Andarmos a cirandar pelos 875 metros quadrados da Casa Az-Zagal, com 100 anos de histórias, implica virar os olhos ora para cima, fixando-nos nos frescos do teto, recuperados por uma artista local, ora para baixo, reparando no chão que se preservou e que, mudando consoante a divisão em que estamos, até faz pena pisar. E não há lugar para distrações, porque a imponente escadaria de madeira também nos rouba a atenção, assim como as portas de alguns quartos.
Se passarmos ao capítulo decoração, é nos pormenores que devemos deter-nos. Sónia Picolo, a responsável pelo bom gosto e pelo equilíbrio entre o antigo e o mais moderno, escolheu os tons crus, aqueles que melhor casam com o Alentejo, as madeiras de oliveira, com peças lindíssimas, as palhas e muitas almofadas (só no nosso quarto, contámos sete).
Tudo isto se pensou em interação com os arquitetos da Areacor, que, em dois anos de obra, optaram por preservar a traça da casa senhorial e alguns dos apontamentos que fizeram a sua história, como o grande fumeiro da entrada, a manjedoura das estrebarias da sala de jantar, os tijolos que sobressaem em algumas paredes ou as pias de cozinha em mármore de um dos quartos.
Quando se passa para o exterior, onde descobrimos a piscina e o alpendre, com a lareira de chão pronta a ser acesa nas noites mais frias (assim como as menos sedutoras pirâmides de aquecimento), passam-se os olhos – outra vez, os olhos – pela cozinha. É aqui que vemos Célia Delgado, que se encarrega das delícias que chegam à mesa das refeições, desde o pequeno-almoço aos snacks, passando pelo almoço e o jantar, por encomenda (não deixem de reservar, porque esta é uma peça fundamental da estada na Casa Az-Zagal, fica a dica).
Por sorte, estas refeições típicas, confecionadas com produtos das redondezas – como a hortelã ou o poejo do jardim, o borrego de Sousel ou a cabeça de xara da salsicharia do Cano –, estão abertas a quem por aqui passe e queira provar, sem que seja preciso estar hospedado.
Os quartos são 13 – lagarto, lagarto, lagarto –, quatro deles em suíte e uma, só para quem pode, chamada Royal Premium. Fomos lá espreitá-la e, escrevemos aqui sem pudor, vale bem os 350 euros que pode custar por noite. Há várias opções, algumas com kitchenette, mas, avisamos já, nenhuma tem televisão.
Para estar colado ao ecrã, só na sala de refeição, embora, na verdade, esta também tenda a estar desligada. Mas quem vem para aqui ver televisão? Se houver aborrecimento, há sempre jogos analógicos à disposição ou livros para folhear. Sem se descurar a internet, que aqui nunca falha.
Outra coisa: criança não entra. Só a partir dos 16 anos, quando já não é suposto perturbarem a paz que reina na propriedade, goste-se ou não deste conceito de excluir os mais novos dos prazeres da vida, como deambular por Casa Branca, aldeia típica em que foi edificada este belo casarão, e até já descrita pelo escritor José Luís Peixoto (era a terra do seu pai), e ver os mais velhos a passar de bicicleta ou de saco de pão na mão, como quem tem todo o tempo do mundo.
Está tudo à mão de semear
As mãos frias e calejadas de Dona Otávia, 76 anos, denunciam, ao primeiro cumprimento, que estamos perante uma mulher esforçada, mas com gosto no que faz. “Estou a encher carnes e elas têm de estar frescas para conseguir trabalhá-las bem.” Deve ser por isso que os seus enchidos de porco preto, fabricados nesta aldeia vizinha, chamada de Cano, são tão afamados e saborosos. O intestino onde os acondiciona é cosido a linha de alinhavar, por ser mais grossa, como as suas avós já faziam.
“Tenho tido dificuldades em encontrar tripa e a que descubro está muito cara. Ele tem sempre de ser lavada, antes de ficar com laranja e limão para fazer os enchidos no dia seguinte”, conta, depois de ir buscar mais frutos ao seu quintal, onde também tem as ervas necessárias para os temperos. Anda desalentada, apesar do enorme êxito da Salsicharia Canense. É que, além da ajuda do filho, João Roberto, 58 anos, não há quem queira seguir-lhe os passos neste paraíso de chouriço, farinheira, painho, toucinho, banha ou a cabeça de xara que haveríamos de provar ao almoço – só para citar alguns exemplos irresistíveis. “Devia ter dado ouvidos à minha sogra, com quem aprendi tudo, que era contra eu abrir este negócio. ‘Uma coisa é fazer para nós…’, avisava-me.”
A poucos quilómetros desta salsicharia, na Herdade do Mouchão, continuam a apostar forte nos 45 hectares destinados à vinha (a propriedade tem muito mais área, com olival, colmeias, gado e montado), especialmente à casta Alicante Bouschet, aqui plantada desde o século XIX, quando a família inglesa Reynolds tomou conta deste pedaço de Alentejo. “É aqui o berço da casta”, garante Iain Richardson, um dos atuais donos.
Hoje, a quinta está aberta a visitas e a provas de tintos, brancos e fortificados (e mel, azeite e vinagre). E assim dá também para se conhecer a história desta propriedade de 900 hectares, bem como a forma cuidada como se dedicam à agricultura – por exemplo, as vinhas não são regadas, mas plantadas nas várzeas e aluviões para se aproveitar a água das chuvas.
Depois, estes vinhos de guarda, pisados a pé e prensados manualmente, como manda a tradição, demoram anos a estar prontos para venda. Até lá, ficam na adega, um edifício que se mantém intacto desde o início de 1900. É também aqui que provamos estas especialidades, junto a um prato de chouriço. Reconhecemos-lhe o travo – apostamos que é da vizinha Dona Otávia.
Casa Az-Zagal > R. de Évora, 14, Casa Branca, Sousel > T. 268 539 085 > a partir de €90
Mesmo aqui ao lado
Nesta casa gastam-se produtos de qualidade. É possível conhecê-los melhor, porque ficam todos perto, e até, quem sabe, levá-los na mala para mais tarde degustar
Salsicharia Canense
Estes enchidos de porco preto artesanais, saídos das mãos da Dona Otávia, têm fama mundial. R. São José, Cano, Sousel > T. 268 549 203 > seg-sex 8h30-18h30, sáb 9h-17h, dom 9h-12h30
Herdade do Mouchão
Pode visitar-se a vinha, fazer-se provas e comprar na loja os produtos da herdade, como mel, azeite, vinagre e vinho. Casa Branca, Sousel > T. 268 530 210 > seg-sáb 8h-12h30, 13h30-17h > visitas mediante reserva > desde €35
Queijaria Lameirinha
Nesta empresa familiar, produz-se queijo de ovelha, fresco ou curado, mas também há à venda enchidos e azeitonas da mesma proveniência. R. Dr. António Garção, 7, Cano, Sousel > T. 96 264 9524
Cooperativa Agrícola dos Olivicultores de Casa Branca – Flor da Galega
A planície extensa que se percorre até à aldeia está pintalgada por olivais. Não se dispense, por isso, uma visita a este lagar tradicional de azeite e, quem sabe, até se acabe a comprar os seus produtos na loja. R. da República, 10A, Casa Branca, Sousel > T. 268 539 108
Mercearia do Adriano
Local de encontro na aldeia, aqui há de tudo, mas destaca-se a grande variedade de produtos regionais. R. Guilhermina dos Anjos, 98, Casa Branca, Sousel > seg-sáb 9h-13h, 15h-19h
Pasto alentejano
Sousel é a capital do borrego e estes produtores, no ramo há quatro gerações, são do melhor que se pode encontrar na região. Quinta de São Vicente, Sousel > T. 268 550 080 > seg-sex 10h-18h