Via aberta para colocar solos contaminados nas pedreiras – é assim que está a ser considerada, no setor do Ambiente, entre empresas e ambientalistas, a “nota técnica relativa a operações de enchimento de vazios de escavação”, que saiu este mês.
O documento, da autoria da Agência Portuguesa do Ambiente (APA, a entidade responsável pela implementação das políticas de ambiente no País), tem por objetivo “clarificar quais as condições de utilização destes resíduos para enchimento de vazios de escavação, bem como, os resíduos que poderão ter enquadramento no âmbito da operação de enchimento”. Ou seja, pretende tirar dúvidas que ainda persistam sobre que resíduos podem ser depositados em pedreiras, de acordo com a lei do Regime Geral de Gestão de Resíduos (que foi alterada em agosto), através de uma lista de substâncias autorizadas.
Mas a APA está a ser acusada de facilitar o encaminhamento de substâncias contaminadas ou perigosas para locais que não estão preparados para as receber, o que pode levar à contaminação das águas subterrâneas. “Fiquei perplexa”, diz Carmen Lima, especialista da Quercus em resíduos. “Os aterros levam uma camada de argila e uma tela para impedir a infiltração. Nas pedreiras, isto não é feito. Há um risco acrescido de contaminação dos lençóis freáticos, e ao lado destas pedreiras há populações rurais, com furos para captação de água”, alerta a ambientalista, lembrando que, entre os resíduos de construção e demolição, é comum irem coisas como embalagens de colas, tintas e absorventes ou diluentes. “Está a transformar-se as pedreiras em lixeiras.”
A nota da APA esclarece que, da longa lista de tipos de resíduos que usados para encher buracos em pedreiras, não podem ser ultrapassados os valores de referência, assumindo, portanto, que apenas chega às pedreiras material com um grau de contaminação residual, considerado pouco preocupante. O problema, acrescenta Carmen Lima, é que este documento facilita ainda mais as ilegalidades, que já são muitas atualmente. “Toda a gente da área sabe que vão parar às pedreiras materiais contaminados, de forma ilegal. Chamamos a isto ‘camuflados’: no fundo do contentor saído das obras, vai o material proibido; depois, tapam com uma camada de areia. Esta nota técnica vai permitir que esta ilegalidade seja mais fácil de ser cometida. Se já o faziam antes, agora será muito pior.” Isto porque, continua, não basta escavar o contentor para encontrar os resíduos contaminados – será preciso fazer análises para confirmar que os contaminantes ultrapassam os valores de referência. E esse “é um nível de controlo que nós sabemos que não existe”, garante a especialista. “Não há triagem à entrada das pedreiras. E como estas pedreiras não têm qualquer proteção, a contaminação das águas é direta.”
Pedreiras: a solução mais barata para os resíduos
Um dos problemas de as pedreiras receberem resíduos indiscriminados é o amianto. Hoje, a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) tem de ser notificada sempre que um aterro recebe este material (o amianto é uma substância cancerígena quando inalada e, nos aterros, fica sempre num local específico e protegido). As pedreiras não têm de notificar a ACT, até porque se presume que as quantidades de amianto no meio dos resíduos de demolição são muito pequenas (ainda que não haja praticamente qualquer controlo que o garanta).
O documento da APA inclui também uma referência anacrónica, levando Carmen Lima a acusar a agência de “ignorância”. “Está na lista ‘resíduos de fabrico de fibrocimento’, quando o fabrico de fibrocimento em Portugal é ilegal há mais de 20 anos.”
A ambientalista diz não compreender as razões por detrás desta nota técnica, mas teme ser “uma tentativa de se manipular estatísticas e tentar cumprir as metas da União Europeia a qualquer custo”, com batota. “A nossa meta de reciclagem de resíduos de construção e demolição era de 70% para 2020. Em 2015, estávamos nos 13%; agora, estamos nos 90%, ao nível da Dinamarca, porque incluímos na reciclagem os resíduos depositados em areeiros, para recuperação paisagística. A diferença é que na Dinamarca são mesmo reciclados.”
A ambientalista diz-se ainda “assustada” em relação ao vidro, que consta da lista. “Estamos com imensas dificuldades para cumprir as metas de reciclagem do vidro, e agora esta nota técnica autoriza que o vidro seja depositado. Se a intenção da APA for cumprir, desta forma, metas de reciclagem do vidro, mais grave é. Não podemos usar estas soluções para isso. Não se enquadra no conceito de economia circular. É uma das maiores barbaridades da APA nos últimos tempos. Só consigo explicar isto com o lóbi dos areeiros.”
Pedreiras contentes, empresas de ambiente descontentes
No meio das empresas de tratamento de resíduos, também se questiona o porquê desta nota técnica. Fontes do setor contactadas pela VISÃO dizem que a clarificação da APA beneficia grandes obras que estão a arrancar, como a expansão do Metro de Lisboa, a requalificação da refinaria da Galp em Matosinhos e o futuro Hospital Lisboa Oriental, onde deverão estar em causa milhares de toneladas de solos contaminados. O setor acredita que, com este documento, na prática, o que dita que vai para valorização material ou energética, reciclagem, aterro ou pedreiras será, apenas, o preço. A solução mais barata é, de longe, o enchimento de pedreiras.
As pedreiras, por seu lado, ficaram satisfeitas com esta nota da APA. Numa circular enviada aos associados, a que a VISÃO teve acesso, a diretora-geral da ANIET (Associação Nacional da Indústria Extractiva e Transformadora), Francelina Pinto, escreveu que, a partir daqui, “já não existirá qualquer obstáculo, por parte das pedreiras, em receber resíduos com estes códigos LER [Lista Europeia de Resíduos] para enchimento dos vazios de escavação”. Acrescenta-se ainda que “as pedreiras podem receber os resíduos ou subprodutos resultantes dos processos da indústria da fundição nas operações de enchimento de vazios de escavação e respetiva recuperação paisagística, tornando o nosso sector mais sustentável e competitivo”.
Por outro lado, para a associação que representa as empresas do ambiente, esta nota técnica é “inadequada e extemporânea”. “Toda esta matéria devia ser regulamentada não de forma atomista ou avulsa, mas de forma enquadradora em sede do regime jurídico relativo à Prevenção da Contaminação e Remediação dos Solos – cujo processo de consulta pública do projeto de DL terminou em 2016, portanto há 5 anos, e que foi anunciada a sua publicação inúmeras vezes pelo Governo”, diz Eduardo Marques, presidente da AEPSA (Associação das Empresas Portuguesas para o Sector do Ambiente).
“A contaminação dos solos é um grave problema no nosso País”, continua Eduardo Marques. “Portugal é dos poucos países da União Europeia que ainda não adotou orientação legislativa sobre solos contaminados. Mais do que tentar responder desta forma inesperada aos problemas de enchimento de vazios de escavação, o que é absolutamente necessário é resolver o labirinto da competência das entidades envolvidas – APA, CCDR, Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas e Direção-Geral de Energia e Geologia – para incluir, expressamente, a questão da contaminação dos solos no contexto da economia circular e no quadro de cooperação entre entidades públicas e privadas.”
O representante do setor acrescenta ainda que apresentou a sua posição ao Governo e ao Parlamento, este ano: “A possibilidade de o depósito descontrolado de resíduos não perigosos, solos contaminados ou resíduos não inertes em antigas pedreiras, operações agora classificadas como “enchimento”, sem qualquer controlo ou licenciamento e sem estar obrigado ao pagamento de taxa de gestão de resíduos, consubstancia um retrocesso inadmissível na gestão de resíduos, constituindo um inaceitável atentado ambiental em termos de contaminação de solos e lençóis freáticos e contraria em absoluto os princípios da economia circula.”
A VISÃO enviou várias perguntas à APA: se esta nota técnica pode facilitar as ilegalidades, quais as medidas de controlo planeadas para garantir que não entram nas pedreiras contaminantes acima dos limites e se o vidro depositado será considerado reciclagem e contabilizado para as metas a que Portugal se comprometeu. O email foi enviado às 15h36, com pedido de resposta até às 18h. Às 17h44, a APA respondeu que, face aos prazos comunicados para a resposta, não iria atender ao pedido. A VISÃO transmitiu à agência que, se as respostas chegarem, ainda que mais tarde, o artigo será atualizado.
Os “esclarecimentos” chegaram às 23h23, sem assinatura. A VISÃO perguntou a quem deveria atribuir as respostas. “Agência Portuguesa do Ambiente”, disse o porta-voz da entidade presidida por Nuno Lacasta, que tem estado debaixo de fogo devido às metas de reciclagem repetidamente falhadas.
Na comunicação, a APA garante que a nota técnica visa “apenas dar resposta a estas dúvidas, clarificando as condições de utilização de resíduos em operações de enchimento de vazios de escavação, bem como das tipologias de resíduos aceites para esta operação de tratamento”. À pergunta sobre que medidas de controlo e fiscalização estão planeadas para garantir que esta nota técnica não irá facilitar as ilegalidades no setor, a APA diz que haverá”um reforço da fiscalização”, mas não especifica as medidas e acrescenta que a agência não detém “competências de fiscalização neste âmbito específico”.
Aqui ficam as perguntas e respostas na íntegra.
A “nota técnica relativa a operações de enchimento de vazios de escavação” está a ser interpretada por ambientalistas e empresas do setor do Ambiente como uma forma de facilitar as ilegalidades no setor dos resíduos, levando a um aumento da deposição de resíduos de construção e demolição em pedreiras/areeiros. Qual é o comentário da APA a esta interpretação?
A APA não se revê nessa afirmação.
A alteração da definição de “enchimento” inicialmente transposta para a legislação nacional conforme redação da Diretiva Quadro Resíduos, foi alterada pela Lei n.º 52/2021, de 10 de agosto, como resultado de apreciação Parlamentar, tendo gerado um conjunto de dúvidas dos produtores e operadores de tratamento de resíduos. A nota técnica referida visou apenas dar resposta a estas dúvidas, clarificando as condições de utilização de resíduos em operações de enchimento de vazios de escavação, bem como das tipologias de resíduos aceites para esta operação de tratamento, quando em cumprimento das restantes condições exigidas pela legislação em vigor.
Importa salientar que com a publicação da nova legislação foram significativamente reduzidas as tipologias de resíduos passíveis de ser utilizadas em operações de enchimento de vazios de escavação, pelo que não se compreende a afirmação de que estão a ser facilitadas as ilegalidades no setor dos resíduos, levando a um aumento da deposição em pedreiras/areeiros.
Dar nota que a utilização de resíduos para enchimento de vazios de escavação não é autorizada pela Nota Técnica, mas sim por um procedimento de licenciamento, que inclui a aprovação do Plano Ambiental e de Recuperação Paisagística (PARP) – no caso de pedreiras, é aprovado pelas Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) ou pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) quando estas estejam situadas em áreas classificadas e no caso das minas, pela Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG). No PARP são identificadas as tipologias de resíduos, bem como quantitativos máximos, se aplicável, que podem ser utilizadas nesta operação de tratamento, para recuperação ambiental da pedreira ou mina, sendo por isso precedido de uma análise da situação específica.
Com que medidas de controlo está a APA a contar para que se garanta que os resíduos depositados em pedreiras/areeiros não ultrapassam os valores de referência do Guia Técnico da APA? Está previsto um aumento de fiscalização, com análises aos resíduos à entrada das pedreiras?
Conforme exposto na Nota Técnica, para que os resíduos possam ser utilizados em enchimento de vazios de escavação, não é condição suficiente o constarem da Tabela A da Nota Técnica, sendo adicionalmente necessário que:
· As tipologias de resíduos, bem como quantitativos máximos se aplicável, estejam expressamente autorizadas para este fim no plano ambiental e de recuperação paisagística referido na questão anterior e que teve em consideração a situação específica da pedreira ou mina;
· Sejam cumpridos os requisitos estabelecidos na legislação relativos à deposição em aterros para resíduos inertes (designadamente caracterização básica, a qual deverá incluir: avaliação da perigosidade, no caso das entradas espelho da Lista Europeia de Resíduos e verificação do cumprimento dos critérios de admissão em aterro para resíduos inertes).
Considera-se portanto estarem definidos procedimentos de controlo para utilização de resíduos nesta operação de tratamento.
Importará clarificar ainda que os valores de referência constantes do Guia Técnico – Valores de Referência para o Solo, da APA, apenas são aplicáveis aos RCD – “solos e rochas”, sendo a avaliação da sua contaminação da responsabilidade do detentor dos mesmos, devendo ser efetuada, sempre que possível, ao solo in situ. A APA, quando solicitada a pronunciar-se pelas entidades licenciadoras das operações de remediação de solos (CCDR territorialmente competentes), verifica, em função dos resultados da avaliação da contaminação do solo, se os solos apresentam condições para poderem ser encaminhados para os destinos avançados pelo proponente da operação de remediação.
Em todo o caso, importará recordar que os solos e rochas contaminados escavados não podem ser depositados em aterro de resíduos inertes nem em pedreiras, por força do disposto no n.º 1 do artigo 14.º do Regime jurídico da deposição de resíduos em aterro, aprovado no anexo II do Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, alterado pela Lei n.º 52/2021, de 10 de agosto, disposição reforçada no Documento de Orientação – Operações de remediação de solos – Gestão de solos não contaminados (APA, 2021, Rev. 1, agosto de 2021).
Naturalmente que a verificação do supra exposto passa por um reforço da fiscalização, conforme referenciado na questão suscitada, não detendo a APA competências de fiscalização neste âmbito específico.
Por que razão estão incluídos na lista “resíduos do fabrico de fibrocimento”, atendendo a que o fabrico de fibrocimento em Portugal está proibido há vários anos?
Os resíduos considerados para efeitos da listagem da tabela A da Nota Técnica foram selecionados atendendo à definição de “enchimento” constante na legislação em vigor, bem como às características específicas dos resíduos. Não foi tida em consideração a sua produção atual em Portugal.
O vidro (entre outros resíduos) está incluído na lista da nota técnica. Isto significa que o vidro que for depositado em pedreiras no contexto de recuperação paisagística é considerado para as metas de reciclagem de Portugal?
O vidro quando utilizado para enchimento de vazios de escavação nas condições previstas na Nota Técnica e legislação em vigor, não configura uma operação de reciclagem, mas sim de valorização pelo que não poderá ser contabilizado como reciclagem para efeitos das metas de preparação para reutilização e reciclagem de resíduos urbanos.
Salienta-se ainda que, conforme referido na nota técnica, deverá sempre ser cumprido o princípio da hierarquia de resíduos pelo que apenas poderão ser utilizados em operações de enchimento de vazios de escavação, resíduos que não são passíveis de serem submetidos a uma operação de preparação para reutilização ou reciclagem em alinhamento com os princípios da economia circular.