Akram Khan não esconde o seu fascínio pelo compositor Igor Stravinsky (1882-1971): “A inspiração para este espetáculo não partiu só de A Sagração da Primavera, partiu de todas as coisas que fui descobrindo à medida que ia lendo sobre ele.”
iTMOi – In The Mind of Igor, em estreia nacional pela Companhia Nacional de Bailado, foi criado pelo coreógrafo britânico de origem bangladeshiana, em 2013, no âmbito do centenário da estreia de A Sagração da Primavera, composição revolucionária de Stravinsky que contrariou todos os cânones da época e deu um passo em frente até à contemporaneidade.
Akram opta por caminhos inesperados em iTMOi, evitando a diluição de se tornar “apenas mais uma” interpretação de A Sagração da Primavera. Folclore russo, flamenco ou kathak (dança clássica indiana) são algumas das referências de uma coreografia em que todos os gestos são imprevisíveis, como se cada cena acabasse em rotura com qualquer destino previsível. O britânico distancia-se, também, da icónica coreografia criada por Pina Bausch, em 1975.
Esta é a primeira vez que o coreógrafo autoriza outra companhia que não a sua a produzir uma das suas peças na íntegra.
À VISÃO Se7e, Akram Khan fala dos sacrifícios enquanto recomeços. Confessa, ainda, que o episódio bíblico no qual Abraão é instado a matar um dos seus filhos deu origem a um trauma de infância, superado com a ajuda deste espetáculo.
Parecem estar a acontecer muitas coisas na mente de Igor…
Na verdade, é na minha mente que se passam todas estas coisas e não na mente de Igor. Na altura em que tive uma lesão no tendão de Aquiles fui convidado para fazer uma peça por ocasião do centenário de A Sagração da Primavera [2013]. Nessa época, pensei muito em Igor Stravinsky, andei a ouvir a música dele. Claro que já adorava A Sagração da Primavera, mas fiquei fascinado pelo próprio compositor. A inspiração para este espetáculo não partiu só de A Sagração da Primavera, partiu de todas as coisas que fui descobrindo à medida que ia lendo sobre ele.
Podemos estabelecer paralelismos entre o sacrifício a que assistimos em cena e o sacrifício de Stravinsky pela crítica depois da estreia de A Sagração da Primavera?
Não me limitei ao que aconteceu na estreia de A Sagração da Primavera. Sabia que tinha sido muito controversa, na medida em que colidiu com a ideia que as pessoas tinham do que deveria ser a música e a dança clássicas, mas estava mais interessado nos sentimentos de Stravinsky antes da estreia. Uma das personagens é vagamente inspirada em Stravinsky e na probabilidade de ele já saber que iria provocar controvérsia. Stravinsky encontrou uma nova maneira de se expressar, estava muitos anos à frente do seu tempo, e resolveu ir em frente. A personagem levemente inspirada nele também se sacrifica para salvar a sua voz individual.
Há um grande peso ritualístico ao longo de todo o espetáculo que começa com a invocação do episódio bíblico de Abraão…
A história de Abraão está intimamente ligada à minha infância. Foi a minha mãe quem me contou esse episódio bíblico e, na altura, fiquei horrorizado. Eu sabia que havia uma moral associada: se tivermos fé estamos dispostos a sacrificar, sem questionar, o que mais amamos, até um filho. Isso horrorizou-me. Perguntei à minha mãe se me sacrificaria e ela disse que não. Durante o processo de criação desta peça perguntei-lhe porque me tinha confundido com esta história e ela disse-me que queria semear a dúvida. “A dúvida é um poderoso guia para a certeza”, disse-me. Isso para mim foi muito importante. Ela queria que eu questionasse tudo o que amo. Acho que também foi isso que Stravinsky fez. Ele questionou tudo o que amava. Ele queria questionar a maneira como tudo era feito e, ao questionar, ele procurava a sua voz. Não que ele não adorasse a música clássica mas, naquele momento, ela não dava resposta às perguntas que ele fazia e à sua curiosidade. Por outro lado, eu também queria usar uma história religiosa porque Stravinsky tinha imensas contradições, como muitos artistas geniais têm. Ao mesmo tempo que fazia música revolucionária, ia à Igreja Ortodoxa todos os domingos. Isso é muito contraditório.
Só ouvimos um minuto de A Sagração da Primavera ao longo do espetáculo. A restante banda-sonora foi composta por Nitin Sawhney, Ben Frost e Jocelyn Pook. Como foi trabalhar com três compositores ao mesmo tempo?
Talvez tenha sido um pouco frustrante para eles… Foi mais excitante para mim. Havendo mais do que um compositor eles ficam sempre muito curiosos sobre o que os outros estão a fazer. Quando um deles ia ao nosso estúdio, eu costumava dizer que havia de combinar um encontro entre todos. Mas assim que ele se ia embora eu dizia à minha equipa: “Façam o que fizerem, garantam que eles nunca se encontram”. Não queria que eles se influenciassem uns aos outros. Os três propuseram coisas muito diferentes e desafiaram o processo de criação. Foi muito interessante trabalhar desta maneira.
O que quis dizer quando escreveu na sinopse do espetáculo que uma mulher a dançar até à morte é de uma enorme inspiração?
Não acho que seja inspirador uma mulher dançar até à morte, a narrativa é que é inspiradora. Uma mulher a dançar até à morte é muito violento e muito errado. Quando digo inspirador, o que quero dizer é que usei essa inspiração como combustível para o meu trabalho. O sacrifício em si é muito violento, todos os sacrifícios são muito violentos, quanto mais de uma jovem. O sacrifício tornou-se instrumental. Sacrificamos sempre uma parte de nós perante a sociedade. Eventualmente, vamos sacrificar os nossos corpos perante a tecnologia, o Governo, o Estado… Há sempre um elemento de sacrifício no que fazemos.
Um sacrifício que também conduz a um renascimento?
Sim, o renascimento também é um momento de sacrifício. Em A Sagração da Primavera é preciso um sacrifício para a nova estação chegar e haver um recomeço. Na nossa civilização chegámos a um momento em que perdemos todos os mitos. Temos de criar novos mitos, um novo nascimento, sobretudo para as novas gerações isso é vital.
Para que as novas gerações consigam ver a chamada luz ao fundo do túnel?
Não sei se será para verem a luz… Mas para terem um equilíbrio. Tornámo-nos mesmo desequilibrados. O sistema capitalista, com os ricos cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres, o acesso à Internet e a divulgação da informação, a facilidade de sermos manipulados… Todos estes pensamentos são disfuncionais. As brechas entre nós serão cada vez maiores e ficaremos cada vez mais afastados.
Com este espetáculo quis debruçar-se sobre a condição humana, mas este conceito é muito abrangente. Como encontrou o seu caminho?
Estava fascinado com a condição humana na sociedade, andava a ler muito Oscar Wilde, e procurava personagens e pessoas. Uma das coisas que me fascinou foi como abordar uma personagem. Como identificar uma personagem que eu quisesse trabalhar e, a partir daí, encontrar um processo que ajudasse os performers a incorporar essa personagem. Encontrei cinco coisas fundamentais nesse processo: a perceção (como a personagem vê o mundo), a crença (que crenças tem a personagem), o desejo (o que deseja a personagem), a intenção (qual é a intenção da personagem) e, estes quatro aspetos, conduzem ao quinto: a ação da personagem.
iTMOi – In The Mind of Igor > Teatro Camões > Passeio do Neptuno, Pq. das Nações, Lisboa > T. 21 892 3470 > 23 fev-4 mar, qui-sex 21h, sáb 18h30, dom 16h > €5 a €30 > Teatro Municipal Rivoli > Pç. D. João I, Porto > T. 22 339 2201 > 9-11 mar, qui-sex 21h30, sáb 19h > €10