1. O Sol do Futuro, de Nanni Moretti
Em O Sol do Futuro, Nanni Moretti troca a sua velha lambreta por uma moderna trotinete, daquelas que hoje proliferam nas cidades, para dar voltas de repérage num dos mais emblemáticos bairros de Roma. O filme representa o regresso do realizador italiano ao estilo de Palombella Rossa (1989), Querido Diário (1993) e Abril, (1998), filmes autoficcionados que o transformaram num ícone universalmente reconhecível.
Neste O Sol do Futuro há uma ligação explícita e inequívoca a Palombella Rossa e ao debate ideológico em volta da esquerda italiana e europeia. Voltamos a encontrar Moretti a fazer de Moretti, com as suas angústias e neuroses. Ele é um realizador, chamado Giovanni, que se esforça por entender as transformações do mundo à sua volta, ao mesmo tempo que prepara um filme sobre o impacto que teve no Partido Comunista Italiano a Revolução Húngara de 1958, que terminou violentamente esmagada pelos tanques soviéticos. Com toda a sua intelectualidade, ironia e rezinguice, Moretti continua a conquistar-nos. De Nanni Moretti, com Nanni Moretti, Margherita Buy, Silvio Orlando, Barbora Bobulova, Mathieu Amalric > 95 min
2. Fechar os Olhos, de Víctor Erice
O filme fala de um ator, e não de um realizador desaparecido. Mas é fácil transpor parte desta história para o percurso do próprio Víctor Erice, o mais bissexto e mítico dos realizadores espanhóis, que regressa ao cinema mais de 30 anos depois da sua última longa, O Sol do Marmeleiro (1992), e 40 anos depois da sua última ficção, O Sul (1983), sendo que antes disso só havia realizado outra longa, O Espírito da Colmeia, em 1973. Este espaçamento enorme entre os filmes e a sua qualidade fazem com que Erice se tenha tornado um mito, uma lenda viva.
Em Fechar os Olhos paira uma ideia de retrato geracional. Há profundidade e mistério em volta da personagem principal, que parte em busca do amigo e do passado. É uma geração derrotada, amargurada e nostálgica, feita de anti-heróis. Ao mesmo tempo, prevalece um sentido de humanidade e de propósito na segunda parte do filme, em que um fechar de olhos abre todos os corações. Um filme de grande beleza e aparente simplicidade, um Erice tardio e inspirador que faz jus à sua miraculosa filmografia. De Víctor Erice com Manolo Solo, José Coronado, Ana Torrent, Soledad Villamil, Helena Miquel > 149 min
3. Ursos Não Há, de Jafar Pahani
Se abandonassem Jafar Panahi no deserto, ele faria um filme apenas com os grãos de areia. Panahi é apenas um dos realizadores a sofrer na pele a violência do regime de Teerão, mas a extrema qualidade e originalidade do seu cinema transformaram-no num dos maiores símbolos de resistência pela arte.
Em Ursos Não Há, não chegou ao extremo de Isto Não É um Filme, a obra que fez em prisão domiciliária, mostrando até que ponto a necessidade aguça o engenho. Ainda assim, é um filme corajoso e desconstruído, em estilo de autoficção, em que se expõem os contrastes e contradições do Irão urbano e rural, tendo sempre como pano de fundo a fuga do país.
Panahi faz dele próprio. É um realizador consagrado, que se refugia numa aldeia próxima da fronteira com a Turquia e dirige remotamente o filme que está a ser rodado na capital – sobre um casal que tenta encontrar forma de fugir para a Europa.
Ursos Não Há é um filme de grande inteligência e sobriedade, que suscita questões primordiais do universo iraniano, numa contestação subtil, ao mesmo tempo que inova e reinventa a forma de contar histórias, que é um dos ex-líbris do cinema e da cultura persas. De Jafar Panahi, com Jafar Panahi, Naser Hashemi, Vahid Mobaseri, Bakhtiar Panjei, Mina Kavani > 106 min
4. EO, de Jerzy Skolimowski
Com um pouco de boa vontade, o burro do filme de Jerzy Skolimowski poderia ter sido nomeado para o Oscar de Melhor Ator, mas a academia ainda não abriu quotas para equídeos. Além disso, para interpretar EO, o brilhante protagonista do filme do realizador polaco, foram necessários seis burros, cada um menos teimoso do que o outro. Mas, claro, o realizador, que se entregou à tarefa de dirigir animais conhecidos pela sua casmurrice, no final fez questão de deixar a nota de que nenhum deles foi maltratado e que todo o filme é uma declaração de amor aos animais.
Jerzy Skolimowski, veterano realizador polaco, chegou desta forma, pela primeira vez, aos Oscars. Mas o grande favorito na categoria de melhor filme estrangeiro era A Oeste Nada de Novo, do alemão Edward Berger, que acabou por ganhar.
EO inspira-se assumidamente em Peregrinação Exemplar (Au Hasard Balthazar, 1966), clássico de Robert Bresson. O burro é protagonista, mas, acima de tudo, um fio condutor, para mostrar a visão do realizador sobre o mundo. De certa forma, EO é um filme de aventuras, de peripécias, em que, através da involuntária peregrinação do animal, somos convidados a refletir sobre a natureza humana.
O bem-estar de EO está dependente do humanismo e empatia daqueles com quem se cruza. E em todos os momentos persiste um sentido irónico sobre a própria natureza humana. E, claro, a única conclusão possível é que burros somos nós. De Jerzy Skolimowski, com Sandra Drzymalska, Isabelle Huppert, Lorenzo Zurzolo, Mateusz Kosciukiewicz > 88 min.
5. Asteroid City, de Wes Anderson
Asteroid City só não é um cometa cinematográfico que aterrou no deserto norte-americano porque Wes Anderson já nos habituou tanto às suas loucuras que o filme encaixa plenamente, sem demasiada surpresa, no seu universo criativo.
Facilmente se encontram pontes entre este inusitado e surrealista Asteroid City e o anterior Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun. E se um dos mais conseguidos filmes do realizador de culto norte-americano é uma animação (O Fantástico Sr. Raposo), os seus filmes em imagem real cada vez se assemelham mais a animações, ou melhor, bandas desenhadas.
Asteroid City, uma fantasia passada nos anos 50, cruza três camadas de (sur)realidade. Primeiro, o guião de uma peça de teatro da época; depois, um encontro nacional de jovens crânios; e, finalmente, a desconstrução de tudo isto com os bastidores da própria peça. A ação passa-se no meio do deserto norte-americano, num não lugar, parecido com tantos outros, onde há uma bomba de gasolina, uma oficina, um diner e um motel. As personagens são, por definição, caricaturas autoconscientes, assim como o próprio lugar é caricatural.
Para tudo isto contribui um elenco fora de série, com interpretações marcantes de Jason Schwartzman, Tom Hanks e Scarlett Johansson. E que se dá ao luxo de entregar papéis secundários a Tilda Swinton, Matt Dillon, Edward Norton, Adam Brody, Willem Dafoe, Steve Carell ou Margot Robbie. De Wes Anderson, com Jason Schwartzman, Tom Hanks e Scarlett Johansson > 104 min.
6. Dias Perfeitos, de Wim Wenders
Terá sido a admiração por Yasujiro Ozu (1903-1963) que levou o alemão Wim Wenders a instalar-se em Tóquio para fazer Dias Perfeitos. Wenders criou um poema zen. Um elogio ao despojamento, à contemplação, às coisas simples da vida. Hirayama é um técnico de limpezas de casas de banho públicas em Tóquio. Desempenha a função com indescritível minúcia e incansável dedicação. À hora de almoço, come uma sanduíche sempre no mesmo banco de jardim. Entre a casa e o trabalho, ouve música norte-americana dos anos 60 e 70, num velho leitor de cassetes. Gosta de ler e de fotografar. É um homem de rotinas. Sorri.
O filme é feito de silêncios. A própria personagem só fala quando é preciso. Numa essência que desafia a lógica materialista contemporânea, diz-nos que um limpador de casas de banho pode ser mais feliz do que um milionário.
Dias Perfeitos deriva entre a ingenuidade e a paz, numa toada senão religiosa pelo menos espiritual. Para tal, conta bastante com a interpretação solar de Kôji Yakusho, que lhe valeu uma Palma de Ouro em Cannes, e uma banda sonora com Lou Reed, Patti Smith, Kinks, Van Morrison, entre outros – o tema que mais brilha é The House of The Rising Sun, dos Animals, na versão karaoke. De Wim Wenders, com Kôji Yakusho, Tokio Emoto, Arisa Nakano, Aoi Yamada > 123 min.
7. Golpe de Sorte, de Woody Allen
Woody Allen costuma dizer que, quando está em Nova Iorque, sente saudades de Paris e, quando está em Paris, sente saudades de Nova Iorque. É um bom retrato da insatisfação permanente que o habita, mas não deixa de ser sintomático que o realizador, que começou por documentar Nova Iorque exemplarmente (ele próprio dizia que, se não servisse para mais nada, Manhattan valia como registo da cidade), acabe a fazer filmes franceses.
Golpe de Sorte não só foi rodado em França, com produtores franceses, como é inteiramente falado em francês – é, mesmo, o primeiro filme de Woody Allen que não é falado em inglês. Diga-se que até seria uma deliciosa piada, se a Academia de Hollywood resolvesse dar-lhe o Oscar para o melhor filme estrangeiro…
Trata-se de uma comédia romântica, transformada em policial, mas, acima de tudo, um filme de enredo, de personagens bem trabalhadas, que Allen, com uma mestria clássica, molda de forma exemplar, surpreendendo com humor e engenho. Tal como em Match Point (2005), havia a ideia de que um pequeno acaso pode determinar uma vida, aqui há toda uma reflexão sobre sorte e coincidências. De Woody Allen, com Lou de Laâge, Valérie Lemercier, Melvil Poupaud, Niels Schneider > 93 min