Ainda hoje pensa que é de baixa estatura por não lhe terem dado tempo para crescer. Da infância, passou diretamente à idade adulta. Recorda sem saudade a própria figura, imberbe, encolhida sob a chuva, lavrando terras com um arado de madeira, puxado por duas vacas. Tinha oito anos quando o pai emigrou e já era militar, com dezanove, quando este regressou. Cresceu só com a mãe, a quem diz dever muito, apesar de a recordar áspera, como todas as pessoas naqueles tempos difíceis, numa pequena aldeia do sudeste de São Miguel, nos Açores. Ali, garante Ângelo Melo, enquanto atira o olhar sobre o casario, praticamente ninguém cantava riqueza.
Quando, de carro, me aproximo da Povoação, sede do concelho com o mesmo nome, tenho a impressão de se tratar de uma localidade tombada de um penhasco, ou que deslizou dele com vontade de partir mar afora. Lá em baixo, na parte Sul, banhados pelas ondas que trouxeram o navegador Gonçalo Velho Cabral, veem-se os edifícios da Câmara Municipal, do antigo tribunal, do pavilhão multiúsos, um hotel que lembra um farol, debruçado sobre uma pequena marina, tudo em branco caiado, a contrastar somente com as pedras de basalto que abraçam portas e janelas. Começo a poucos metros dali a conversa com aquele homem de 70 anos, defronte da Biblioteca Pública, instalada em edifício contíguo à Igreja de Nossa Senhora do Rosário, a que chamam Igreja dos Povoadores, a primeira da ilha, erguida em 1500, e que já albergou os Paços do Concelho. Tem a porta virada para o Atlântico e para as pequenas piscinas ao ar livre, onde – apesar dos catorze graus – nadam dois casais estrangeiros. Mesmo ao lado, um restaurante que foi um antigo forno de cal acende o lume para o almoço. Passa um ou outro carro e, fora isso, alheados dos afazeres dos humanos, ouvem-se apenas os pássaros nas árvores encanteiradas. Ângelo Melo, gasolineiro reformado, logo começa a falar-me da maior de todas as paixões e razão do nosso encontro: os livros. Dias antes, devolvera uma dúzia à biblioteca que nos olha. A leitura, explica, tornou-se coisa séria na idade adulta; antes disso, o campo não dava descanso e o desejo maior do pai era vê-lo fora da escola, para ter quem o ajudasse a criar uma lavoura de gado. A mãe também não via outro remédio e disse-o ao professor Ernesto da Mota Teves, um homem de muito brio e exigência, que se limitou a declarar ser pena ficar para trás quem deveria ir para a frente. Por isso, Ângelo não teve um banco de escola longo, lamenta. Com os colegas que também foram aprovados, fez uma festa quando terminou a quarta classe. Juntaram uns ferrinhos, dinheiro dado pelos pais, e alugaram um táxi com o qual correram a aldeia – andar de automóvel não só era coisa rara, como motivo de vaidade. E não perder nenhum ano era uma vitória, assim como ter adquirido o saber elementar e posto fim ao sacrifício do estudo. Estava ainda por entender, explica, enquanto ajeita o boné preto sobre o cabelo grisalho, que os livros são os melhores amigos que podemos ter e que aprender é um caminho para uma vida melhor. Foi por isso que, mais tarde, fez questão de voltar à escola, para terminar o liceu, objetivo que a vida não lhe permitiu cumprir, pela urgência de alimentar várias bocas. Mas recorda com orgulho que fez os dois anos do ciclo preparatório num só, com boas notas, entre as quais destaca, com um sorriso contido, um 17 a Português e um 18 a História. E remata: nessa altura, já tinha percebido que a leitura nos ajuda a entender o mundo e a ver a dimensão da nossa nudez, da nossa simplicidade.