Chama-se Leticia Montoya, é natural do Panamá e dona de quase 11 mil sociedades. Dona, vírgula. Leticia tem de facto o seu nome associado a resmas de empresas que só existem no papel que escondem os verdadeiros proprietários. Oficialmente, só ela é de carne e osso. O resto é segredo. Ou melhor, era.
Segundo variada documentação pública e notícias dispersas, Leticia é uma das pessoas que, em todo o mundo e em nome da Mossack Fonseca, dão a cara e o nome por sociedades cujo real proprietário recorreu aos serviços da firma agora visada nos Panama Papers. No papel, ela tem uma pilha milionária de empresas. Mas na verdade é isso mesmo: uma pilha. O resto é pura ficção. Ou quase.
Leticia vive em Vacamonte, um bairro popular do Panamá, que há uns anos foi notícia pelo lixo amontoado nos passeios, nas ruas e se tornou um problema de saúde pública. Segundo a Imprensa local, Leticia emprestou o nome à Mossack Fonseca por menos de 800 euros por mês e tornou-se “proprietária” de 10.967 sociedades criadas pela empresa que está no centro do mais recente escândalo relativo a contas offshore escondidas por políticos, criminosos e celebridades à volta do planeta.
Dar o nome tem custos que ela, se calhar, não imaginou nem pode pagar. Em 2014, por causa da ligação à Mossack Fonseca, foi chamada a um tribunal do Estado do Nevada, nos EUA – um território fiscal paralelo onde se multiplicam endereços de empresas fictícias – para explicar a sua relação com um suposto esquema de ocultação de dinheiro alegadamente ilícito que teria sido desviado por pessoas próximas de Cristina Kirchner, a antiga presidente da Argentina. Confrontada com as perguntas do tribunal, Leticia disse não ter qualquer informação sobre as 123 sociedades ligadas ao fundo que se suspeitava pertencer a um empresário ligado ao governo argentino. E não estava a mentir.
De acordo com uma reportagem da revista Vice sobre a Mossack Fonseca publicada em dezembro de 2014, no Nevada as leis apenas impõem que, nos registos públicos, apareça o nome de um agente residente e a identidade de um “gerente”. Mas não é obrigatório que qualquer deles seja…humano. “Essa separação falsa é uma tática empregue por muitos criadores de empresas de fachada porque permite que a empresa-mãe negue qualquer conexão com o seu escritório local se a merda chegar ao ventilador, de um ponto de vista legal”, explicou Ken Silverstein.
O nome de Leticia surgiu também associado a empresas envolvidas no escândalo de fraude, corrupção e lavagem de dinheiro de que é acusado um ex-dirigente da FIFA, Eugenio Figueiredo, detido na Suíça no ano passado, a pedido das autoridades dos EUA.
Mil e uma Letícias
A Mossack Fonseca é uma das muitas sociedades opacas que recorre a estes precários do sistema para ocultar os verdadeiros donos de fortunas que lesam estados em todo o mundo. Outros anónimos do Panamá são “contratados” para esses fins a baixo custo, sem fazer perguntas nem levantar problemas. Dois outros cidadãos citados são Francis Perez, “dono” de 10.554 empresas, e Katia Solano, esta chefe de pessoal da Mossack , que empresta a sua identidade a mais de 500 empresas. Vários documentos que, nos últimos tempos, foram tornados públicos, indicam que a sociedade fundada em 1977, e que tem como sócios o filho de um oficial nazi (Jurgen Mossack) e um romancista arrependido (Ramón Fonseca Mora), chegou a gerir diversas empresas cuja direção era assegurada por uma pessoa falecida.
Em 2011, o escritor Trevor Cole, ao serviço do jornal The Globe and Mail, do Canadá, foi atrás dos escritórios da Mossack Fonseca para as Ilhas Virgens britânicas, nas Caraíbas. Entrou no edifício Akara, “rebocado de azul, por cima de um pequeno estúdio de fotografia e de um posto de turismo”. Não havia elevador para o terceiro andar, apenas uma escada estreita, mal iluminada, com tijoleira lascada, descreveu. Sem ficar especialmente impressionado, foi apresentado a duas senhoras. Explicou-lhes os seus objetivos – esconder dinheiro – e os receios de recorrer a tais expedientes, testando a reação nas interlocutoras. “Compreendo. Quer confidencialidade. Deseja permanecer anónimo. Não quer que se saiba que está por trás da empresa. É possível”, tranquilizou-o uma delas. “Muitas pessoas e grandes empresas fazem isso”, assegurou.
O escritor, na pele de repórter, descobriu que por algumas centenas de dólares por ano, um habitante local estaria disposto a fazer passar-se por administrador de uma sociedade de fachada, tendo como único instrumento de trabalho um carimbo que lhe permitisse validar documentos. Mas havia um senão: “Um testa-de-ferro, que ganha 300 dólares por ano não vai arriscar a vida pela pessoa a quem dá cobertura. Envia uma carta de demissão e vem tudo à baila”.
Talvez por isso, andemos todos, por estes dias, aos papéis.