muito destacada. Em outubro de 2022, mal se conheceu a vitória eleitoral de Lula, o argentino acusou os brasileiros de terem feito uma “aposta errada” e de se terem convertido ao “socialismo do século XXI”.

María Fernanda Cabal
A senadora e politóloga colombiana é uma das subscritoras da Carta de Madrid e nunca escondeu a admiração por Donald Trump e Jair Bolsonaro. Aliada do ex-Presidente Álvaro Uribe (2002-2010), mantém uma grande rede de contactos na Europa e nos EUA. Intitula-se “radical” e, em 2014, congratulou-se com morte do compatriota e Nobel da Literatura, Gabriel García Márquez.

Antonio Saravia
O economista boliviano, professor na Universidade de Mercer, nos EUA, é uma figura muito apreciada e influente no seu país, não sendo de excluir que protagonize ou se envolva na campanha presidencial de 2025, para desalojar a esquerda – e o atual Chefe de Estado, Luis Arce – do poder. Saravia e Milei partilham mestres e teses ultraliberais.
Como é que sete milhões de argentinos – na sua maioria jovens, dos 16 aos 30 anos, que representam um terço do eleitorado – votaram neste indivíduo que beneficiou, em larga medida, do descontentamento social resultante da atribulada História contemporânea do país? No último século, a Argentina conheceu seis golpes militares, outros tantos processos de insolvência e um número bem maior de crises, de recessões e de ajustamentos apadrinhados pelo Fundo Monetário Internacional. O atual Governo reestruturou, no ano passado, a dívida argentina, mas o cenário da bancarrota permanece real e pode depender de um empréstimo pendente do FMI, no valor de 7 500 milhões de dólares. Enquanto tal não sucede, a pobreza, a desigualdade e a hiperinflação alastram (ver infografia), criando as condições para se repetirem os tumultos de 2001, quando a população ficou impedida de aceder a depósitos e poupanças e o pânico financeiro deu origem ao designado “corralito”.
Telepatias felinas
Em maio passado, uma sondagem da consultora FGA revelou que 79% dos argentinos se sentem impotentes e zangados com a situação política do país. A maioria admitiu emigrar e várias ONG estimam que haja um êxodo em curso, com perto de duas centenas de pessoas a abandonarem diariamente o país. Eduardo Levy Yeyati, antigo economista-chefe do Banco Central argentino e professor da Universidade Torcuato di Tella, em Buenos Aires, escreveu, na revista Americas Quarterly, que o seu país vive já um “momento barrani”, em que cada um faz o que pode pela vida, num género de “armadilha” que só permite uma “fuga em frente”. Assim sendo, tudo depende agora de El Loco, título que o jornalista Juan Luis González deu à sua biografia sobre Javier Milei. É graças a este livro que se percebe o motivo pelo qual o anarcocapitalista odeia ser questionado quanto às suas paranoias esotéricas e os cinco cães, a que chama “netos”. Comecemos pela parte das mascotes. Milei, solteiro e sem descendência conhecida, diz que o seu único filho é Conan, um mastiff inglês, falecido em 2017 e que foi levado para os EUA para ser clonado. Desse processo misterioso, nasceram Conan II, Milton, Murray, Robert e Lucas. De acordo com esta biografia não autorizada, os nomes dos caninos devem-se, em primeiro lugar, ao filme distópico protagonizado por Arnold Schwarzenegger e aos economistas favoritos de Javier Milei (Milton Friedman, Murray Rothbard e Robert Lucas). A parte mais preocupante, segundo Juan Luis González, é que o líder de A Liberdade Avança acredita em ciências ocultas e recorre a médiuns para continuar a falar com Conan I e a pedir-lhe conselhos. Pior.

Foto: LUIS ROBAYO/AFP via Getty Images
Milei e a irmã Karina, a sua chefe de campanha e principal colaboradora, estão convencidos de que falam com o “Número Um” – entenda-se Deus, e que este terá incumbido o economista de “salvar a Argentina” e de assumir a presidência. Nas entrevistas que deu, na última semana, ao Financial Times e à Bloomberg, Milei recusou falar dos cães e do livro. Em breve e por meios mais ou menos democráticos, saberemos se ele tem ou não capacidades messiânicas. Como escreveu Jorge Luis Borges: “Aceitamos a realidade com facilidade, talvez por sentirmos que nada é real”…
Milei “dixit”
Algumas das tiradas mais controversas do economista, desde que se tornou deputado, em dezembro 2021
Conseguimos construir uma alternativa, que vai acabar não só com o kirchnerismo mas também com a casta parasitária, corrupta e inútil, que afunda este país’
Uma Argentina distinta é impossível com os mesmos de sempre, com os mesmos que fracassaram sempre
Acreditar que os políticos vão cuidar de vocês é como deixar os vossos filhos nas mãos de um pedófilo
O Papa, sim, vou dizê-lo com toda a frontalidade, é o representante do Mal na Terra. (…) É um imbecil, promove o comunismo’’
Sou contra todos os impostos. Os impostos são um roubo que se paga de maneira violenta
As mulheres podem ter o direito de escolha sobre o seu corpo, mas o que têm dentro do ventre não é o seu corpo, é outro indivíduo
Se fosse verdade que as mulheres ganham menos, as empresas estariam cheias delas
Se querem drogar-se, façam tudo o que vos apetecer, mas não me peçam para pagar a conta