No dia 10 de novembro de 1989, uma sexta-feira, saí de minha casa, no número 104 da Schönhauser Allee, em Berlin-Prenzlauer Berg, cerca das 06h30, como fazia aliás todos os dias, e apanhei o metro de superfície na Schönhauser Allee para ir trabalhar em Berlin-Adlershof.As carruagens do metro estavam bastante cheias, lá fora ainda fazia escuro. Como sempre àquela hora. Na verdade, porém, nada era como de costume. Na tarde do dia anterior, Günter Schabowski, secretário para a Informação e Comunicação Social do Sozialistische Einheitspartei Deutschlands (SED) [Partido Socialista Unificado da Alemanha], tinha declarado na televisão da República Democrática Alemã (RDA): “As viagens particulares para o estrangeiro passam a poder ser solicitadas sem condições prévias (motivo da viagem e relações familiares).” E, quando questionado, confirmou que tal medida se aplicava “imediatamente, sem demora”. Na prática, naquela quinta-feira, 9 de novembro de 1989, ele anunciava a queda do Muro de Berlim.Pouco depois, o processo tornou-se imparável. Ao longo dessa tarde, também eu me juntei à multidão que rumava à fronteira da Bornholmer Strasse e que, em seguida, se encaminhou para Berlim Ocidental. Lá de cima, dos apartamentos, vindas de todo o lado, ouviam-se as vozes dos residentes de Berlim Ocidental dizendo-nos que podíamos ir ter com eles e beber uma cerveja, brindar àquele acontecimento inconcebível. Outros, tal era a felicidade, desciam mesmo à rua. Perfeitos desconhecidos abraçavam-se, e eu fiz parte de tudo aquilo. Seguindo atrás de um pequeno grupo de pessoas que não conhecia, virei na primeira rua à esquerda a seguir à ponte.Um berlinense ocidental convidou-nos a ir a sua casa e assim fizemos. Ofereceu-nos uma cerveja e deixou-nos usar o telefone. Contudo, a tentativa de contactar a minha tia em Hamburgo não foi bem-sucedida. Passada cerca de meia hora, despedimo-nos. A maioria seguiu caminho até à Kurfürstendamm, a grande avenida de Berlim Ocidental. Já eu, dei meia-volta e regressei a casa, por volta das 23h00, pensando que, no dia seguinte, teria de me levantar muito cedo para rumar a Adlershof.Queria trabalhar numa apresentação que ia fazer daí a alguns dias, em Torún, na Polónia, e que estava ainda longe de terminada. Praticamente, não preguei olho nessa noite, de tão empolgada com tudo o que havia vivido poucas horas antes.Na manhã seguinte, na carruagem de metro para Adlershof também seguia um pequeno grupo de homens fardados, soldados fronteiriços do regimento da guarda Feliks Dzierżyński. Findo o turno da noite na fronteira regressavam às casernas, que ficavam perto do meu instituto. Os soldados conversavam muito alto, pelo que era inevitável ouvir o que diziam.– Caramba, mas que noite – ironizou um deles. – Que consequências é que isto vai ter para os nossos oficiais?– Esses estavam todos virados do avesso e ainda os espera uma surpresa desagradável – disse outro.– Perderam a razão de ser. As vidas deles, as carreiras, tudo para o lixo! – exclamou um terceiro soldado.Saímos em Adlershof. Cada um seguiu o seu caminho, os soldados rumaram à caserna, e eu, à minha secretária no Zentralinstitut für Physikalische Chemie (ZIPC) [Instituto Central de Química-Física] da Academia das Ciências da RDA. Mas estava fora de questão conseguir trabalhar. Tudo tinha parado e, como é evidente, também a apresentação que me levou a regressar cedo do Ocidente na noite anterior.
Não era a única a sentir-me assim, éramos todos. Falávamos e falávamos sem parar. A meio da manhã, a minha irmã telefonou-me para o instituto. Na altura, ela trabalhava na Policlínica dos Trabalhadores da Construção Civil como ergoterapeuta. Combinámos ir, nesse fim de tarde, visitar um seu amigo de longa data, que conheceu alguns anos antes através de amigos comuns, a Berlim Ocidental. Era difícil acreditar que, de repente, podíamos simplesmente ir até lá visitá-lo.Passei o dia todo sem conseguir tirar da cabeça o que os soldados de fronteira tinham dito nessa manhã no metro. Pensava: finalmente! Finalmente, estes soldados e os seus oficiais deixaram de ter poder sobre mim. Já não têm poder sobre a minha família. Durante 28 anos, o Muro de Berlim havia separado não apenas a minha família, causando tanta dor aos meus pais, mas também a família do meu marido, Joachim Sauer. A nossa situação era idêntica à de um sem-fim de pessoas no Leste e no Ocidente. Por fim, aqueles soldados já não nos podiam impedir de nos movimentarmos livremente. Ao mesmo tempo, contudo, apercebi-me de que ficou a ressoar dentro de mim uma expressão do soldado no metro: razão de ser. Como seria, depois desta noite, a minha vida, a da minha família, a dos meus amigos, a dos meus colegas? Que valor se daria, no futuro, às nossas experiências, qualificações, competências, desempenhos, decisões pessoais? Eu tinha 35 anos. Apenas 35 anos? Ou já 35 anos? O que permaneceria? O que mudaria?
Durante 28 anos, o Muro de Berlim havia separado não apenas a minha família, causando tanta dor aos meus pais, mas também a famíliado meu marido, Joachim Sauer. Por fim, aqueles soldados jánão nos podiam impedir denos movimentarmos livremente
Nasci no dia 17 de julho de 1954 em Hamburgo, a primeira filha de Herlind e Horst Kasner. O meu pai nasceu em 1926, em Berlim, filho de Ludwig Kazmierczak (natural de Poznań, tendo-se mudado para Berlim no início da década de 1920) e da sua mulher, Margarete. O pai dele era agente da polícia e a mãe, natural de Berlim, costureira e dona de casa. Em 1930, a família mudou o apelido polaco pelo apelido alemão Kasner, pelo que, daí em diante, o meu pai passou a chamar-se Horst Kasner. O meu avô, Ludwig Kasner, morreu logo em 1959, pelo que não guardo qualquer memória dele.A minha mãe, Herlind, nasceu em 1928 em Danzig-Langfuhr, sendo a mais velha de duas filhas do casal de professores Willi e Gertrud Jentzsch. A mãe dela, natural de Elbing, na Prússia Oriental, abandonou a profissão com o nascimento da primeira filha. O pai, o meu avô Willi, professor na área das Ciências Naturais e diretor de um Realgymnasium [Escola secundária de preparação para os exames finais do secundário, para ingresso na universidade, com especial enfoque nas ciências e línguas modernas] em Danzig [atual Gdansk, na Polónia], proporcionou um certo bem-estar à família. Viviam, como hoje se diz, modestamente. Em 1936, surgiu a oportunidade de a família se mudar de Danzig para Hamburgo, pois haviam proposto ao meu avô que assumisse o cargo de diretor num liceu dessa cidade.Estava tudo pronto, a casa nova arrendada, uma empresa de mudanças contratada. Contudo, o meu avô adoeceu com uma infeção causada por apendicite e colecistite. Morreu, porque na altura ainda não existia a salvadora penicilina.
A minha avó ficou sozinha com as duas filhas. Ainda assim, mudaram-se para Hamburgo, para a espaçosa casa arrendada na Isestrasse. Os problemas financeiros afligiam-nas. Era uma realidade que nunca haviam conhecido. É verdade que a minha avó recebia a pensão de viuvez, mas a vida que levava até então colapsou. Durante muito tempo, a minha avó vestiu-se de luto e estava sempre preocupada com as filhas. Se demorassem um pouco mais do que o habitual a chegar a casa, ficava de imediato em cuidados e punha-se à varanda à espera de que chegassem.

No verão de 1943, Hamburgo foi fortemente afetada pelos ataques aéreos britânicos e americanos, o mesmo podendo dizer-se da casa onde a minha família vivia. A minha avó saiu, então, da cidade com as duas filhas. Mudaram-se, primeiro, para a aldeia de Neukirchen, em Altmark, onde uma das irmãs da minha avó vivia com a família. Depois, no outono de 1943, foram para Elbing, a sua cidade natal na Prússia Oriental. Contudo, poucos meses depois, no verão de 1944, regressaram a Neukirchen. Em 1944, a minha mãe foi daí enviada para a Escola de Westend, em Berlim, que na altura tinha sido deslocada para Písek, na atual Chéquia. No final da guerra, com algumas aventuras pelo meio, conseguiu, a custo, regressar a Neukirchen, para junto da mãe e da irmã. Entre o final de março de 1945 e a sua chegada à aldeia, em outubro de 1945, a família não teve sinal de vida da minha mãe. Ela contava amiúde que, na altura com 17 anos, teve muito medo de ser violada pelos soldados soviéticos que ia encontrando pelo caminho.
As experiências da guerra tiveram um efeito ainda mais forte na vida do meu pai. Com o pai, o meu avô Ludwig, era frequente ouvir a rádio BBC às escondidas, debaixo dos cobertores, para acompanhar a evolução dos acontecimentos na frente de batalha.
Já durante a guerra, o meu avô estava convicto de que a Alemanha a perderia – e que, aliás, devia perdê-la. Em maio de 1943, o meu pai foi convocado para servir como ajudante na defesa antiaérea. Quando fez 18 anos, em agosto de 1944, tornou-se soldado e, na primavera de 1945, ficou soterrado debaixo de escombros na sequência de um bombardeamento. No final da guerra, foi por um breve período feito prisioneiro dos ingleses, na Dinamarca. Quando regressou, em agosto de 1945, a Alemanha já tinha sido dividida em zonas de ocupação e repartida pelas potências vencedoras. Ele foi ao encontro de um amigo em Heidelberg e aí recuperou o Abitur [exames do Ensino Secundário] para, como viria depois a contar, marcado pela experiência da guerra, iniciar o curso de Teologia em 1947.Na sua casa paterna, porém, esta decisão não foi evidente. É verdade que o meu avô era batizado pela Igreja Católica e a minha avó pertencia à Igreja Evangélica, mas nem um nem outro eram cristãos praticantes. Já o meu pai ainda chegou a receber o batismo católico, mas, em 1940, fez a confirmação na Igreja Evangélica. No fim da guerra, e depois do terror do nacional-socialismo, estava convicto de que, para um recomeço, era necessária uma ética de paz. E, para ele, esta provinha da fé cristã. Assim, decidiu estudar Teologia naquelas que eram, na altura, as zonas de ocupação ocidentais. Desde o princípio, associou os estudos ao plano de regressar à zona que, entretanto, ficara sob ocupação soviética. Era sua convicção de que aí precisavam de pessoas como ele. Penso que se pode classificar esta atitude como um chamamento.
Em 1949, o meu pai prosseguiu os estudos em Bethel, concluindo-os em 1954 com o vicariato, em Hamburgo. Conheceu a minha mãe em 1950, num evento da comunidade de estudantes evangélicos, onde eram ambos estudantes de referência, ou seja, as pessoas de contacto a quem os outros estudantes podiam recorrer. A minha mãe estudou Inglês e Latim em Hamburgo e queria tornar-se professora num liceu. Por brincadeira, os amigos da associação estudantil chamavam-lhe “Mercedes”, pois – tal como a mãe dela – já na altura sonhava em ter um carro, aliás, o maior e o mais veloz possível.
Os meus pais casaram-se a 6 de agosto de 1952. Com o casamento, tornou-se ponto assente para a minha mãe que acompanharia o marido quando ele concretizasse o plano de regressar à igreja de Berlin-Brandenburg, ou seja, de ir para a RDA, fundada três anos antes. Esta decisão foi tudo menos fácil. Mas tomou-a por amor, com sérias consequências para si própria.
Esse dia chegou em 1954. Este ano ficou, para muitos, embora não para a maioria, associado ao Milagre de Berna, a primeira conquista do título de campeã do mundo de futebol pela seleção nacional da República Federal da Alemanha (RFA). Na minha família, foi, todavia, o ano em que os meus pais se mudaram da RFA para a RDA, de Hamburgo para Quitzow, uma pequena localidade de Prignitz, em Brandeburgo, a cerca de 150 quilómetros a noroeste de Berlim. O meu pai assumiu aí a sua primeira paróquia como pastor. Ele mudou-se primeiro e a minha mãe seguiu-o pouco depois, levando-me com ela numa alcofa, tinha eu seis semanas. Passara precisamente um ano desde que, a 17 de junho de 1953, uma insurreição popular na RDA, com greves e manifestações políticas, havia sido brutalmente reprimida por tanques soviéticos. E escassos anos mais tarde, com a construção do Muro, seguir-se-ia novo golpe que afetaria milhões de alemães, incluindo a nossa família. Entre uma coisa e outra, porém, os meus pais foram-se instalando no seu novo espaço.
Tínhamos uma empregada doméstica. Chamava-se Sr.ª Spiess e tinha ido da Prússia Oriental para Quitzow com o antecessor do meu pai. Quando ele se reformou, ela continuou a trabalhar com os meus pais. Foi ela quem lhes ensinou tudo o que era preciso saber acerca da vida no campo. O meu pai tinha de ordenhar as cabras, a minha mãe aprendeu a cozinhar urtigas e muitas outras coisas que desconhecia por ser uma menina da cidade. Contava-se muitas vezes na nossa família que ela tinha levado uma carpete branca e que, no início, também em Quitzow queria manter o hábito de Hamburgo de não pedir às visitas que descalçassem os sapatos, inclusivamente aos camponeses da aldeia, quando queriam falar com o meu pai. Era frequente eles irem apresentar-lhe as suas apreensões, pois tinha começado o tempo da coletivização obrigatória; por este motivo, mais tarde muitos deles acabaram por se mudar para o Ocidente. Sempre que os camponeses faziam menção de descalçar os sapatos ao entrar em casa, cientes das marcas que deixariam na carpete branca, a minha mãe dizia:– Deixe estar, não é preciso.Por isso, eles pisavam a carpete branca com as solas sujas de terra. A dada altura, a minha mãe renunciou ao seu costume de Hamburgo e passou a pedir às visitas que se descalçassem. Foi nesse momento que realmente se instalou em Quitzow.
Por ser mulher de um pastor, à minha mãe não lhe era permitido lecionar na escola pública, pois, na RDA, nada do que dissesse respeito à educação podia sofrer qualquer tipo de influência religiosa. A RDA entendia-se como um Estado ateu
Já eu não tenho memórias da localidade, tudo o que sei é apenas pelo que a nossa família ia contando.
Com Templin, o caso muda completamente de figura. Os meus pais mudaram-se para este pequeno município do distrito de Uckermark, em Brandeburgo, cerca de 80 quilómetros a norte de Berlim, em 1957, levando-me e ao meu irmão Marcus, que nasceu nesse ano. O meu pai havia sido chamado pela igreja de Berlin-Brandenburg para assumir a direção do seminário pastoral de Templin, que mais tarde viria a ser o colégio pastoral. Deixava, assim, de ser um clássico pastor de paróquia. Também para a minha mãe, esta mudança trouxe novas possibilidades.
Em 1964, nasceu a minha irmã, Irene. Quando ela tinha cerca de seis anos, começámos a partilhar um lugar preferido, a cobertura de chapa da lucarna do sótão da casa dos nossos pais. Irene, mais hábil do que eu, descobriu que era fácil treparmos para fora da janela e sentarmo-nos comodamente na superfície de chapa. Dali, avistávamos os pinheiros e observávamos as copas a ondular suavemente ao sabor do vento. Por entre as árvores, víamos um caminho que descia ligeiramente até desembocar num prado através do qual corria o canal entre o lago de Templin e o lago de Röddelin. No verão, era ali em cima que engendrávamos os nossos planos. Deveríamos ir até à nascente lá adiante no prado? Pegar nas bicicletas e ir tomar banho ao lago de Röddelin? Apanhar mirtilos nos bosques que rodeavam Templin?
As possibilidades pareciam-nos ilimitadas. Entendíamo-nos lindamente apesar dos dez anos de diferença.
A lucarna ficava no meu quarto. O espaço de residência familiar era, na verdade, no piso abaixo. A nossa casa ficava na propriedade do complexo Waldhof, situado na extremidade do município. A maior parte do espaço era ocupada pelas instalações da Fundação Stephanus para Crianças e Adultos com Deficiência Mental, seguindo, aliás, o mesmo conceito das Fundações Bodelschwingh Bethel. Além dos cuidados e da assistência aos residentes, dava-se valor ao efeito terapêutico de um trabalho ativo e com sentido. A ideia era que, na medida do possível, a instituição garantisse a sua própria subsistência e sustentabilidade financeira, por isso, em Waldhof, além de uma cozinha e de campos agrícolas, havia também um horto, uma lavandaria, uma ferraria, uma marcenaria, uma oficina de sapateiro e um atelier de costura. Deixavam-nos andar por todo o lado e podíamos conversar com os mestres dos diferentes ofícios e com os residentes com deficiência mental.
O colégio pastoral dirigido pelo meu pai integrava, por um lado, um edifício com quartos onde os participantes dos cursos podiam pernoitar, bem como algumas casas, entre as quais a nossa, com um total de sete divisões: cinco ficavam no primeiro andar, e o meu quarto e o escritório do meu pai no sótão. Havia, por outro lado, uma espécie de escola, onde decorriam eventos e cursos organizados pelo meu pai.
Basicamente, para mim a RDA oficial era a encarnação do mau gosto. Só imitações, em vez dos genuínos materiais naturais, nunca cores alegres. Os meus pais esforçavam-se por encontrar nichos onde pudessem escapar a essa falta de gosto
Também para a minha mãe, Waldhof reservava novas funções, nomeadamente na formação dos funcionários administrativos da pastoral, a quem dava aulas de Alemão e Matemática, ou nas aulas de Grego e Latim que ministrava aos futuros estudantes do Seminário de Línguas de Berlim, uma instituição de formação teológica da Igreja Evangélica, preparando-os para os estudos superiores. Contudo, com o passar dos anos, as tarefas do colégio concentraram-se cada vez mais na formação contínua dos pastores, pelo que o âmbito de atuação da minha mãe voltou a ficar mais limitado. Ainda trabalhou algum tempo como secretária do meu pai. Por ser mulher de um pastor, não lhe era permitido lecionar na escola pública, pois, na RDA, nada do que dissesse respeito à educação podia sofrer qualquer tipo de influência religiosa. A RDA entendia-se como um Estado ateu.
No dia a dia da família, a repartição dos papéis entre o meu pai e a minha mãe era bastante clássica, muito embora a minha mãe gostasse de pensar como teria sido se tivesse dado aulas numa escola. Na altura, eu imaginava que isso tinha que ver com a ideia de assumir um duplo encargo, já que teria de lidar com ambas as tarefas, as aulas e a gestão doméstica. Para mim, criança, não lhe vislumbrava qualquer vantagem. Uma vez que, oficialmente, a minha mãe não era uma profissional, como se dizia na altura na RDA, isto é, não exercia uma profissão, eu e os meus irmãos não pudemos frequentar o infantário nem, mais tarde, beneficiar das refeições escolares. Isto, porém, já não me agradava de todo. Mesmo no final da escola, no último ano, ainda me bati pelo direito às refeições. Queria-o, não tanto pela qualidade da comida, mas por me sentir atraída por algo que, durante tanto tempo, me fora negado. Mas a verdade é que a minha mãe passou anos a ter de fazer o almoço para toda a família, a que acresciam, como é evidente, as outras refeições e – convém não esquecer – as compras necessárias para as confecionar.
De Waldhof à cidade, onde se faziam as compras, distam cerca de três quilómetros. Quando ainda éramos demasiado pequenos para ajudar, cabia à minha mãe levar para casa, sozinha e de bicicleta, todos os aprovisionamentos. Era um grande esforço físico para ela.Mais tarde, quando tirou a carta de condução, a mãe dela, a minha avó de Hamburgo, ofereceu-lhe um Trabant. Conseguiu fazê-lo através da GENEX, a Geschenkdienst- und Kleintransporte GmbH, um serviço de transportes através do qual os alemães ocidentais podiam enviar ofertas de grande dimensão aos cidadãos da RDA, mas pago em marcos ocidentais. A possibilidade de conduzir o seu próprio carro, mesmo que bastante mais pequeno do que o modelo que lhe valera a alcunha de “Mercedes” na universidade, foi, para a minha mãe, um ato de libertação. Agora, tinha mobilidade. E aproveitou-a também para dar aulas de Inglês no Seminário de Línguas de Berlim, o que, por sua vez, deu origem a alguns atritos com o meu pai, que não apreciava ter de cozinhar. A minha mãe, porém, fez questão de traçar o seu próprio caminho.
Na RDA, os pastores ganhavam pouco, mas, em contrapartida, como era o nosso caso, pagavam uma renda reduzida pela casa onde viviam. Além disso, recebiam apoio material do Ocidente, a chamada “ajuda fraterna”. Para a nossa família, isso correspondia a cerca de 70 marcos ocidentais por mês. A minha avó de Hamburgo e – após a sua morte em 1978 – a minha tia, irmã da minha mãe, geriam a ajuda fraterna e enviavam-nos regularmente encomendas. Para quem estava em Hamburgo, isso exigia uma organização tremenda, mas, para nós, constituía uma ajuda inestimável.
Estas encomendas tinham um significado especial sob outro ponto de vista, algo que sentíamos de imediato quando as abríamos e dizíamos:
– Cheira a Ocidente.
Referíamo-nos ao aroma requintado de um bom sabonete ou do café aromático. Pelo contrário, o Leste cheirava intensamente a produtos abrasivos, cera de chão e terebintina. Ainda hoje tenho o cheiro entranhado no nariz.
Basicamente, para mim a RDA oficial era a encarnação do mau gosto. Só imitações, em vez dos genuínos materiais naturais, nunca cores alegres. Os meus pais esforçavam-se por encontrar nichos onde pudessem escapar a essa falta de gosto, por exemplo comprando os móveis particularmente elegantes da Werkstätten Hellerau, pelos quais tinham, por vezes, de esperar muito tempo. Talvez o meu apreço atual por casacos coloridos se deva em parte a esta experiência remota de sentir tantas vezes a falta de cores fortes no quotidiano da RDA.
O colégio pastoral do meu pai beneficiava das infraestruturas do complexo Waldhof, da cozinha às oficinas da Fundação Stephanus. Os residentes com deficiência mental também faziam certos trabalhos no colégio. Guardo especial memória de um deles. Foi incansável a ajudar a minha mãe, e tinha uma paciência de Job quando era preciso ir buscar lenha e carvão. Era um trabalho muito duro porque todas as divisões eram aquecidas com salamandras.
Era absolutamente concentrado no seu trabalho. No resto do tempo, falava sem cessar e contava histórias do seu mundo, de um tempo em que dizia ter sido funcionário dos caminhos de ferro. Tornei-me sua amiga.
Enquanto não tínhamos de ir à escola, os dias eram sobretudo passados ao ar livre, interrompidos apenas pelas refeições. Ao meio-dia e às 18h00, um residente da Fundação Stephanus tocava o sino de chão instalado no recinto de Waldhof. Também para nós, os filhos do pastor, isso significava que devíamos voltar para casa, pois o almoço era servido a essa hora. De resto, podíamos andar o dia todo a deambular pelo recinto. Era maravilhoso.
O meu amigo especial era o jardineiro, o Sr. Lachmann. Com ele, aprendi a transplantar plantas e a jardinagem em estufas. Podia perguntar-lhe tudo e também ajudá-lo um pouco nas suas tarefas no jardim. Com efeito, eu era uma criança relativamente rústica. Constava até que, em pequena, em Quitzow, bebia água do bebedouro das galinhas quando tinha sede. E, em Waldhof, não me importava de comer cenouras por lavar arrancadas diretamente da terra.
No outono, o meu sítio preferido era a máquina a vapor das batatas. Era um veículo enorme semelhante a uma camioneta, com uma grande cuba que se enchia com batatas para amolecerem com o vapor quente. Deste modo, pouco após a colheita, podiam ser usadas para alimentar os animais. Durante esta operação, deixavam-me sentar ao lado do condutor. Cheirava maravilhosamente a campos cultivados e à rama das batatas e era, para mim, uma delícia saborear as batatas macias.
Em Waldhof, viviam outras crianças, umas mais velhas, outras mais novas do que eu. Fazíamos muitas coisas juntos: íamos tomar banho ao lago, brincávamos nos montes de palha ou jogávamos ao mata. Encontrávamos sempre alguém com quem brincar. Nunca nos aborrecíamos.
No primeiro domingo do Advento, as crianças de Waldhof entoavam cânticos do Advento para os residentes com deficiência mental. Montávamos as nossas pequenas bancadas bem cedo, pelas 07h00, e era assim que acordávamos as pessoas, que dormiam em grandes camaratas. Eram estas as condições da altura, estava fora de questão organizar quartos individuais ou duplos. Cantávamos Es kommt ein Schiff, geladen, Macht hoch die Tür e muitas outras canções. Os residentes ficavam contentes e nós aplicávamo-nos com muito empenho.Na época natalícia, eu cantava ainda no coro da Igreja de Maria Madalena, em Templin. Para as crianças, o Natal em Waldhof era um dos pontos altos do ano. Contudo, a nossa consoada era substancialmente diferente da de muitas famílias. Na residência paroquial, o profissional e o privado misturavam-se com naturalidade, algo que, no Natal, era particularmente evidente.
Na véspera de Natal, o meu pai tinha de celebrar duas ou três missas nas aldeias em redor de Templin e era frequente chegar a casa já depois das 18h00, gelado até aos ossos porque as igrejas das aldeias eram muito frias
Na véspera de Natal, o meu pai tinha de celebrar duas ou três missas nas aldeias em redor de Templin e era frequente chegar a casa já depois das 18h00, gelado até aos ossos porque as igrejas das aldeias eram muito frias. Quando éramos pequenos, obrigavam-nos a dormir a sesta, pois a noite seria mais longa. Já mais crescida, ia com o meu pai às missas.
É claro que a minha avó de Berlim vinha visitar-nos, mas, naquela noite especial, também devíamos pensar naqueles que estavam sozinhos. Os meus pais transmitiram-nos desde pequenos que a essência do Natal consistia em pensar nas pessoas que não tinham uma vida tão boa como a nossa, que estavam sozinhas e desamparadas. Assim, todos os anos, convidávamos para vir passar a consoada connosco um residente que vivesse sozinho e tivesse poucas oportunidades de conviver com outras pessoas. Ao jantar – que, aos meus olhos de criança, já começava tarde devido às missas do meu pai –, o nosso convidado podia finalmente conversar à vontade, os meus pais até o encorajavam nesse sentido. Passávamos o jantar todo em pulgas, com toda a nossa atenção votada aos mais do que ansiados presentes, mas estava fora de questão dizer alguma coisa sobre o assunto. Era costume já passar das 20h00 quando finalmente podíamos passar à “sala de Natal”.
Os meus pais transmitiram–nos desde pequenos que a essência do Natal consistia em pensar nas pessoas que não tinham uma vida tão boa como a nossa, que estavam sozinhas e desamparadas. Assim, todos os anos, convidávamos para vir passar a consoada connosco um residente que vivesse sozinho
Aí chegados, o ritual era sempre o mesmo. Quando se acendiam as velas, eu e os meus irmãos contávamos a história de Natal, e cada um assumia o seu papel. Entre cada capítulo do Evangelho Segundo São Lucas, tocávamos breves peças na flauta e entoávamos cânticos natalícios. Era uma pequena encenação, como é evidente também pensada para agradar aos nossos convidados, mas sobretudo para nos demonstrar que o mais importante, no Natal, não eram os presentes. Tenho recordações maravilhosas da manhã do Dia de Natal, já com os presentes desembrulhados, todos juntos sentados na sala de estar. Por norma, o meu pai não tinha de celebrar missa nesse dia, pois, na qualidade de diretor do colégio pastoral, só prestava serviço nas paróquias a título auxiliar. Enquanto a minha mãe assava o ganso na cozinha, podíamos falar com o nosso pai sobre os presentes. Ao mesmo tempo, íamos petiscando dos pratos coloridos que a minha mãe tinha preparado sem que nos advertissem que devíamos ser comedidos com as guloseimas. Se, entre os presentes que eram enviados do Ocidente para o meu irmão, viesse um dos seus adorados puzzles da Ravensburger, começávamos a montá-lo juntos.
A nossa casa estava sempre aberta, e não apenas no Natal ou outras datas festivas. Os meus pais recebiam visitas com frequência durante todo o ano. Muitas vezes, recebiam amigos depois do jantar e os adultos bebiam chá ou um copo de vinho. Não era raro as pessoas pedirem conselho ao meu pai sobre como, em determinadas situações da vida, deviam agir perante o Estado, incluindo membros do Partido Socialista Unificado da Alemanha. Aos fins de semana, os pastores também gostavam de se visitar. Eu adorava quando podia ir a outras casas paroquiais vizinhas. Depois do lanche, era frequente mandarem as crianças sair. Quando nos diziam que podíamos ir brincar, na verdade queriam dizer que devíamos ir brincar. Muitas vezes, eu tentava ficar com os adultos e engendrava estratégias para ficar encolhida a um canto ou escondida atrás de um cortinado sem que ninguém me visse.Queria muito ouvir o que se dizia. As conversas eram, na sua maioria, de teor altamente político. Interessavam-me tremendamente – mais do que quando se falava de temas teológicos ou da catequese ou das missas. Por vezes, o assunto eram outros pastores que se viam em situação de conflito com o Estado ou tinham problemas com a Segurança do Estado, mas também se referiam os problemas dos filhos na escola. Sempre ficou claro que nunca se podia falar com terceiros acerca de tais conversas e encontros. Nós, crianças, sabíamos que tínhamos de ficar caladas.
Liberdade

Angela Merkel
Sete décadas de memórias ou, como se escreve logo nas primeiras linhas, um livro que “conta uma história que não voltará a repetir-se”
— editora Objetiva