Tal como está prometido, este domingo, 11, uma emissão especial de Como é que o bicho mexe? no Instagram dará início ao final de “um ciclo bonito”, numa “passagem de testemunho simbólica”. Contenham-se os mais nostálgicos, pois é por uma boa causa. O convite é que larguemos os telemóveis e passemos a nossa atenção para a emissão da SIC, na estreia de Princípio, Meio e Fim. Dois anos depois de ter feito a série Sara, exibida na RTP2, e seis anos após Som de Cristal, Bruno Nogueira regressa à SIC com um programa que é uma ode ao erro e uma homenagem aos argumentistas.
Ao longo de seis episódios, de 45 minutos cada, veremos sempre a mesma situação: um grupo de cinco amigos que se reúne todas as semanas para jantar. Apenas o texto muda e a escrita desse argumento, feita por quatro autores – o próprio Bruno Nogueira, Filipe Melo, Nuno Markl e Salvador Martinha -, também é revelada logo no início de cada programa. O quarteto criativo tinha apenas de cumprir duas premissas: respeitar as duas horas estipuladas para escrever e nunca, mas nunca, emendar os erros. Será por isso normal se ouvirmos Paulo (Albano Jerónimo), Stone (Nuno Lopes), Maria João (Rita Cabaço), Francisca (Jessica Athayde) e Luís Henrique (Bruno Nogueira) a dizerem disparates, frases sem lógica ou mesmo a gritarem. Com produção de Sandra Faria e realização de Cristiana Miranda, Princípio, Meio e Fim surge como algo incatalogável entre os géneros existentes e que poderá ser o início de uma nova forma de trabalhar.
Ao telefone, em entrevista à VISÃO, Bruno Nogueira, 39 anos, fala da importância de quem escreve, do gosto em trabalhar com amigos e da liberdade da criação.
Quem nunca ouviu falar do fenómeno Como é que o bicho mexe?, ou não assistiu a um direto no Instagram, vai perceber o que passa no programa?
Sim, é uma coisa completamente dissociada da outra. A única coisa que pode transitar é um espírito de amizade ou de cumplicidade que se foi cimentando no Bicho. Mas não há nada no conceito que cruze uma coisa e outra. Um não depende do outro, sobrevivem os dois sozinhos.
Então qual é o conceito do programa?
Da minha experiência em explicar a ideia aos atores, à realizadora e à produtora, cheguei à conclusão que começar pelo fim era mais simples. É um grupo de cinco amigos (do secundário ou da universidade, não está definido), com uma grande cumplicidade, que se junta todas as semanas para jantar. O texto, ou seja o que acontece nesse jantar, é escrito no princípio do programa por quatro autores – eu, Filipe Melo, Nuno Markl e Salvador Martinha, que temos duas horas, depois convertidas em minutos de televisão, para escrever um argumento para aquelas personagens. O que varia em relação ao argumento convencional é que tudo o que houver de erros ortográficos, letras maiúsculas que obrigam a gritar ou de falhas de lógica no decorrer da história, vai ser assumido. E não só os erros não são disfarçados, como não são justificados. Ou seja, não pomos a seguir uma fala que justifica o que acabou de acontecer. Aos atores, um dos pedidos que fazia era não representar o erro, como se fosse uma coisa muito engraçada. Assumir e dizer com a mesma seriedade, fosse aquilo ou Shakespeare.
De que forma se divide o programa?
Divide-se tal como o título. Tem o princípio, que é essa parte da criação, em que estamos a escrever, em que o cenário é como se fosse a nossa cabeça – e quando nós estamos a tentar pensar numa ideia em concreto, há sempre várias coisas que aparecem na imaginação, a tentar desviar do foco principal. A parte do meio é a preparação daquilo que acabou de ser escrito e vai ser feito, e a parte do fim é ficção pura e dura, já sem a linguagem meio documental.
Porque decidiu partilhar com o público a parte da escrita de guiões?
Por várias razões. Uma delas é porque incomoda-me muito – sendo autor e também ator – o desnível que há de atenção em relação a uns e a outros. Quem dá a cara é sempre muito lisonjeado, quem cria, e tem esse papel de servir o texto a quem dá a cara, é sempre alguém que não me parece que tenha o devido valor. Em Portugal, acho que é bastante menosprezado. Lá fora – e não querendo cair no cliché, mas a verdade é essa –, quando se faz uma série ou um filme, pode ser “do realizador de…” ou “do argumentista de…”, se o argumentista já tem renome e obra criada. Em Portugal, as coisas passam a ser automaticamente de quem realiza, regra geral. E em televisão, é a mesma coisa, é só de quem dá a cara. Acho que há coisas tão interessantes a acontecer na criação como na execução, portanto queria equilibrar a balança. Existe um quase desrespeito por quem escreve, e nisso somos um bocadinho provincianos. Falo de quem promove, ao destacar aquilo que enche o olho.
Se não houvesse pandemia, não teria existido o Bicho, logo este programa poderia não existir, tal como está estruturado?
Não existira, certamente. Ali a meio da pandemia, quando se achava que o primeiro desconfinamento seria o fim da história, tinha um filme e uma peça de teatro pensados. Decidi saltar fora dos projetos, apenas porque aquilo que queria dizer ao mundo mudou com o antes e o depois da pandemia. Há coisas que me pareceram menos urgentes e, acima de tudo, esta noção de aproveitar o tempo para fazer uma coisa que queira deixar, que faça sentido para mim nesta fase da minha vida. O Princípio, Meio e Fim surge da certeza das pessoas de quem quero estar perto e de não fazer o esforço de estar rodeado de pessoas que não quero, ou que não faço grande questão. Isto de não poder estar com gente fora do núcleo familiar durante muito tempo torna muito óbvia a urgência de querer estar com uns e menos com outros. E a urgência de trabalhar com pessoas que têm a mesma linguagem, a mesma forma de pensar ou um pensar diferente, mas que abordam a matéria artística da mesma maneira.
Programas anteriores como Último a Sair, Odisseia ou Sara já foram classificados como “abordagens originais” e “híbridos entre realidade e ficção”. Em que é que este programa é diferente?
O Último a Sair talvez seja o mais diferente de todos. É assumidamente uma ficção, uma radiografia de um reality show e destes clichés, deste histerismo que se vive à volta de pessoas fechadas numa casa. Há sempre um pequeno pé na realidade. Na série Sara, a Beatriz [Batarda] de facto é atriz, é chamada 90% das vezes para papéis trágicos e pensei no que aconteceria se a Beatriz um dia deixasse de conseguir chorar, como lhe pedem. O Odisseia é talvez o mais complicado, porque cruza uma realidade ficcionada. Quando eu, o Tiago Guedes [realizador] e o Gonçalo Waddington [ator] tínhamos aqueles momentos de realidade, nada era de facto realidade. Era o cruzamento entre os nossos nomes e as nossas profissões com uma ficção sobre duas pessoas numa auto-caravana a tentarem encontrar-se, e que voltam ao mesmo sítio com uma visão diferente daquela com que partiram. No Princípio, Meio e Fim, o que liga e desconecta ao mesmo tempo é o cruzamento com a realidade – há um momento de realidade quando estamos a escrever, não é ficcionada. A parte da ficção não tem qualquer ligação com a realidade, há uma separação clara. A realidade está a criar o sumo para depois ser consumido na ficção.
Trabalhar com amigos faz com que, no texto, existam muitas memórias coletivas ou piadas privadas?
Sim, talvez algumas coisas, mas sempre com o cuidado de não ser algo encriptado só para nós nos rirmos. Por exemplo, quando escrevia para a Rita Cabaço, de quem gosto muito pessoalmente e que é uma atriz extraordinária, para mim era muito fácil ouvi-la a fazer aquela personagem. Sobre o Albano Jerónimo, sabia que há várias particularidades nele que eram potencialmente divertidas. O Nuno Lopes já é parte da família, o Markl também o conhece relativamente bem e o Filipe, conhece-o quanto mais não seja enquanto espectador. A Jessica Athayde foi talvez o maior desafio, conhecíamos relativamente bem, mas nunca tínhamos trabalhado, embora soubéssemos o que era o seu personagem. Criámos personagens para depois ser mais fácil encaixar o texto, as personagens já têm uma personalidade. Cada semana, o que muda é que a memória volta ao zero, mas a personalidade não.
Que vantagens vê no trabalho de equipa?
Para mim, a criação é como se nós atirássemos uma bola e a bola nos fosse devolvida, em bom ou em mau estado. É uma troca de ideias. Gosto de ter por perto pessoas em quem confio e que pensam de maneira diferente de mim, que sei que me podem acrescentar. Basicamente, é brincar. São quatro pessoas juntas, a chegarem a um consenso sobre qual é a brincadeira, se a apanhada ou a cabra-cega. Não é muito diferente daquilo que faço com a minha filha mais nova, quando vou brincar com ela: inventar uma brincadeira que seja de comum acordo e depois criar um enredo, em que ninguém nos está a policiar e a dizer ‘Não, é impossível, esse cavalo não pode voar’. Claro que pode. Criar é essa liberdade de poder estar com pessoas que estão dispostas a brincar connosco. Era muito evidente, para mim, que a diferença de personalidades entre o Salvador e o Filipe, por exemplo, era uma mais-valia para este projeto, em vez de estarmos só em terreno seguro.
Todos concordam que tiveram tempo suficiente para desenvolver a ideia, mas nem sempre existiu consenso artístico. Em que é que vocês os quatro divergem?
Eu, desde logo, e o Salvador divergimos muito do Filipe nesta coisa de aceitar o erro e de não tentar embelezá-lo, no sentido de ter de pedir desculpa ao espectador. É muito difícil para o Filipe, que é muito perfeccionista, abdicar dessa ideia de ‘daqui a dois dias não vamos rever o que foi escrito’. Para mim, também é, mas consigo abdicar disso em função de uma coisa que acho mais interessante, que é o erro. Depois, talvez o Filipe e o Markl, por oposição a mim e ao Salvador. Eles têm referências – muitas vezes envolve zombies, bonecos e coisas de animação – que para mim são latim. Temos personalidades muito diferentes, mas foi muito bonito de ver que há coisas que transcendem isso, que o bem comum se sobrepõe a essas diferenças. Até porque essas diferenças é que são o motor de arranque para as coisas acontecerem. Se pensássemos todos da mesma maneira, seria muito menos interessante. É preciso sempre alguém que nos ponha em xeque, nos confronte com ideias, que não ache que somos geniais ou que tudo o que dizemos é genial.
Como é que se explica às pessoas que é preciso esvaziar o pensamento para depois encher a inspiração e a criatividade?
Por acaso, andava a ler um livro que é muito pequenino e bastante útil para quem tem trabalhos criativos. É o Creativity: A Short and Cheerful Guide, do John Cleese, um guia sobre algumas coisas com as quais, finalmente, passei a não sentir-me tão mal. Já tinha visto um documentário do Hayao Miyazaki, realizador de animes japonês, que falava disso. Ficava sempre a sentir-me um bocado culpado, sentia-me a falhar, quando não participava na ação da família ou quando ia para o escritório para me fechar. Não que me façam sentir isso, porque nunca fazem, eu é que tenho esse sentimento de culpa de parecer que não estou a fazer nada. Descobrir uma ideia passa muitas vezes por fazer caminhadas de horas, estar sentado na cadeira a olhar para uma árvore ou para uma parede, ou estar a ouvir música. Há um lado do subconsciente que está sempre a reunir informação para qualquer coisa que há de acontecer. E, muitas vezes, não é imediata. Do nada e do vazio, chega uma altura em que surge uma ideia, uma imagem, uma frase que prende ali num isco no cérebro. Não há nada fisicamente ativo que mostre que estou a trabalhar numa ideia. Fazer uma caminhada de duas horas ou ver cinco filmes seguidos é muito difícil de explicar que é trabalho. A criatividade nunca tem um espaço visível para as pessoas perceberem que é uma zona de trabalho, como as obras têm um estaleiro ou um engenheiro eletrotécnico tem um computador para mostrar o que está a fazer.
Foi a primeira vez que trabalhou com liberdade total?
Sou muito privilegiado de poder fazer uma coisa tão simples como pensar uma coisa, juntar pessoas para pensarmos juntos e executar essa mesma ideia. Nos dias que correm, é pouco comum e um enorme privilégio que agradecerei sempre a quem confia em mim. Não vem só de agora, tenho a felicidade de fazer isso há bastante tempo. Há sempre uma parte que é muito interessante em dar essa liberdade, mas nem sempre coincide com a realidade. Há sempre um medo associado a essa liberdade, o medo de a coisa ser um objeto que não vai bem ao encontro do que alguém pensou. É um risco muito grande para quem dá essa liberdade – em última análise, são empresas –, é justo que a moeda de troca não faça implodir a empresa.
Neste programa haverá uma certa contenção na linguagem, menos radical do que nos diretos do Bicho. Que género de público querem atrair?
Provavelmente, será um público mais novo e com mais sede de coisas novas, que terá fugido para outros meios que não a televisão convencional, como os canais de streaming. São pessoas que não encontram na televisão nada com que se identifiquem.
Tal como no Bicho, em que o Bruno não gosta que lhe digam quantos seguidores estão no direto, na próxima segunda-feira não vai querer saber os dados das audiências?
Vou ser muito honesto: espero que o máximo de pessoas que estejam interessadas em ver o programa o vejam. A minha preocupação, sempre, é criar uma coisa que daqui a dez anos possa ver e que sobreviva ao tempo. Sei que há coisas que dão muita audiência no imediato, são explosões de audiência, mas que daqui a cinco meses, se quisermos recordar um episódio é muito difícil, porque são de consumo imediato. A minha preocupação primordial – e quando me contratam já sabem disso – é fazer um objeto artístico que perdure.