As suspeitas não eram de agora. Em outubro de 2015, o procurador Rosário Teixeira já andava à procura de informações sobre a misteriosa empresa do Grupo Espírito Santo (GES) suspeita de ter servido de “saco azul” para pagamentos não documentados a colaboradores e políticos. O magistrado responsável pela Operação Marquês pediu então ao Parlamento o envio de um contrato assinado entre Hélder Bataglia e a Espírito Santo Enterprises (ES Enterprises). Estava levantada a dúvida: teria algum arguido da Operação Marquês sido favorecido pela empresa que não aparecia nos organogramas do GES? As respostas chegaram ao processo antes de se saber que a ES Enterprises é uma das visadas no escândalo Panama Papers: 15 milhões dos cerca de 23 milhões de euros acumulados por Santos Silva na Suíça (e que a investigação suspeita serem de José Sócrates) terão alegadamente tido origem, precisamente, na ES Enterprises.
Entre o início e o fim do circuito, esses milhões terão passado por contas offshore de Hélder Bataglia, o fundador da ESCOM que é suspeito na Operação Marquês e no caso Monte Branco. No primeiro interrogatório do processo, Sócrates disse ter um relacionamento distante com Bataglia e recordou um encontro apenas, motivado por relações familiares.
Foi o próprio Bataglia quem entregou aos deputados da comissão de inquérito do BES/GES um contrato assinado em 2005 com a ES Enterprises, a troco de supostas ajudas em negócios de petróleo, minérios e imobiliário em Angola e no Congo. Como contrapartida, dizia ter recebido, em 2010, 7,5 milhões de euros daquela sociedade. Mas o total que terá recebido daquela empresa do GES será de pelo menos o dobro desse montante.
A hipótese de o grupo liderado por Ricardo Salgado ter um ‘saco azul’ para esconder o rasto de bónus e comissões ganha cada vez mais força no Ministério Público. Às descobertas da Operação Marquês, e das investigações ao universo Espírito Santo, juntam-se as revelações dos Panama Papers: o Expresso e a TVI, parceiros do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, descobriram entre os documentos emails e atas de reuniões que permitiram concluir que a empresa foi mantida em segredo durante 21 anos e que passou a ser gerida, em 2007, pela Mossack Fonseca – que terá criado mais de 300 offshores ligadas ao GES.
Em resposta à VISÃO, o porta-voz de Ricardo Salgado nega pagamentos a políticos: “Não tem conhecimento ou participou, direta ou indiretamente, em qualquer pagamento ilícito por parte do GES a políticos. Qualquer notícia que o pretenda envolver em práticas desse tipo é falsa e difamatória.” A defesa de José Sócrates também nega qualquer ligação à ES Enterprises. “Nunca teve conhecimento da existência dela, muito menos teve alguma relação com a empresa referida. A associação a essa empresa é maliciosa e destituída de qualquer fundamento.”
Quem pagou a Sócrates?
O procurador Rosário Teixeira e o inspetor da Autoridade Tributária Paulo Silva têm reunido elementos que apontam para mais de um corruptor no processo Marquês. Dois anos e oito meses depois do início da investigação, e à medida que as respostas às cartas rogatórias vão permitindo perceber quem transferiu dinheiro para quem, o Ministério Público desconfia agora que os fundos acumulados na Suíça por Santos Silva, alegado testa de ferro de Sócrates, tiveram origem no grupo Lena, nas empresas do empreendimento Vale do Lobo, no grupo GES e nos administradores da ESCOM. A tónica dos pagamentos seria a mesma: a investigação suspeita que terão sido beneficiados por decisões dos governos de José Sócrates, ora com a adjudicação de obras públicas, ora com concessões rodoviárias, ora com contratos imobiliários.
O processo já tem 12 arguidos, mas a lista de suspeitos ainda não está fechada. A investigação tornou-se mais complexa depois de ser detetada uma intricada teia de offshores. Das contas de duas sociedades do ex-ministro Armando Vara terão sido transferidos 575 mil euros, entre 2007 e 2009, para a Orsatti, sociedade com conta bancária em Londres. Também Diogo Gaspar Ferreira terá transferido para a Orsatti cerca de 600 mil euros em 2008. Essa sociedade, suspeitam os investigadores, terá sido usada para encobrir uma participação na Cyprus Aviation Services, com interesses num aeroporto do Norte de Chipre. Hélder Bataglia e Pedro Neto, também administrador de Vale do Lobo, terão investido 200 mil euros, em julho de 2007, na aquisição de 10% dessa sociedade através de uma outra, com sede em Dublin: a Queenlane Limited. Nesse negócio, Bataglia e Neto teriam como sócio Asil Nadir, um empresário cipriota condenado em Inglaterra (ver caixa). Os investigadores descobriram, numa nota de 2007, indicações de que a Orsatti seria apenas uma empresa intermediária usada para transferir fundos para a Queenlane. E outra referência que aponta para a hipótese de a Queenlane ter uma participação numa empresa portuguesa. Depois da ES Enterprises, os investigadores têm novos mistérios para resolver: descobrir que empresa era essa e também quem era o verdadeiro beneficiário da Cliffsol, criada em 2007. Foi essa offshore que ficou com 10% do capital da Turpart, parceira da CGD no negócio de Vale do Lobo.
A teia de offshores usada para as transações desse capital era tão sofisticada – com passagens pela Suíça, Reino Unido, Portugal e Chipre –, que Rosário Teixeira e Paulo Silva suspeitam que teria de haver uma razão especial para encobrir a operação