Natural de Brooklyn, Robert Lubar Messeri, 58 anos, especialista na obra de Joan Miró, não chegou a conhecer o artista catalão, mestre do surrealismo, falecido no Natal de 1983, em Palma de Maiorca. “É um dos meus desgostos”, confessa à VISÃO Se7e, durante uma curta passagem pela Casa de Serralves, no Porto, onde esteve, na semana passada, a preparar a exposição Joan Miró: Materialidade e Metamorfose, que inaugura no próximo dia 30. “Conheci muito bem a sua filha [Dolors Miró, que morreu em 2004], os seus netos são amigos chegados de toda a minha família”, diz. O professor de História de Arte no Instituto de Belas Artes da Universidade de Nova Iorque – que é também diretor do polo de Madrid da New York University e responsável pela cátedra de Joan Miró na Universidade Aberta da Catalunha – descreve o pintor como “um homem muito calmo, reservado, mas com um incrível poder interior”. “Era um homem espiritual. O que não significa que estivesse sentado na igreja… A sua espiritualidade tinha a ver com o facto de procurar ligações com muitas coisas e isso nota-se nas suas pinturas”, explica.
O curador da exposição que, pela primeira vez, desvendará ao público as 85 obras de Joan Miró na posse do Estado português, provenientes do Banco Português de Negócios (BPN), diz ter encontrado “uma extraordinária coleção”, também “brilhante” do ponto de vista académico. “Percorre obras de Miró de toda a sua carreira, desde o início, em 1924, até dois anos antes da sua morte”, justifica. A maioria dos 85 trabalhos – “obras em papel, tapeçarias, esculturas, colagens…” – veio da Pierre Matisse Gallery, em Nova Iorque. Trata-se, salienta Robert Lubar Messeri, de “uma representação excecional da carreira de Miró”. E é pelo facto de atravessar seis décadas de vida do artista que Messeri defende a necessidade de a coleção ser mantida como um todo. “Seria uma tragédia terrível se ficasse dispersa. É uma oportunidade única”, acrescenta. A este propósito, Lubar Messeri sugere a criação de uma espécie de “triângulo cultural na Península Ibérica”, ligando Portugal (o Porto, cidade apontada para o futuro da coleção) à Fundação João Miró, em Barcelona, e à Fundação Pilar e Joan Miró, em Palma de Maiorca.
“Ter um núcleo de Miró em Portugal parece-me um bocado surrealista. Não é todos os dias que sai uma lotaria destas”
O dossier Miró – e sobretudo o modo como deverá ser gerida esta coleção – está longe de estar fechado e de reunir consensos. A historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, professora da Universidade Nova de Lisboa, prefere não emitir, por ora, uma opinião sobre a matéria. “Sempre achei que se devia fazer uma exposição com as obras, mas só depois de as ver é que me pronunciarei sobre elas”, afirma. Também o crítico de arte e professor da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto Bernardo Pinto de Almeida pede “prudência”. Apesar de garantir que as obras são “do melhor que há” – “não as conheço pessoalmente, mas vi reproduções das obras” –, tem dúvidas quanto à permanência da coleção no País. “Se ficarem em Portugal, é sempre um benefício, mas não sei se será o melhor. Nem a Tate Modern, em Londres, nem o MoMA, em Nova Iorque, têm tantas obras de Miró”, justifica. Pinto de Almeida considera não existirem museus nacionais “capazes de receber obras desta escala”. “Ter um núcleo de Miró em Portugal parece-me um bocado surrealista”, diz. Reconhece tratar-se de “um dossiê muito sensível”, considerando que o melhor, em sua opinião, seria “seguir o exemplo dos museus americanos”. “O meu conselho é que se usem algumas daquelas obras como forma de troca para ajudar coleções nacionais que precisam de apoio. Como Serralves, por exemplo”, sustenta Pinto de Almeida. O assunto exige, argumenta, discussão. “Não é todos os dias que sai uma lotaria destas”, acrescenta. Robert Lubar Messeri recusa comentar o valor de mercado das obras (avaliadas pela leiloeira Christie’s em 35 milhões de euros, no mínimo), embora realce que, “qualquer que seja o valor da coleção no mercado, é muito inferior à importância cultural que tem para Portugal”. “Para si e para mim, seria muito dinheiro, mas para os governos nacionais não vai fazer diferença nenhuma.”
Destino da coleção: Porto?
A montagem de Joan Miró: Materialidade e Metamorfose, que estará patente até 28 de janeiro de 2017, tem sido, também, um desafio para a própria Casa de Serralves, edifício art déco dos anos 30. O desenho arquitetónico da exposição pertence ao arquiteto Álvaro Siza Vieira. “Não se podia tocar nos tetos, que são belíssimos”, conta o prémio Pritzker à VISÃO Se7e. A solução encontrada passa por dispor as obras “em painéis autónomos com as dimensões adequadas”, para que o público, diz o arquiteto, “sinta a atmosfera da casa”. Ao mesmo tempo, Siza Vieira quis relacionar a obra de Miró com a própria arquitetura dos anos 30, permitindo “que a Casa de Serralves respire”, acrescenta Robert Lubar Messeri. “Quando conheci Siza Vieira, fiz-lhe uma vénia. Trata-se de um arquiteto brilhante, com uma visão e uma sensibilidade incríveis para trabalhar com arte”, comenta o curador.
Nas últimas décadas, apenas duas exposições se fizeram em Portugal à volta das obras do artista catalão: Os Mirós de Miró, em 1990, na Fundação de Serralves, no Porto, e Constellations de Joan Miró, na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, em 1998, em Lisboa. Nenhuma delas é comparável à que inaugura dentro de dias, na Casa de Serralves. Será a primeira oportunidade de tanto especialistas como público em geral verem a quase totalidade das obras de Joan Miró que estiveram prestes a ser vendidas num leilão da Christie’s, em Londres, e que entretanto se encontram na posse da Parups e da Parvalorem, sociedades de capitais públicos criadas para gerir os ativos e créditos do BPN. Onde ficarão, depois, as 85 obras de Miró – há algumas que não serão incluídas por não se adequarem à temática da exposição – é ainda uma incógnita. A Câmara Municipal da Porto, que assumiu desejar que a coleção fique na cidade, depois de o Governo ter manifestado essa vontade, não tem ainda o local decidido. Nuno Santos, adjunto do presidente da Câmara, Rui Moreira, diz que “tanto a Câmara como o Ministério da Cultura estão a estudar possíveis soluções, quer do modelo de gestão quer da sua localização”. A exposição em Serralves, acrescenta Nuno Santos, será crucial para “curadores, críticos e avaliadores perceberem a coerência de toda a coleção”.
Suzanne Cotter, por sua vez, deseja que Joan Miró: Materialidade e Metamorfose seja “uma oportunidade de discussão e debate”. A diretora do Museu de Serralves salienta que a gestão da coleção requer a experiência de “curadores, conservadores e especialistas em museologia”, que entendam o seu valor e os “benefícios” tanto académicos como para o público em geral. Siza Vieira também aguarda: “Passa a ser uma documentação da máxima importância. Oxalá fique no nosso país. Se for no Porto, tanto melhor.” Da exposição, onde em diferentes suportes será possível ver as metamorfoses artísticas de Miró, espera-se que sobressaia o tal homem “com um incrível poder interior”.
Os 7 Mirós a não perder
As obras mais marcantes da coleção, segundo Robert Lubar Messeri, curador da exposição de Serralves:
Danseuse Espagnole (1924)
Pertence ao período em que Miró, depois de ter conhecido André Breton, “transformou o seu estilo e a pintura moderna do século XX”. “Qualquer museu do mundo, incluindo o MoMA e o Centro Georges Pompidou, que têm obras muito boas de Miró, gostariam de a ter”
La Fornarina (d’Après Rafael) (1929)
“Um retrato imaginário” inspirado numa obra homónima de Rafael, que integra “uma de três séries de retratos imaginários” de Miró
Peinture (1935)
Ecriture sur fond rouge (1960)
Sobreteixims (1973)
Seis telas de uma série de 31
Toile Brulée (1973)
Peintures sur Masonite (1936)
Seis pinturas de uma série de 27 obras produzidas por Miró, entre julho e setembro de 1936. É um trabalho de tal forma “importante” que Messeri está a pensar fazer uma exposição em Barcelona com elas