Há sempre um momento que marca o início de qualquer coisa. Para o austríaco Dieter Koschina, foi um dia em 1991 em que Claudia Jung telefonou para o restaurante onde ele trabalhava, à procura do seu chefe. Calhou Dieter atender, explicar que o homem não estava, e ouvir que a alemã procurava com urgência um chefe de cozinha para um pequeno hotel que tinha com o marido, no Algarve.
O cozinheiro ofereceu-se imediatamente, por que não?, e acabou a fazer um teste na casa dos Jung, em Munique. “Foi um almoço fabuloso”, conta Joy, filha de Claudia e de Klaus Jung. “Ele e a minha mãe combinaram logo que ele viria para Portugal.”
O hotel era o Vila Joya, na altura com apenas treze quartos (hoje tem 22), quase uma casa de família grande, localizada perto de Albufeira, de frente para o mar. E o convite vinha com a promessa de trezentos dias de sol por ano e bom peixe.
Vinte e cinco anos depois, Dieter ri-se quando Joy Jung confessa que gostaria de vê-lo ali por mais vinte e cinco, mas não diz que não. Ela brinca: “Já estou a imaginar-te, de cadeiras de rodas, a dares ordens, na cozinha.”
Ele ri-se outra vez e pede desculpa por ainda usar tão mal a nossa língua. “Falo um Português de rua. Nos primeiros tempos, não tinha tempo para aprender porque trabalhava das oito da manhã à meia-noite e, depois, bem, depois era bum, bum, bum, em Albufeira.”
Copos e música à parte, mais do que não falar bem Português, a verdade é que Koschina não é um animal social. Não gosta de andar de mesa em mesa; prefere ficar na cozinha, a trabalhar. Não é dos que falam, é dos que fazem. E que fazem bem.
Sabor, sabor, sabor
Claudia Jung morreu de cancro em 1997. Uns dias antes de morrer, disse à filha: “Vais tomar conta do Vila Joya.” Foi um choque para Joy, mas não propriamente uma surpresa. Sabia ser esse o sonho da mãe, que dera inclusive o seu nome ao hotel para que ela tivesse algo bom no futuro. E sabia que havia de perpetuar a sua aposta na comida de qualidade.
A aposta vem da inauguração do Vila Joya, há 33 anos. Desde o princípio que, para Claudia, era importante os clientes não precisarem de sair do hotel. “A minha mãe queixava-se de que, quando tinhas bons restaurantes não havia quartos, e quando havia quartos não tinhas bons restaurantes. Isto quando férias, para ela, era ir para um sítio e nunca precisar de usar o carro.”
Quando Dieter começou a trabalhar no Algarve, Claudia fazia quase contrabando de produtos alimentares entre a Alemanha e Portugal. Tudo o que ele queria usar na cozinha e não encontrava por cá, a alemã trazia na mala. “Podia ser um açafrão especial, qualquer coisa”, recorda a filha. “Como a minha mãe também cozinhava, percebia-o muito bem.”
Hoje, o chefe está mais preocupado com o sabor do que com a hipótese de não haver um determinado ingrediente em Portugal. “Sabor, sabor, sabor – é tudo o que conta”, sabe Joy. “A beleza agora está na moda, como se comêssemos com os olhos. Mas, para o Koschina, tu comes com a barriga.”
CrEATivity
No Vila Joya, é obrigatório a ementa mudar todos os dias. Por isso, cada noite, depois do jantar, o chefe começa por ver o que tem nos frigoríficos. “À meia-noite”, conta Joy, “ele liga para o senhor do peixe e só depois faz o menu. Ninguém sabe o que vai ser; só no próprio dia, às 11 horas.”
Só não aconteceu isso no último fim de semana, de 5 e 6 de novembro, porque Koschina iria partilhar a cozinha com quinze chefes seus amigos, quase todos com uma ou mais estrelas Michelin (ele próprio tem duas). Mas, ainda assim, a ementa sofreu alguns ajustes de última hora, criatividade oblige. “Sabe que Caetano Veloso nunca gostou de gravar”, compara o brasileiro Celso Assunção, diretor do Vila Joya, “porque depois de gravar já não pode alterar”.
Joy já lembrara que a palavra “eat” (comer, em Inglês) cabe na palavra “creativity”, e essa é a primeira frase que lemos numa das paredes junto à “mesa do chefe”, muito cobiçada por ser ao lado da cozinha. Na ementa do segundo jantar de celebração dos 25 anos de Dieter Koschina, antecipamos mais uma noite de bom comer. Nós e os 90 comensais que pagaram 250 euros cada (na véspera tinha sido menos 25 euros).
Tal como na noite de sábado, além de Koschina houve mais uma dezena de chefes a pensar em pratos para nos deliciar nas quatro horas seguintes, mas muitos mais a pôr a mão na massa. No meio da azáfama, lá estava por exemplo o português Bertílio Gomes, responsável pelo Chapitô à Mesa, em Lisboa, discreto a ajudar no que fosse necessário.
“Please, enjoy”
Ao final da manhã de domingo, tínhamos visto como o tributo a Koschina ia ser sobretudo uma festa, um encontro de amigos. O almoço estava marcado para a Guia, onde os franguinhos têm fama, e era ver a cara divertida dos chefes a apanharem boleia de membros do Clube Motard Harley-Davidson. Pareciam miúdos.
Já depois da uma da manhã, pareceriam outra vez miúdos a descontraírem de copo na mão, ao som de música de dança, no terraço do hotel. Era o descanso merecido depois de horas dedicados à alta cozinha, uma maratona que para nós começara pouco depois das oito, com um toque de campainha – “Vamos!”, incentivara Joy – e Koschina a servir-nos champanhe.
Ouvem-se os primeiros “Jawohl, chef!” da noite, tantos são os falantes de Alemão, antes de provarmos o primeiro prato, um gelado de beurre blanc (molho de manteiga e vinho branco), acompanhado de espuma de manteiga clarificada, caviar imperial e creme de avelã. Koschina faz as honras na mesa do chefe. “Chamo a isto ‘caviar suficiente’”, diz sobre a criação do alemão de origem espanhola Juan Amador, depois de distribuir umas colherzinhas e de abrir mais umas latas de ovas de esturjão.
Estava marcado o tom do festim. Daqui para a frente, era ver quem se excedia nos mimos, com as trufas a aparecerem mais do que uma vez, e Koschina a ralar mais um pouco para cada prato, repetindo “amor, amor, amor, amor”.
Do lavagante, de Fernando Agrasar, ao salmão com calda de aipo fumado e creme de foie gras, de Peter Hagen, ou do ovo biológico com espuma de trufa, de Heinz Winkler, ao carabineiro com miso, de Klaus Erfort, todos o anfitrião despachava a apresentação com uma ou duas palavras: “muito moderno”, “leve”, “prato clássico”, “tem sabor”. O mais importante era provar e aproveitar. “Please, enjoy!” E ordens destas cumprem-se de olhos fechados.
Vila Joya > Estrada da Galé, Albufeira > T. 289 591 795