Qual o receituário de cozinha tradicional portuguesa que devemos deixar como legado para as gerações vindouras? Seis chefes de cozinha respondem à pergunta, falando sobre os pratos e os ingredientes que consideram verdadeiramente nossos. Porque o futuro também é o nosso passado
A cozinha tradicional portuguesa está (e provavelmente continuará a estar) cada vez mais próxima da terra. Esqueça-se a carne de vaca criada em laboratório. Ou a hipótese de a comida vir a ser fabricada geneticamente. Bem pelo contrário. Os seis chefes de cozinha entrevistados pela VISÃO Sete – Rui Paula, José Avillez, Pedro Lemos, Luís Baena, Miguel Castro e Silva e Leandro Carreira – são unânimes acerca da inevitabilidade de a cozinha do futuro voltar a usar produtos da terra. Ingredientes só nossos.
“O futuro é também recuperar o passado”, considera Luís Baena, que começou a revisitar os pratos clássicos do receituário português logo em 2007, quando saiu da Quinta de Catralvos, em Azeitão, onde praticava uma cozinha, como diz, “mais vanguardista”. Dois anos depois, no restaurante Terraço do Hotel Tivoli, em Lisboa, já estava a “desconstruir o cozido à portuguesa”. “Os sabores estavam lá, mas as carnes iam dentro de raviólis”, recorda. Para o chefe do antigo Manifesto, a receita é simples: “Se o empratamento está bem feito, os olhos agradecem, mas o sabor é essencial.” Rui Paula, dos restaurantes DOP, DOC e Casa de Chá da Boa Nova, tem a mesma opinião. “É preciso revisitar os sabores que temos na memória”, incita o chefe portuense cuja cozinha recebeu influências das receitas antigas da avó materna. Mas é necessário, atenta, “tratar bem os alimentos”. “Não temos de levar para a mesa as batatas a murro cheias de alho cru ou os pratos cheios de gordura. A cozinha portuguesa tem tudo, mas falta-lhe um bom trabalho de base.” Também para Leandro Carreira, “Leo” como é conhecido, “a mentalidade” e a “forma como se cozinha” terão de mudar. “É preciso olhar para aquilo com que crescemos”, diz o chefe português que em Londres trabalhou no restaurante Viajante, ao lado de Nuno Mendes, e que, no último fim de semana, esteve em Lisboa, na Cozinha Popular da Mouraria, para preparar dois jantares onde serviu percebes, ouriços-do-mar, ervas silvestres, nabiças e folhas de brócolos. Já José Avillez acredita na evolução da cozinha portuguesa, mas sem “mudanças tão transformadoras como já teve no passado como, por exemplo, quando se introduziu a batata e os pimentos”. O cozinheiro, galardoado em 2014 com duas estrelas Michelin, admite que “as receitas mais simples e fáceis de preparar” vão permanecer. E justifica: “Pelo ritmo a que se vive, as pessoas vão ter cada vez menos tempo para cozinhar receitas demoradas.”
Do pão ao bacalhau à Brás
A “recuperação de receitas antigas” no mercado, em setores inesperados como queijarias e fábricas de enchidos é vista, por Miguel Castro e Silva, como um sinal positivo para a continuidade do receituário português. O chefe de cozinha dos restaurantes Largo, DeCastro, DeCastro Elias e DeCastro Flores é um apaixonado por pão e milho, que usa na confeção dos seus pratos mais clássicos. “O pão é utilizado, de norte a sul, em açordas, ensopados ou migas.” Também os milhos, preparados com sêmola ou farinha de milho, serão, no seu entender, fundamentais na nossa cozinha. E estão presentes em várias iguarias. “Não só na broa, mas no Xerém do Algarve, nos milhos fritos da Madeira, nas papas de milho doce das Beiras ou no milho com tomate em Trás-os-Montes.” Por seu lado, Pedro Lemos, do restaurante portuense homónimo, cuja cozinha tem estado muito ligada ao peixe fresco, acredita que, “por uma questão de escassez”, a cavala, o carapau ou a petinga serão cada vez mais utilizados. “O que hoje não é nobre, vai passar a ser.” Tal como “as conservas” que, admite, “vão ocupar um outro lugar no futuro”.
Definitivamente, as atuais tendências da cozinha passam, sustenta Luis Baena, por “voltar ao sabor tradicional”. “Quem não gosta de um bom arroz de tomate e de uns carapaus de escabeche?”, pergunta. A fórmula é “apresentar bem os pratos”, avança Rui Paula. “Porque é que o arroz de polvo com filetes, o arroz de pato ou a feijoada à transmontana não hão de continuar no futuro?” Exemplo disto é um dos pratos que serve na Casa de Chá da Boa Nova: Lula Gigante dos Açores. Trata-se, nem mais nem menos, de uma revisitação do tradicional arroz de lulas, feito com “arroz tufado, cozido grão a grão, que é frito depois de desidratar”. As lulas, confecionadas com molho bordalês, são recheadas “num rolinho de canneloni”. “Quando se come, tem o sabor da cozinha portuguesa”, conta.
O bacalhau à Brás também é um bom exemplo. Miguel Castro e Silva di-lo essencial. “É apelativo, consensual, democrático, acessível a quem não é apreciador de bacalhau em posta.” Luís Baena partilha da mesma opinião. E, ao bacalhau à Brás, acrescenta os pastéis de bacalhau e o arroz de pato como pratos tradicionais que irão perdurar. Por sua vez, Leo Carreira, que se prepara para abrir um projeto próprio em Londres, não vê razão para o desaparecimento do bacalhau assado com nabiças e grelos cozidos ou de um dos seus pratos favoritos: ossos de porco cozidos com couve e broa de milho. São, diz, um “clímax gastronómico”.
Menos açúcar, cozeduras mais lentas
No que respeita aos ingredientes usados na cozinha, José Avillez não quer fazer futurologia, mas aposta numa maior utilização das ervas aromáticas por “acrescentarem sabor” e, simultaneamente, servirem de substituto ao sal. Ao mesmo tempo, o chefe de cozinha do restaurantes Belcanto acredita numa “redução da quantidade de açúcar na preparação dos doces”, o que poderá, mesmo, comprometer a continuidade de algumas receitas conventuais.
“As cozeduras lentas ou a fermentação, uma das técnicas mais antigas para preservar alimentos”, estão em voga. E assim irão continuar, antecipa Leo Carreira. Miguel Castro e Silva, um dos precursores da técnica em Portugal, lembra que a baixa temperatura permite “valorizar a matéria-prima”. O ponto de cozedura será indiscutivelmente outra “arte” a ter em conta. “O peixe e o marisco não ficam tão bem se forem demasiado cozinhados. No ponto ganham muito em termos de sabor e textura”, aconselha o chefe Avillez. Num País “rodeado de costa, com bons peixes, carnes selecionadas e bons vegetais”, Rui Paula acredita que o futuro da cozinha passa por “ponto de cozedura, técnica e apresentação”. Daí que Miguel Castro e Silva veja a cataplana como um dos utensílios a ter em conta. “Permite fazer uma série de receitas diferentes utilizando uma cozedura mais suave, um misto de escalfado e a vapor.”
Acabados de colher
Aproximar a cozinha da agricultura é outro dos pontos comuns entre os seis chefes entrevistados pela VISÃO Sete. “Os produtos acabados de colher ou de apanhar vão continuar a saber mais bem do que aqueles que estão dentro do frigorifico”, salienta José Avillez. E dá um exemplo: “Um caldo verde no Minho é melhor do que um feito numa grande cidade. Lá as couves e as batatas foram acabadas de tirar da terra e a água da fonte é mais pura.” Também Miguel Castro e Silva acredita num regresso áquilo a que chama de “cuisine du terroir, uma cozinha mais próxima do povo”, abandonando “uma certa extravagância”. Luís Baena adverte que há ingredientes que o receituário português não tem aproveitado. “O aipo ainda é pouco usado pelas pessoas”, argumenta. No Alentejo foram adotados “os espargos silvestres” e, no entanto, “não há receitas com cogumelos”. “As pessoas terão de usar mais o que a natureza naturalmente lhes dá”, resgatando “antigos produtos portugueses como as folhas de borragem, o figo-da-índia, as urtigas, as beldroegas, a alfarroba, as cascas de favas e de ervilhas, a feijoca, o tremoço, o grão, as lentilhas e todos os feijões”.
Leo Carreira e Pedro Lemos sublinham a importância cada vez maior da relação entre o cozinheiro e o agricultor. “O futuro passará por cultivarmos a nossa comida e isso é possível nas grandes cidades”, abona Leo que, conta, em Londres, terá alguém a produzir milho bebé, espiga, muitos tubérculos e brassicas para abastecer a despensa do seu restaurante. “A herança gastronómica começa em casa. É preciso levar as crianças ao campo e explicar-lhes porque é que a galinha põe o ovo”, sustenta. Por seu lado, Pedro Lemos – o único Estrela Michelin do Porto possui uma horta biológico do terraço do seu restaurante – acha que a preocupação deve começar nas escolas. E defende: “Devemos acabar com o desperdício e com a ideia moderna de que temos de ter tudo, durante todo o ano, nas prateleiras do supermercado. Não chega recuperar o receituário antigo, é preciso recuperar o conhecimento da natureza pois o que realmente importa é a matéria-prima.” E já agora, as crianças.