Emparedada pelos edifícios, na Rua da Sofia, em Coimbra, mal vê a luz do sol e o trânsito (automóvel e de pessoas) que por ali corre é, habitualmente, insuportável. Não há tempo para parar e apreciar os antigos colégios (muitos em mau estado de conservação e de portas fechadas), edificado pertencente ao conjunto classificado pela Unesco, em 2013, como Património da Humanidade. Mas houve quem quisesse ir para lá das aparências e embrenhar nas memórias de quem habita esta rua ou por lá passou. Daqui resultou o espetáculo Sofia, meu Amor, o primeiro da rede Artéria, que este sábado e domingo, dias 30 e 1 de julho, convida o público a descobrir as vielas, ruelas e vidas escondidas por detrás das fachadas.
Com coordenação artística do Teatrão, o projeto arrancou há três anos, com um mapeamento do tecido cultural (a coordenação académica coube ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra) das oito cidades envolvidas: Belmonte, Coimbra, Figueira da Foz, Fundão, Guarda, Ourém, Tábua e Viseu. Contou, para isso, com o envolvimento dos municípios, dos agentes culturais e das instituições académicas de cada localidade. O objetivo era identificar as estruturas artísticas que poderiam ser envolvidos nas iniciativas e que tivessem ambições de se profissionalizar. “Uma rede de programação normalmente compra espetáculos e põe-nos a circular, mas aqui criamos espetáculos de acordo com este estudo prévio e trabalho conjunto”, adianta Isabel Craveiro, a diretora artística da Artéria. “Temos a ambição de contribuir para o desenvolvimento do tecido artístico local.” Foram ainda identificados, em cada cidade, os espaços patrimoniais recuperados ou em processo de requalificação, fortemente identitários e congregadores da memória coletiva, que pudessem servir de palco aos espetáculos.
No caso da Rua da Sofia, em Coimbra, começaram por um mapeamentos dos residentes e do comércio e associações ali instalados. “A partir daqui, juntamos estas pessoas em workshops e recolhemos histórias do passado e ambições para o futuro, queixas sobre políticas autárquicas, questões sobre a recuperação do património e isso tudo isso foi determinante para a criação da dramaturgia do espetáculo”, conta Isabel Craveiro. Lentamente, descobriram uma rua que nunca tinha visto, com a ajuda da Trincheira Teatro, a companhia coimbrã convidada a dirigir o espetáculo. “Fomos todos os dias olhando, observando, perscrutando os desafios que se colocam diariamente à vida, na e da rua. Conhecemos as suas gentes: moradores, lojistas, trabalhadores dos serviços que aí se encontram; tentámos, com um grau de sucesso oscilante, estabelecer um diálogo real com estas pessoas, cuja vida brota diariamente neste vaso que é a arquitetura envolvente”, descreve Pedro Lamas, que assina a direção artística, juntamente com João Paiva.
Para Jorge Palinhos, responsável pela dramaturgia, foi Sofia, meu amor a abrir-lhe as portas dos edifícios e a revelar-lhe património, mas também vidas esquecidas. “Na Rua da Sofia encontrámos perda, sofrimento, sonhos, esperanças, mistérios, faltas, amizades, cumplicidades, idosos, crianças, pessoas que vivem, pessoas que trabalham, pessoas que estão de passagem, pessoas famosas, pessoas esquecidas, memórias que escorrem pelas paredes como a transpiração desta rua maratonista, que é abandonada, frequentada, histórica e vivida. Tudo ao mesmo tempo”, escreve o dramaturgo. A comunidade local teve vários graus de participação, desde o apoio à criação, ao apoio à produção, integrando também o elenco do espetáculo, como os próprios ou personagens.
O espectáculo, feito em forma de percurso, forma linhas imaginárias que conduzem a diferentes histórias, saberes e experiências. “Foi dada atenção não só ao património material da rua, mas também imaterial, por isso o espetáculo começa na Rua da Sofia mas rapidamente se perde pelas suas traseiras, pelos sítios que condensam a vida”, sublinha Isabel Craveiro. Depois de Coimbra, Sofia Meu Amor passará pela Guarda, Ourém e Belmonte. “A ideia não é desvirtuar ou adaptar a dramaturgia, mas obviamente tem de haver adaptações aos espaços e uma preparação do público, nos materiais ou na informação que lhe damos”, explica a coordenadora.
Durante o mês de agosto, haverá outras estreias da Artéria: Vagar, de Marina Nabais, em Ourém (3-5 ago); A Rua Esquecida, de Fernando Moreira, no Fundão (4-5 ago); saal, de Filipa Francisco, na Figueira da Foz (17-19 ago); e O Labirinto do Mercador, de Graeme Pulleyn, na Guarda (24-26 ago). Todos eles passarão por outras cidades da rede. Com um impacto, desejável, na afirmação deste território na produção e circulação artísticas.
Sofia, Meu Amor > R. da Sofia e zona envolvente, Coimbra > 30 jun-1 jul, sáb 18h, dom 15h-18h30 > Lg. João de Deus, Guarda > 7 jul > Vila Medieval, Ourém > 15 jul > R. 1º de Maio, Belmonte > 22 jul > entrada livre, sujeita a reserva obrigatória através do número 91 961 2123