Quem vai de férias aos Açores, geralmente não perde a oportunidade de passar umas horas no mar procurando o convívio com baleias e golfinhos. Uma das espécies de leviatã – ora aqui está uma palavra que eu sempre quis usar – que costuma vir espreitar os humanos é o cachalote (nome científico: Physeter macrocephalus), outrora caçado com arpões durante a época da baleação e atualmente um dos alvos preferidos das objetivas das máquinas fotográficas.
O registo histórico mais antigo da presença desta espécie nos Açores é um relato de Gaspar Frutuoso, que começa assim: “No ano de 1574 acharam os pescadores uma baleia morta onde se chama o Mar de Ambrósio, e, por ser longe e estar um só batel, a não levaram a terra inteira, senão muitas postas dela, de que fizeram muito azeite.” Pela restante descrição do historiador, percebemos que a espécie a que se refere é o cachalote e que os açorianos usavam as baleias que encontravam mortas no mar ou em terra. Portanto, ao contrário dos veraneantes que ficam chateados quando uma baleia morta dá à costa e arruína uns dias de praia por causa do mau cheiro, os açorianos do século XVI agradeciam a bênção e tratavam de aproveitá-la o melhor que podiam.
A principal razão para a presença dos cachalotes neste arquipélago é a existência de zonas marinhas de grande profundidade, onde eles se alimentam de lulas, polvos e outros seres vivos sem coluna vertebral (não, isto não inclui membros do Governo). Este cetáceo faz mergulhos de trinta a sessenta minutos e consegue ultrapassar os 2000 metros de profundidade (pode dizer-se que opera sob grande pressão), orientando-se e localizando as suas presas na escuridão total por ecolocalização. Aliás, uma teoria bastante consensual defende que a substância cerosa da cabeça do cachalote (chamada “espermacete” por se julgar erradamente que era o esperma destes animais) tem a função de ajudar a sondar o meio onde se deslocam. Mas há outros especialistas que dizem que o espermacete regula a flutuabilidade dos animais e ainda outros que advogam que serve como aríete para ser usado em lutas entre machos rivais. Uma quarta teoria de que me lembrei e que aqui proponho pela primeira vez é que o espermacete existe apenas para confundir os especialistas acerca da sua função e que está a cumprir muito bem o seu papel.
A partir do século XVIII, os navios baleeiros de outros países que calcorreavam os mares à procura de cetáceos paravam habitualmente nos Açores para recolher água, comida e marinheiros destas ilhas. O célebre romance de Herman Melville “Moby Dick” (1851) faz uma referência direta ao arquipélago e aos corajosos marinheiros açorianos, que se contentavam com pouco e obedeciam aos tiranos capitães Ahabs das embarcações em que trabalhavam. Neste clássico da literatura, Melville baseou-se em factos reais para descrever o ataque de um cachalote, que se virou contra os seus perseguidores e investiu diversas vezes num navio baleeiro até o afundar. Tendo em conta que os cachalotes machos imaturos formam grupos celibatários até atingirem a maturidade, parece-me que este foi um ato irrefletido de um cachalote adolescente, discriminado por ser albino, a querer provar alguma coisa aos amigos.
A indústria baleeira açoriana iniciou-se em 1826 e seguiu o padrão que é descrito noutros locais do Mundo de atingir o seu pico por volta dos anos 1950s, começando a decair a partir daí. E tal como muitos atores e músicos que não conseguem retirar-se quando ainda estão em alta, também os marinheiros açorianos só abandonaram totalmente a caça à baleia em 1987, de acordo com os acordos internacionais de proibição desta atividade que Portugal também assinou. Alguns destes marinheiros foram posteriormente contratados por empresas de ecoturismo, que começaram a sua atividade nos Açores em 1992. Apesar desta mudança, as consequências da baleação exercida ao longo de muitas décadas ainda se fazem sentir hoje em dia. Por exemplo, os maiores cachalotes conhecidos atualmente chegam aos 18 metros, mas sabe-se que no passado se capturaram animais desta espécie com mais de 28 metros. Um estudo português que comparou os dados da indústria baleeira com as observações do ecoturismo também concluiu que estes cetáceos eram mais frequentes há umas décadas atrás, o que reforça a ideia de que ainda estão a recuperar.
Em suma, o ecoturismo com cetáceos nos Açores é um bom exemplo de transição da exploração de um recurso natural em regressão para uma forma de uso sustentável. Claro que isto apenas foi possível em algumas regiões com condições privilegiadas para a observação destes animais e que as restantes tiveram de encontrar outras atividades económicas (salvo raras exceções como o Japão e a Noruega, que se desviam de acordos internacionais e de embarcações das associações ambientalistas para continuar a caçar alguns cetáceos). De qualquer forma, ainda bem que foi possível evitar a continuação do declínio de cetáceos, até porque ia haver por aí cachalotes adolescentes com elevados níveis de testosterona no sangue e sem nada a perder…
Referências bibliográficas:
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