Na cozinha aberta no centro da sala, cada chefe vai ocupando o seu lugar de acordo com a ordem da degustação. Estamos no Marlene, o restaurante de alta cozinha de Marlene Vieira, junto ao Terminal de Cruzeiros de Lisboa, para o segundo jantar de uma série de refeições sazonais que pretendem destacar os melhores produtos da época.
“São três amigos e colegas de profissão que partilham a paixão pela gastronomia e o respeito pelos produtos sazonais. É essencial trabalhar os produtos nas suas épocas, altura em que se encontram com qualidade e sabor máximos, tornando-se realmente diferenciador e mais sustentável”, defende Marlene Vieira, que organiza a iniciativa.
Os amigos, de que fala Marlene, são António Loureiro (A Cozinha, Guimarães), Ricardo Costa (The Yeatman, Vila Nova de Gaia) e Julien Montbabut (Le Monument, Porto), todos com Estrela Michelin.
A dar início ao menu, composto por 12 momentos, chega uma combinação inusitada de ouriços-do-mar (da região do Algarve), com banana da Madeira e wasabi. A proposta serve-se com memórias da adolescência. “Costumava apanhar ouriços na Praia de Angeiras, perto de Matosinhos. Depois de os abrimos, comíamos logo ali, à colherada, e era uma enorme satisfação”, lembra a chefe anfitriã. “Nessa altura, ninguém valorizava este produto, hoje tem um preço elevado, mas desde sempre que fazem parte de mim e da minha vida”.
Nestes meses mais frios, Marlene Vieira “viaja” pelos sabores do Norte, pelos pratos de tacho, mais robustos, como a lampreia, os cogumelos, o cozido e a cabidela. “Quero dar aquele conforto como se estivéssemos numa casa rural e aconchegante, mas elevando estes pratos a um nível superior, sem perder a raiz portuguesa”, afirma.
Um bom exemplo desta combinação entre tradição e criatividade mostra-se na cabidela, um dos seus pratos de eleição, servida dentro de um bao. E também no chawanmushi (significa “cozido no vapor numa tigela”, adquirindo a consistência de um pudim) de cogumelos, ideal para comer à colherada. A chefe de cozinha foi ainda responsável pela confeção do salmonete, com funcho e chouriço.
Do fumeiro ao leitão, haja apetite
A opinião é partilhada pelo chefe António Loureiro que, nesta altura do ano, também gosta de trabalhar sabores mais reconfortantes e intensos, dando como exemplo a lampreia, o fumeiro e os lentos assados no forno. Nesta sua vinda a Lisboa, o chefe escolheu dois pratos que estão na ementa atual do restaurante A Cozinha (uma Estrela Michelin), no centro de Guimarães. Neles, o chefe mostra a sua forte relação com os produtos da região que trabalha com técnicas modernas.
O primeiro a chegar à mesa combina a linguiça e barriga de porco fumado de Montalegre, o chouriço azedo e as alheiras de Vinhais, a chouriça de cebola de Ponte de Lima e a couve penca. Em separado, vem um caldo quentinho a lembrar um cozido, que funciona como “um abraço a quem chega”, diz.
Em relação à lampreia – apanhada, normalmente, no rio Minho ou rio Lima e apenas disponível nesta época -, António Loureiro admite não ser uma escolha consensual, “mas é algo que se aprende a gostar”, deixando um aviso aos comensais presentes. “Os sabores da receita da lampreia à bordalesa estão todos lá, apesar de usar uma técnica mais contemporânea. Equilibrei o molho de forma a ficar mais delicado e menos intenso”.
Antes de servir as suas propostas, Ricardo Costa faz questão de agradecer o convite e elogiar Marlene Vieira, com quem trabalhou há cerca de 20 anos, na abertura do Sheraton Porto Hotel. “Uma mulher para chegar a este patamar na cozinha tem que fazer um esforço muito grande e difícil”, diz o chefe do The Yeatman, com duas Estrelas Michelin, inserido no hotel vínico em Vila Nova de Gaia.
Ricardo Costa apresenta um delicada sugestão de atum com iogurte e foie gras em tons de rosa. “Este prato tem cerca de 15 anos, mas fomos atualizando e melhorando, e agora mais se parece com uma sobremesa”. Marlene Vieira acrescenta: “Tem uma carrada de técnicas e muitas camadas de sabor”. E é isso que fica no paladar, onde perdura o sabor do foie gras sem se sobrepor ao atum.
Já com o leitão, a história é bem diferente e também mais emotiva. É notória a ligação do chefe a esta carne que se habituou a ver à mesa desde muito novo. “Nasci em Aveiro, na zona da Bairrada, por isso desde pequeno que como leitão”. Para chegar ao resultado apresentado, foi preciso testar, repetir e ir afinando a receita inúmeras vezes. Mas não só. Encontrar o leitão perfeito – que conseguiu de um cruzamento de um porco bísaro com uma raça da Bairrada -, era fundamental para o sucesso deste prato, presente há cerca de quatro anos na ementa do The Yeatman, e já considerado um clássico.
“Primeiro faço duas cozeduras e só depois vai ao forno. No fundo faço, uma técnica invertida dos restaurantes especialistas da zona Bairrada”, explica. Confiante da sua criação, Ricardo Costa espera que possa ser tão boa, ou melhor, do que aquela que se come nesta região, considerada património gastronómico nacional.
Todos os pratos servidos neste jantar, encontram-se nas ementas dos restaurantes referidos. O próximo jantar, dedicado à primavera, está marcado para o dia 12 de abril, com dois chefes de cozinha, ainda por revelar.
Pecado da gula
“O inverno é também uma época marcada pela caça”, atira Julien Montbabut, que trocou o Le Restaurant, em Paris, pelo Le Monument Palace, no Porto. Como bom apreciador deste tipo de carne, o chefe francês não dispensa nesta altura o javali na ementa do seu restaurante, também distinguido com uma Estrela Michelin. “Uso os lombos, que são mais tenros e fáceis de cozinhar. A restante carne do javali precisa de ser trabalhada durante mais tempo”, explica.
Da terra passamos ao mar, para degustar a truta cozinhada com topinambur e agrião. “Cada prato conta uma história de um produto e de um produtor, valorizo muito o terroir do Norte”, acrescenta.
O jantar, que mais pareceu um banquete, foi acompanhado com vinhos de quatro produtores nacionais – Real Companhia Velha, Kranemann Wine Estates, Quinta do Vallado e Quinta da Devesa -, selecionados pela sommelier Gabriela Marques, terminando com uma babba de tangerina e limão. E muitos (e merecidos) elogios aos chefes.
Marlene > Av. Infante D. Henrique, Doca do Jardim do Tabaco, Terminal de Cruzeiros de Lisboa > T. 91 262 6761 > ter-sáb 19h-24h > Jantar Primavera 12 abr > €180 (inclui vinhos)