Se já todos constataram que a crescente “desigualdade na distribuição da riqueza” é a grande questão do nosso tempo, porque tarda ela em ser resolvida? Porque é que as desigualdades se acentuam e prosseguem perante a impotência generalizada de governos, políticos, académicos e ativistas? “Os papéis do Panamá podem dar uma resposta convincente a estas perguntas: corrupção massiva e generalizada.”
No dia em que o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ, na sigla inglesa) se prepara para tornar pública a base de dados dos Panamá Papers, através da qual qualquer um poderá pesquisar mais de 200 mil entidades offshore, ainda estão frescas as declarações do homem que esteve por detrás da maior fuga de informação de sempre. John Doe, nome fictício atribuído à fonte que passou 11,5 milhões de ficheiros provenientes de um único escritório de advogados, a Mossak Fonseca, veio agora fazer um depoimento, onde explica as suas razões: denunciar aqueles que possibilitam a exploração das falhas da lei, subvertendo o seu espírito, para favorecer os mais ricos em detrimento do prejuízo da classe media e dos mais pobres.
Numa longa declaração, que pode ser lida na integra no site do ICIJ, o denunciante aponta para uma “engrenagem” montada para gerir a riqueza e que ganha cada vez mais poderes para influenciar as leis de todo o mundo, no sentido de favorecer interesses de criminosos e proporcionar “fraude em grande escala”, que “vão além da sonegação de impostos”. Diz ele: “Decidi expor a Mossack Fonseca, porque os seus fundadores, funcionários e clientes devem ter de responder pelos seus papéis nestes crimes, dos quais apenas ainda só alguns vieram à luz.”
Apesar de reconhecer que as empresas de fachada são um recurso legal, John Doe quer enfatizar que “o que é permitido é de facto escandaloso e deve ser mudado”. No caso da Mossak, para ele é claro que “os documentos mostram conhecimento detalhado e infração intencional” dos seus responsáveis em “violar conscientemente” várias leis em todo o mundo. E isto é “um sintoma gritante de tecido moral doente e da progressiva decadência da nossa sociedade.”
Garantindo que não trabalha para qualquer agência governamental ou serviço de inteligência, o informador mostra-se disposto a cooperar e a passar informação às autoridades, para que os responsáveis destas injustiças sejam punidos “sem qualquer tratamento especial”.
A cobardia política
A fonte por detrás dos documentos do Panamá tem consciência de que também pode ser punido pelo que fez, assim como do perigo que corre. Lembra o que se passou com outros que já fizeram o que ele fez: Edward Snowden, que denunciou a maior rede de escutas mundial por parte da NSA, está exilado em Moscovo, depois de Obama o processar ao abrigo da Lei de Espionagem; a Bradley Birkenfeld foi-lhe emitida pena de prisão, depois de ter possibilitado a descoberta de fraudes no banco suíço UBS; Antoine Deltou está atualmente a ser julgado por ter sido fonte no caso Luxleaks, que proporcionava fugas fiscais às grandes multinacionais.
“Exorto a Comissão Europeia, o Parlamento britânico, o Congresso dos Estados Unidos e todas as nações a agir rapidamente, não só para proteger e criar imunidade aos denunciantes”, pede John Doe, mas também para que avancem com leis que garantam transparência e tornem acessível ao público informações relativas aos negócios de grandes empresas.
Segue-se ainda a denúncia do que John Doe considera ser a covardia política dos Estados, que pune os denunciantes e protege os prevaricadores. Ninguém escapa às críticas. O Reino Unido “pode-se orgulhar das suas iniciativas domésticas”, mas continua a ter “um papel vital a desempenhar, terminando o sigilo financeiro nos seus territórios insulares, sem dúvida a pedra angular da corrupção institucional em todo o mundo”. Os Estados Unidos, que nunca conseguirão criar um sistema fiscal equitativo, enquanto não avançar com uma séria reforma do sistema de financiamento das campanhas, em que funcionários eleitos pedem dinheiro às elites que, por sua vez, têm os mais fortes incentivos para evitar pagar impostos. E por aí fora…Tudo para provar como o poder executivo, legislativo e judicial têm falhado neste combate, a par de bancos, reguladores financeiros, autoridades fiscais ou tribunais.
Comunicação social falhou
O comportamento de certos grupos de comunicação social também não escapa ao olho crítico de John Doe. “Os Media falharam. Muitas redes de notícias são paródia de desenho animado do que costumavam ser”, denuncia o informador, apontando para a facilidade com que alguns bilionários tomaram posse de alguns grupos de comunicação, fazendo deles o seu “hobby” e “limitando a cobertura de assuntos sérios” ao não proporcionar meios de financiamento para prosseguir um bom jornalismo de investigação.
Sem nunca ser específico, John Doe revela que a investigação acerca dos documentos do Panamá foi recusada por grandes grupos de comunicação, antes de chegar ao alemão Suddeutsche Zeitung, que decidiu depois partilhá-los com o ICIJ, que os distribuiu depois por vários outros grupos de vários países.
“A triste verdade é que, entre os grupos de media mais proeminentes e capazes do mundo não havia um único interessado na informação sobre a história. Optaram por não cobrir o assunto. Mesmo a Wikileaks…”, lamentou o denunciante.
Revolução Digital
Depois de tantas falhas elencadas, a voz que deu origem aos Documentos do Panamá, conclui: “O impacto coletivo destas falhas tem provocado uma erosão completa dos padrões éticos, levando a um novo sistema que ainda chamamos capitalismo, mas que equivale a escravidão económica.”
O pressuposto de que muita informação continua escondida e a causar um prejuízo de grande magnitude para o mundo é, para John Doe, motivo suficiente para nos chocar a todos. E sinal de que as regras da democracia estão a falhar.
“É agora momento para a ação real”, diz o informador, deixando adivinhar que novas revelações estão para vir. E, perante o cenário descrito, não é de estranhar que o alegado John Doe realce a importância da internet na distribuição de certos conteúdos de denúncia. “Vivemos num tempo de armazenamento digital ilimitado, barato e de conexões de internet rápida que transcendem as fronteiras nacionais. Não é preciso muito para ligar os pontos. A próxima revolução será digital. Ou talvez ela já tenha começado.”
ICIJ disponibiliza ficheiros
Para já, ao final da tarde o ICIJ disponibilizará para o público a sua base de dados, facilitando o acesso de todos aos ficheiros de 200 mil empresas offshore, que estiveram na base dos Documentos do Panamá. Estarão incluídas informações acerca de empresas de fachada, fundos e fundações inscritas em 21 paraísos fiscais, desde Hong Kong até ao Nevada, nos Estados Unidos.
O ICIJ acrescentará ainda à sua base de dados interativa informação relativa a mais cem mil empresas, que estiveram na base da investigação sobre offshores, levada a cabo em 2013.
Não serão, contudo, disponibilizadas informações pessoais, como contas bancárias, endereços eletrónicos, números de telefone ou de passaportes. Só será divulgado o que for passível de interesse público.