As investigações decorriam há mais de uma década e julgava-se que as conclusões apresentadas por um painel de cientistas internacionais poderiam resolver o mistério à volta da morte de Pablo Neruda. Em causa estava a descoberta, em 2017, da bactéria ‘clostridium botulinum’ nos molares do poeta chileno, que sugeria a morte por envenenamento, e não por complicações decorrentes do cancro da próstata, apresentada como causa oficial. Contudo, os especialistas encarregues da análise dos dados forenses, resultantes da exumação do cadáver, não conseguem perceber como a toxina botulínica foi introduzida no seu corpo. “Estava presente no momento de sua morte, mas ainda não sabemos porquê. Só sabemos que não deveria estar lá”, afirmaram Hendrik e Debi Poinar, da Universidade McMaster do Canadá, integrantes da equipa científica, em declarações à Agência France-Presse. O sumário do relatório, partilhado com o New York Times na semana passada, aponta que o painel não conseguiu distinguir se se tratava uma variante tóxica da bactéria, nem concluir se Neruda foi injetado com a bactéria ou se, em vez disso, esta proveio de alimentos contaminados.
O curto intervalo que separa o Golpe de Estado chileno, a 11 de setembro de 1973, e a morte de Pablo Neruda, a 23 de setembro, quando tinha 69 anos, deu azo a muitas especulações ao longo deste meio século. Apesar de estar confirmado o diagnóstico com cancro da próstata, sabia-se da violência exercida pelo regime militar de Augusto Pinochet contra os opositores – sendo conhecidos outros casos de envenenamento, com bactérias similares, gravemente letais –, e o prémio Nobel da Literatura (em 1971), militante do Partido Comunista chileno, era uma figura particularmente incómoda. Estaria, inclusive, a preparar-se para refugiar-se no México, cujo governo lhe tinha concedido asilo político, onde poderia continuar a lutar contra a ditadura que se instalava no seu país.
Em 2011, a Justiça chilena ordenou a abertura de uma investigação à morte do poeta, motivada pelas declarações inéditas prestadas pelo seu antigo motorista, Manuel Araya, que o teria conduzido desde Isla Negra, a localidade costeira onde tinha casa, para receber tratamento hospitalar e preparar-se para a viagem até ao México. Revelou então ter recebido um telefonema do patrão, preocupado com uma injeção suspeita que lhe teria sido dada por um médico, aquando do internamento na clínica de Santa Maria, em Santiago do Chile. Esse médico, de apelido Price, nunca foi identificado. Por outro lado, os testemunhos de familiares e vizinhos sobre a gravidade do seu estado de saúde foram contraditórios, segundo afirmou Mario Carroza, primeiro juíz encarregue do inquérito, ao El País.
Para Rodolfo Reyes, sobrinho do poeta, advogado e assistente da família no processo, não restam dúvidas sobre a causa da morte. “Encontramos agora a arma do crime. Mas quem o matou? Essa é a segunda etapa [do processo]”, afirmou. “Mas pelo menos fica registado para a história que Neruda não morreu de cancro ou de tristeza.” O grupo de cientistas que, em 2017, descobriu pela primeira vez a bactéria ‘clostridium botulinum’ no seu corpo, já tinha posto em causa o certificado de óbito, nomeadamente a referida caquexia cancerosa (perda de peso e atrofia muscular), tendo concluído que o escritor teria cerca de 90 quilos aquando do seu falecimento.
As conclusões do relatório científico serão agora analisadas pela juíza Paola Plaza, atual responsável pelo inquérito judicial, que as juntará a outras provas (circunstanciais) e ponderará a dedução de acusação pelo homicídio de Neruda. Seja qual for a decisão, para muitos chilenos ficará sempre a suspeita de que a sua morte foi mais uma atrocidade cometida pela ditadura militar.