Desconfortável quando hoje, a caminho de um compromisso, desafiou o Waze e chegou mais tarde do que o tempo estimado na app? E quando, daqui a uns meses, no nosso telefone estiver disponível uma nova versão do ChatGPT com conhecimentos ao nível de um doutorado… iremos todos obedientemente seguir os seus conselhos?

Em 1961, o nazi Adolf Eichmann, no julgamento que teve lugar em Jerusalém, apresentou uma defesa tão simples como “eu só seguia ordens”.

Três meses depois, o psicólogo Stanley Milgram conduziu uma experiência onde pretendia perceber se Eichmann e os seus milhões de cúmplices no Holocausto apenas cumpriam ordens ou foram também cúmplices. Na experiência, era dito aos participantes que o objeto do estudo era testar se o castigo físico era útil na aprendizagem. O participante era o “professor” e, a cada resposta errada, aumentava a voltagem do choque elétrico. Se o “professor” hesitava, o “responsável” da experiência repetia algo como: deve continuar, a experiência assim o obriga e esclarecia que a responsabilidade pelo “aluno” era sua. Na verdade, não havia choques e o aluno era um ator (um homem de 50 anos). Os colegas de Milgram antecipavam que não mais de 2% a 3% dos participantes no teste aceitariam a ordem de infligir sofrimento a outro ser humano. O resultado foi desconcertante. Ainda que com manifestações de grande stresse, 65% dos participantes pressionaram o botão “perigo”. A experiência foi posteriormente repetida em diferentes cenários e variantes, mas os resultados mantiveram-se estáveis (documentário disponível no YouTube).

E se a maioria está disposta a cumprir ordens de quem entende que tem autoridade e é responsável, ainda que violem os seus valores morais, como será quando nos próximos dois anos a Inteligência Artificial se tornar omnipresente? Iremos, também nós, reconhecendo a superinteligência do ChatGPT, segui-lo cegamente?

O cenário parece distópico. A maioria de nós utiliza o ChatGPT de forma “básica”. Mas será assim tão longínquo o momento em que abandonamos a nossa autodeterminação a uma forma de inteligência alienígena, como a categoriza Yuval Harari no seu livro Nexus?

Na verdade, já o estamos a fazer e com algoritmos muito menos inteligentes. Nos Estados Unidos da América, desde 2016, vários tribunais utilizam algoritmos para “recomendar” uma pena ao juiz. Ora, sendo o algoritmo treinado em casos passados, não surpreende que as sentenças recomendadas para brancos e negros sejam profundamente diferentes (recorde-se que a população negra nos Estados Unidos da América é de apenas 12%, mas os negros representam 37% da população prisional). Na decisão de um pedido de crédito ou do valor do seguro automóvel, os algoritmos já imperam, mas se pedir que lhe expliquem porque foi recusado o seu pedido ou cobrado um determinado valor, a resposta será provavelmente evasiva. O funcionário não compreende como funciona o algoritmo.

No ano passado, foi publicado o Regulamento Europeu Inteligência Artificial, mas a sua aplicação efetiva está por acontecer. E sendo certo que nada irá moderar o ritmo do desenvolvimento tecnológico, serão as regras existentes suficientes? Depende da sua aplicação. Do que qualificamos como recomendações, ordens e manipulação. Da forma como em cada organização a Inteligência Artificial for utilizada e os princípios éticos a que estará sujeita.

Esta não é uma questão a ser resolvida entre Ursula von der Leyen, Trump e Mark Zuckerberg. É nossa, individualmente e das entidades nas quais trabalhamos e em cujos processos de decisão participamos.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

1. O sufrágio de 18 de maio próximo ocorrerá exatamente 50 anos e 23 dias após as primeiras eleições livres, por sufrágio universal, da História de Portugal. Essas eleições, a 25 de Abril de 1975, para a Assembleia Constituinte, representaram uma espécie de primeira institucionalização da liberdade conquistada um ano antes, com a Revolução de 1974, graças ao Movimento das Forças Armadas (MFA) e em rigoroso respeito pelo seu programa. Com essas eleições à “legitimidade revolucionária” veio juntar-se a “legitimidade democrática”, que teve a sua institucionalização definitiva com a aprovação da Constituição da República a 2 de abril de 1976.

Quem viveu esse período, por vezes (por revolucionário) natural e inevitavelmente conturbado, mas sempre apaixonante, deslumbrante, não pode esquecê-lo. Nem pode esquecer o clima de verdadeira festa, um povo, após meio século de ditadura, a sentir-se livre e dono do seu destino, nesse 25 de Abril de 1975. Obviamente isso é irrepetível. Mas não pode deixar de ser triste, e impõe reflexão, ver como hoje, e nestas eleições, parece haver um clima e um sentimento tão no avesso dos de há meio século. Provavelmente idem com a percentagem de votantes – e para cúmulo confrontados com uns miseráveis cartazes que, sob a capa da propaganda eleitoral, vilipendiam o 25 de Abril, identificando-o com a “corrupção”.

2. Volto às eleições de 1975 para sublinhar, como é oportuno e de justiça, o admirável trabalho de recenseamento e elaboração dos cadernos eleitorais, desenvolvido pela equipa liderada pelo tenente-coronel Costa Brás, do MFA e ministro da Administração Interna. Assim, nas eleições de outubro 1973 havia um milhão e 800 mil recenseados, e nas de abril seis milhões e 200 mil, ou seja, quase quatro vezes mais! O que é extraordinário, como o é desses 6,2 milhões terem votado 5,7 milhões – cerca de 92%.

Logo em maio de 74 foi nomeada uma comissão, composta por prestigiosos juristas, para apresentar uma proposta de lei eleitoral. Nessa proposta, e no processo subsequente, tudo foi feito para assegurar uma democraticidade sem mácula das eleições, uma completa igualdade de oportunidades para todas as candidaturas. E lembro-me bem de, já na fase final de aprovação da lei, haver uma disposição que obrigava a imprensa a dar o mesmo espaço a todos os partidos…

Eu estava na direção do Diário de Notícias, ao tempo o de maior tiragem e influência, e (também como jurista) critiquei essa imposição absurda: como dar o mesmo espaço, o mesmo relevo, inclusive noticioso, aos partidos que tinham numerosas iniciativas diárias e aos que quase não existiam ou tinham muito reduzida atividade? Fui convidado a ir ao Conselho de Estado – integrado pelos principais titulares dos órgãos de soberania, dirigentes do MFA e grandes personalidades (como Azeredo Perdigão) – para expor o que pensava. E a lei foi mesmo mudada, passando a obrigar a uma igualdade, sim, mas de tratamento jornalístico, para o que era igual…

Foi fantástica a campanha para os portugueses votarem nessas eleições de 1975, foi fantástico esse dia 25 de Abril, tendo a coroá-lo a cobertura televisiva pela RTP, numa emissão histórica de 30 horas seguidas. São as eleições de agora, mesmo atendendo à diferença dos tempos, simbolicamente “dignas” dessas de há meio século?…

3. Considero lamentável a posição da Comissão Nacional de Eleições sobre os cartazes do Chega em que sem margem para nenhuma dúvida se acusa de “corrupto” Luís Montenegro – e cuja retirada ele muito bem requereu através de uma providência cautelar. Ser corrupto é ter cometido um crime muito grave, para mais tratando-se de um político e primeiro-ministro. E então pode impunemente acusar-se, e com a maior exposição pública, alguém de um crime assim grave – de ser corrupto, ou ladrão, ou abusador sexual – em nome da “liberdade de expressão” e como forma de “propaganda eleitoral”? De facto, remetendo para o que aqui escrevi há duas semanas, “vale tudo”. E como a Justiça, ao fim de semanas, ainda não se pronunciou sobre aquela providência cautelar, isso confirma a por mim defendida necessidade de um Tribunal Eleitoral, como no Brasil.

À MARGEM

Duas notas sobre os debates

1) Nos debates televisivos que vi, de interesse e nível bastante diferentes, julgo haver em geral uma melhoria na intervenção e na moderação dos jornalistas. E por exemplo, na RTP, essa melhoria é nítida, ao passar a ter como titular um profissional que, curiosamente, até começou na área do desporto – Hugo Gilberto.

2) Continua, porém, em vários casos, a haver uma permissividade inadmissível – que por vezes parece até conivência, embora involuntária – em relação a André Ventura, suas interrupções e seus truques. Inclusive ao “focarem-no” enquanto o outro debatente está a falar e ele faz umas provocações e/ou diz umas aldrabices (por exemplo, sugerindo ligações ao Irão, à China ou à Venezuela de quem as não tem, pelo contrário).

As autoridades americanas enviaram um questionário às universidades portuguesas com quem têm protocolos de colaboração. Em traços muito largos, a continuação do apoio às instituições depende da não colaboração com “regimes malignos”, se estas escolas defendem ou não as mulheres da “ideologia de género”, se se fala das alterações climáticas, se se apoiam iniciativas para acabar com a discriminação ou se há contactos com partidos socialistas ou comunistas.

Aconselho vivamente a ler a lista de perguntas na sua totalidade. É um bom exemplo de várias das vertentes do processo revolucionário em curso nos Estados Unidos da América. Quer-se acabar, entre outras coisas, com todas as políticas que promovam a inclusão, a diversidade e a equidade. O plano é destruir todas as instituições que tentam apoiar minorias historicamente discriminadas, implodir todas as tentativas de tornar a sociedade mais coesa, criar barreiras sociais que não permitam a certos grupos sociais ter oportunidades.

É todo um novo mundo que se quer criar, um regime que impõe a verdade e que não tolera qualquer contraditório. Para isso é fundamental acabar com qualquer espaço onde se produza pensamento, onde haja debate, onde se investigue, onde se incentive o livre debate de ideias. Não surpreende assim o ataque feroz que o regime trumpiano tem feito às principais universidades americanas. A chantagem financeira nem se disfarça: ou promovem o que a nova ordem defende ou ficam sem financiamento e condenadas à irrelevância.

Seja como for, é esta gente que agora manda na ex-terra dos livres e que quer rapidamente transformá-la numa autocracia. Se querem acabar com políticas promotoras de diversidade, equidade e integração, se não querem o livre debate ou o contacto com outras realidades políticas e ideológicas no seu país, é normal que não apoiem escolas que o façam por esse mundo fora. Nada mais normal e legítimo.

O que não é normal e legítimo é a intromissão na mais sagrada regra das universidades: a sua autonomia.

O Estado ou qualquer outra instituição privada ou pública, nacional ou estrangeira, pode doar dinheiro a uma universidade, não pode é interferir nas suas liberdades e atividade académica.

Não há qualquer dúvida: as perguntas que foram feitas às universidades portuguesas violam os tais princípios inegociáveis.

Um ataque desta violência por parte de um governo estrangeiro a instituições tão relevantes da nossa comunidade tem de ter uma resposta.

Aguardei que o ministro da Educação dissesse alguma coisa sobre o assunto: nada. Ou seja, Fernando Alexandre não acha este ataque à autonomia universitária digno de uma palavrinha que seja.

Mas o que mais me surpreendeu foi o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros nada ter dito.

Não é por sabermos Paulo Rangel um lutador pela liberdade (quem não se lembra da claustrofobia democrática?), é tão simplesmente por desempenhar as funções que exerce. É ele que tem de dizer ao governo americano que a sua atuação é intolerável e que Portugal não aceita esse tipo de interferências nas nossas universidades.

Mas sejamos justos, tinha de ser o Governo português a tomar uma posição clara. Ou seja, Luís Montenegro não podia deixar de dar indicações a Paulo Rangel para que atuasse com a necessária dignidade.

O problema é que este tipo de comportamento perante a nova Administração Trump está a tornar-se assinatura deste Governo. Ouço Nuno Melo a não pôr em causa a posição dos EUA perante a NATO; vi o ministro Pedro Reis a achar normal um inacreditável pedido de certificação às empresas portuguesas para garantir o cumprimento das leis americanas, que não é mais do que um ato de suserania económica; quando os líderes ocidentais condenaram em coro Trump por causa do que ele disse sobre Gaza, Montenegro ficou mudo e quedo.

Mais, não consigo encontrar frases condenatórias, tomadas de posição ou sequer chamadas de atenção do Governo português ou dos seus membros sobre os inúmeros atentados de Trump à democracia, à economia global ou ao que quer que seja que este pretendente a ditador tenha dito ou feito. Nada.

Pode ser cobardia, claro está, aquela que os bullies como Trump adoram e que os faz sempre exigir mais e mais. Pode, porém, ser outra coisa.

Em 2016, Montenegro disse que se absteria na eleição entre Hillary Clinton e Trump. Já era grave, mas a seguir aconteceu o que aconteceu e pode ser que ele tenha mudado de ideias. Mas há poucos meses, depois da tentativa de golpe de Estado e de tudo o que Trump anunciava, Hugo Soares, o, de facto, segundo homem mais poderoso do País, disse que teria muita dificuldade em escolher entre o atual Presidente dos EUA e Kamala Harris.

Talvez não fosse má ideia aproveitar a campanha para esclarecer se Montenegro e Hugo Soares já perceberam quem Trump é. Até agora, os atos e palavras não têm sido de forma a deixar-nos sossegados.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Palavras-chave:

Aviso prévio: Eu não um grande apreciador destes debates pré-eleições. Raramente acrescentam novidades, e na maior parte dos casos só confundem quem quer ser confundido.

Debate Pedro Nuno Santos/André Ventura (dia 15, 21h, TVI)

  1. Se alguma vitória marginal pudesse ser atribuída, nenhum dos dois conseguiu essa proeza. Ventura esteve sempre ao ataque, munido de resmas de papel – quando chegará o dia em que um líder se apresentará num debate sem a necessidade de levar um pacote de fotocópias, inundadas de citações antigas e outra tralha pré-histórica? –, evidenciando claramente o seu estilo agressivo de confronto, mas com uma curiosidade insólita: avança para criticar de alto a baixo as ideias dos adversários, mas nunca, nem por um minuto, diz o que faria e como o faria. O Chega continuará a obter muitos votos, mas nada que se compare com os 19% alcançados em 2024. A euforia eleitoral poderá muito bem transformar-se em tristeza, desânimo, descontentamento, depressão e mal-estar, em apenas um ano. Certo é que Ventura nunca atirará a toalha ao chão. Poderá cair, mas multiplicará os esforços para voltar a subir.

Medalha atribuída a André Ventura: Medalha de Realização (Achievement Medal) • Concedida por desempenho notável.

  1. Pedro Nuno Santos não esteve nos seus melhores dias. Eventualmente, já teria conhecimento da denúncia apresentada ao Ministério Público sobre o património que detém. Ser rico em Portugal já é, por si só, estigmatizante; se a isso se juntar uma função política, o caldo fica ainda mais azedado. Mais uma denúncia. E mais outra. Será que um dia poderemos saber quantos denúncias por dia são recebidas pelas autoridades judiciais e policiais? Tanto que Pedro Nuno Santos criticou Luís Montenegro que agora entrou ele próprio no mesmo círculo do Inferno de Dante. Não havia necessidade. Este tipo de situações não favorece a imagem externa do nosso país. Tenho grande admiração pelo atual Procurador-Geral da República, Amadeu Guerra, (rapidamente escreverei sobre ele) que não receia investigar, ser o vértice da hierarquia, nem falar abertamente, e rapidamente saberemos aquilo que já é trivial na vida pública portuguesa: felizmente, existem pessoas ricas, com património próprio, que ainda aceitam desempenhar cargos públicos e políticos, mesmo estando sujeitos a uma contínua devassa promovida por delatores. Sim, delatores anónimos que não deveriam receber um minuto de atenção por parte da PGR, da PJ ou das outras autoridades policiais. Somos um país de delatores que agem frequentemente com o intuito de distorcer resultados eleitorais. Assim não vale!

Medalha atribuída a Pedro Nuno Santos: Medalha da Comenda (Commendation Medal) • Concedida por conduta exemplar.

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Aquilo que Belmira Rodrigues conta aconteceu há quase 50 anos, mas ao ouvi-la falar parece que foi ontem. As balas a entranharem-se nas paredes da casa, a proximidade do aeroporto e da base aérea de Luanda a ditarem o pânico no Bairro do Prenda, muito massacrado, a sorte de a sua mãe ter comprado as passagens de avião mal rebentara a guerra civil.

“Conseguimos trazer as nossas malas, com pouca roupa, e uma só com documentos. Mais nada”, lembra. “Estou a ver o meu pai a levar-nos ao aeroporto na carrinha do trabalho e a dizer: ‘Ó Maria, se eu soubesse, hoje ia também’, porque ele tinha decidido que ficava em Angola, não queria perder a casa, a serralharia, o táxi, mas os tiros metiam medo. Então a minha mãe, sempre previdente, mostrou-lhe os bilhetes que já comprara para todos e ele entregou as chaves ao seu funcionário, pedindo-lhe para tomar conta da nossa cadela.”

Belmira tinha 10 anos. Passaram-se entretanto quase 50, mas nunca esqueceu a fuga nem a sua infância em Luanda. “Lembro-me perfeitamente de tudo, tudo”, repete, a folhear os álbuns da família que guarda em casa, na Maia.

Família Castro Ferreira António e Margarida haviam de nascer e passar os primeiros anos de vida na Quitota, onde o pai era o médico nas minas. A povoação ficava no meio do mato e a quase 400 km de Luanda

Anabela, a sua irmã mais nova, então com 9 anos, prefere sonhar acordada com a moradia construída pelo pai, que chegara a Luanda ainda solteiro. “Tenho a casa na minha mente, toda pintada de verde-garrafa, com uma trepadeira à frente, nas traseiras uma mesa onde se faziam os petiscos com os amigos”, descreve. “E penso muitas vezes no nosso papagaio, o Jacó, e na Furita, a cadela que andava entre os dois quintais.”

Há uns tempos, um amigo que era seu vizinho no Prenda contou-lhe que estava tudo destruído, mas ainda assim Anabela gostaria de lá voltar. “Tenho muitas saudades de África. Um dia, se me sair a sorte grande, vou mesmo”, garante.

As saudades de Belmira são tão grandes que já lá foi várias vezes em sonhos. “É mesmo a dormir que vou até Luanda”, diz, séria. “Vagueio pela cidade, ando cá por baixo, pela baía… Sonho que estou em África, ainda a semana passada lá estive! Mas nunca vejo Luanda destruída, vejo-a linda conforme vivi. Tenho muitas saudades da minha terra, porque é a minha terra, nasci lá, sou de lá.”

Ao sonhar com um passado que já não existe, Belmira recusa a mudança, lembra a antropóloga Elsa Peralta. “Esse sonhar é uma negação e uma nostalgia, uma melancolia”, sublinha a especialista no tema do retorno.    “Há uma determinada projeção da ideia de África com a qual as pessoas sonham que tem que ver com os lugares onde estavam inseridas – muitas vezes, fora do contexto da guerra civil ou mesmo das populações locais. Numa entrevista que fiz a uma retornada que reside agora em Massamá, ela dizia-me: ‘Há aqui mais pretos do que havia em Luanda na altura’”, conta, “sendo que eles dizem ‘pretos’, ‘negros’ seria quase um insulto”.

Vale a pena lembrar que na década de 1950 Portugal decidiu que precisava de mais gente de pele branca para assinalar a soberania em Angola. Houve uma nova leva de pessoas, que se manteria apesar da Guerra Colonial, iniciada em 1961.

Manuel Santos Maia O artista nasceu em Nampula, no Norte de Moçambique, onde um seu avô chegara em 1939. Em Portugal, andou nos últimos 25 anos a trabalhar o alheamento dos portugueses face ao tema do retorno

“Temos, então, pessoas que saíram de zonas rurais, sem água canalizada, a descobrir um território em que o poder de compra era imenso”, conta a antropóloga. “A [escritora] Isabela Figueiredo conta [no seu livro Caderno de Memórias Coloniais] que o pai, que era eletricista, podia aspirar a uma posição social e a um bem-estar que nunca teria em Portugal, e ainda tinha imenso tempo livre e sempre bom tempo.”

Foi por essa altura que nasceram as aldeias-modelo (Cela, Limpopo, entre outras), com casinhas brancas iguais às da metrópole, habitadas por transmontanos e beirões, com uma catrefada de filhos, lembra ainda Elsa Peralta. “Qual era a única vantagem dessas pessoas [para o Estado português]? Terem a pele branca.”

A Guerra Colonial era lá longe e traria um boom económico. Há então um crescimento enorme das cidades e uma tremenda urbanização, à imagem do que também se passava em Moçambique, onde a guerra só começaria em 1964. “Aquilo era mesmo o sonho”, sublinha a investigadora. Um exemplo? Os funcionários públicos só podiam vir de quatro em quatro anos a Portugal, era a chamada licença graciosa, mas às vezes nem a usavam. “As pessoas tinham ido a comer couves e chouriço e, de repente, havia dinheiro a entrar-lhes nos bolsos. E, enquanto cá havia o trabalho infantil, lá os jovens podiam divertir-se.”

Sem haver o “parece mal”

O sonho de África hoje, 50 anos depois, é uma saudade desse bem-estar e de uma identidade que tem que ver com o estilo de vida, diz Elsa Peralta. “Estamos a falar de comunidades que não eram grandes e que eram relativamente integradas. Os convívios que se repetem cá são um reviver disso. Quando lhes pergunto que comida faziam, respondem: ‘Era como cá’, mas não era. Cá é que fazem as moambas, por razões nostálgicas.”

Margarida de Castro Ferreira não se encaixa no grupo dos que foram já adultos para África. Nasceu em Angola, fez-se jovem em Luanda e decidiu constituir família em Portugal. Aos 72 anos, tem a teoria de que existe um segredo mágico, sobretudo entre as pessoas da sua geração que cresceram em Luanda. “Foi um tempo irrepetível. Estavam lá os militares a aguentar aquilo para que pudéssemos ter uma vida normal. Não era uma vida de luxos e de festas, e era a vida de toda a gente: pretos, brancos, mulatos. Claro que havia uma discrepância, que vinha de trás, mas em Portugal era igual: os das Beiras também não entravam facilmente na universidade.”

Hoje, Margarida diz que tem muita sorte por ter vivido até aos 20 anos em Angola, pelo ambiente de liberdade. Uma vez contou aos seus filhos que era como estar sempre de férias no Algarve. “Imaginem o que seria viver isto o ano todo: nunca ter frio na rua, poder usar calções sem haver o ‘parece mal’”, instigou. “Há uns dias, vi uma fotografia dos anos 60, em que os meus pais e uns amigos estão numa varanda, a beber um whisky e a comer ginguba [amendoins], a fazer sala em fato de banho. Cá em Portugal isso seria impossível na altura. Quando a minha mãe ia de férias a Mirandela e tomava banho no rio, as pessoas ficavam a ver e as tias a comentar.”

Sempre que não consegue adormecer, Margarida refaz mentalmente o caminho de carro até à praia em Luanda. Vai por ali fora, pelo caminho que conhece bem, bonito e bom de fazer ao volante. Por alguma razão (a familiaridade, a beleza da paisagem imaginada?), acalma-a.

Para lá do fim do mundo

“Claro que existe uma nostalgia, mas não há uma tristeza porque demos a volta. Para os nossos pais, que vieram já com uns 50 anos, foi mais difícil, mas acabaram por ultrapassar. Teve de ser. N’O Retorno, a Dulce Maria Cardoso insiste na ideia de que fomos maltratados. Eu tenho é muita pena dos que lá ficaram sem nada, porque nós tínhamos cá uma estrutura à nossa espera e até subsídios. As pessoas têm muitas saudades, sonham com África e têm um desgosto enorme de como foi feita a descolonização – com uma certa razão. Mas não podem ficar naquela ladainha nhan, nhan, nhan.”

Eileen Salvação Barreto ri-se quando lhe contamos o “nhan, nhan, nhan” da sua amiga de juventude: “Os meus bisavós maternos foram para Angola com os filhos, no início do século XX. Quando tivemos de vir todos para Portugal, o meu pai, que tinha lá uma grande transportadora, sofreu um enfarte. Mais tarde, pintava paisagens africanas de memória… O pior foi o recomeçar dos meus pais.”

Até 2009, ano em que voltou para Luanda, porque o marido fundou lá o Jornal da Saúde, sentia, por isso, mágoa. “Não havia como dar a volta, mas nunca me passou pela cabeça que nós, que nascemos lá, fôssemos corridos. A família inteira. Por isso, tinha aquela magoazinha que o tempo acaba por colmatar”, admite.

Depois de estalar a guerra civil, Eileen ainda tentou manter-se no território o maior tempo possível. Foi para Lisboa em março de 1975, mas, mal soube da “ponte aérea”, ofereceu-se como intérprete e andou naquele vaivém, como voluntária, até no penúltimo voo intercetarem o seu passaporte que a dava como “nascida em Angola”. Safou-se de ser mobilizada para a luta armada graças à intervenção do comandante da Swissair que decretou ser ela absolutamente indispensável naquele avião.

Aida Gomes A escritora, agora fixada no Porto, só conheceu a mãe em adulta, numa viagem que fez de propósito a Angola. Durante a infância, a figura materna mais próxima era a mulher do padrinho (foto em baixo à direita)

“Em 2016, quando regressei daquela experiência com o meu marido, limpei Angola do mapa. É uma força de expressão”, sublinha. “Continuo interessada, mas nem que me oferecessem um salário de dez mil dólares eu voltava. Não consigo estar numa terra onde há muito dinheiro mas a pobreza é extrema.”

A sua amiga Margarida gostaria muito de voltar a Luanda, mas acha que morreria no momento. “Se for algum dia, fico esbarrondada no chão e já não me levanto, porque já não tenho a possibilidade de passar por esquinas que têm histórias minhas. Não posso passar por um sítio e dizer: ‘Foi aqui que parti a cabeça.’”

Uma das primeiras coisas que Margarida de Castro Ferreira nos conta é que nasceu “no meio do mato”, na Quitota, uma povoação que servia de apoio à mina de manganês da zona. Em quilómetros, está situada a 200 da cidade mais próxima, Malanje, que por sua vez dista quase 400 de Luanda, o que na época das chuvas, a correr bem, eram três dias de viagem. Em dezembro de 1952, a Quitota ficava para lá do fim do mundo.

Pouco depois, Margarida há de contar que só concluiu ser angolana e também portuguesa há uns 20 anos. “Sou uma angolana-portuguesa, percebi isso quando fiz a tese de licenciatura em Antropologia sobre o reencontro dos antigos alunos do Liceu Salvador Correia e redescobri a minha ‘africanidade’. Os meus filhos já eram crescidos, mas o chamamento da terra em si é fortíssimo”, tem agora a certeza.

O bâmbi da família

Na Quitota, António Maria de Castro Ferreira era o médico da mina, cargo que desempenhava a par da campanha de vacinação e da luta contra a doença do sono em Angola. Nas suas inúmeras idas e vindas, podia ter de passar uma hora na picada à espera que uma pacaça saísse da frente do carro. Margarida era demasiado pequena para saber dessas andanças do pai ou para se aperceber do privilégio que era ter um espaço infindo para brincar e poder comer funge à mão.

Mais tarde, após uma curta passagem por Lisboa para se especializar em Medicina Tropical e em Pediatria, António haveria de dirigir o Preventório Infantil, em Luanda, onde cuidava que os filhos dos tuberculosos não ficassem sozinhos e fossem às aulas. Mas, no início dos anos 50, decidira que a Quitota era uma boa base para começar a sua própria família.

E era. “A minha mãe sempre odiou viver em África, mas sobretudo em Luanda, porque a Quitota era um sítio diferente”, lembra Margarida. “Luanda estava cheia de ‘donas Marias’, como ela dizia, mulheres sem instrução que chegavam a África e se achavam importantes. Na Quitota, nós vivíamos no mato e tínhamos vários animais, até um bâmbi lindo.”

Manuel S. Fonseca O escritor e editor tinha 5 anos quando chegou a Luanda e descobriu a eletricidade. De início, foi viver para um musseque, onde era um dos poucos brancos

As fotografias que os Castro Ferreira guardaram em álbuns da época e em envelopes trazem até 2025 uma Maria da Luz a alimentar o bâmbi adotado pela família, sempre muito chique apesar do chão de terra batida. Já estreara o filme da Disney, o bicho não poderia ter outro o nome e era a estrela da casa.

“Nesta sou eu também com o Bambi… Neste grupo vê-se o diretor da mina a mostrar-nos um chimpanzé bebé… E cá está a leoa de que lhes falou o meu irmão António… Ele a fazer ski aquático em Luanda… E esta sou outra vez eu…” Estamos na sala de jantar de Margarida, em Lisboa, numa tarde de primavera, a continuar a entrevista que arrancara ao telefone. Álbuns abertos em cima da mesa, as fotografias a desatarem memórias, a acrescentarem detalhes aos episódios já narrados. “Só não sei por que razão a minha mãe está armada, ao lado da leoa…”

A Quitota era mesmo no meio do mato, onde havia muitos leões. Não consta que Maria da Luz caçasse, mas existe pelo menos uma fotografia em que posa com uma arma de caça.

Tinha sido num café na Avenida de Roma, em Lisboa, ao virar da esquina da sede do INEM onde trabalhou anos a fio, que António nos contara o episódio da leoa. A chuva a cair miudinha na calçada portuguesa e nós a imaginarmos um final de tarde de calor e susto em África: “Uma leoa entrou na varanda, levando o nosso cão de rojo. Os homens montaram então uma armadilha, com um cãozito a ganir em cima de uma árvore e um buraco em baixo.”

“Tiraram-me da minha terra”

Aos 74 anos, António filho tem uma excelente memória e recordações vívidas dos seus tempos em Angola, passados num toca-e-foge constante por causa das suas más notas e dos consequentes internatos em colégios na metrópole. A seguir aos ataques de 4 de fevereiro de 1961, que marcaram o início da luta anticolonial, lembra-se de ficar de plantão algumas noites, embora ainda fosse um miúdo, porque o pai precisava de dormir para conseguir trabalhar no dia seguinte.

Em abril de 1975, há exatamente 50 anos, começou a pensar em sair de Luanda quando já tinha de ir de gatas do carro para o prédio onde estava a morar, ao pé de um musseque. Passara cinco anos na Força Aérea, mas na manhã em que viu a varanda dos vizinhos marcada por uma rajada de metralhadora, decidiu que estava na altura de vir para Lisboa.

Só regressaria a Angola em 2011, em trabalho, e diz que não volta a fazê-lo. De todos os entrevistados para este artigo, ele é, aliás, o único que garante “nunca mais”, nem sequer em sonhos. “Tenho uma marca que não sai daqui. Tiraram-me da minha terra. Mas não sonho, de todo. Desliguei. Fechei a porta, acabou. Claro que tenho saudades de andar de barco à vela, a caminho do Mussulo [uma península formada por bancos de areia, linda], o barulho do vento e do mar a bater no casco, e das minhas ricas praias vazias. Nunca me habituei à falta de espaço cá, andamos todos a empurrar-nos, enquanto o espaço aberto de África é… o espaço aberto. Mas já não tenho ligação nenhuma a Angola.”

Nos 50 anos da “ponte aérea”

O primeiro avião foi fretado em maio de 1975 e, só entre agosto e novembro, seriam evacuadas de Angola quase 174 mil pessoas

A guerra civil em Angola começou nem dois meses depois do Acordo do Alvor, assinado a 15 de janeiro de 1975 entre o governo português e os principais movimentos de libertação. De início, as pessoas ficaram a ver o que ia acontecer, muitas acabando por sair já sob fogo cruzado.

O primeiro avião foi fretado a 13 de maio, mas só em agosto abriu uma delegação do IARN (Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais) em Luanda e um terminal aéreo em Nova Lisboa (hoje, Huambo) para coordenar a saída massiva rumo a Portugal. De agosto a novembro de 1975, seriam retirados do território 173 982 portugueses a que os jornalistas chamavam então de refugiados.

Durante esses meses, reinou o caos absoluto na Portela, com famílias inteiras a dormir no chão. “Um inferno chamado aeroporto”, trazia na primeira página o recém-criado jornal O Retornado, a 24 de outubro. As pessoas chegavam a Lisboa com pouco mais do que a roupa que traziam vestida. As malas maiores e os contentores enviados de barco para Portugal haveriam de ficar empilhados meses a fio junto ao Padrão dos Descobrimentos, à espera que os seus donos fossem buscá-los.

A partir de 10 de setembro, a “ponte aérea” entre Angola e Portugal intensificou-se quando “aviões portugueses, americanos, suíços, ingleses, franceses, alemães (R.F.A.), começaram a operar conjuntamente na evacuação de refugiados”, lê-se no Diário de Lisboa. Aterrar em Luanda não era pera doce – na aproximação à pista, os pilotos tinham de reduzir as luzese o ruído ao mínimo, para não chamar a atenção dos atiradores que cercavam o aeroporto.

A operação terminaria oficialmente a 31 de outubro, mas iria prolongar-se até 3 de novembro, apenas oito dias antes da proclamação de independência do território, a 11 de novembro.

Há duas décadas que a antropóloga Elsa Peralta se dedica a estudar o chamado retorno de África, um tema com o qual não tem nenhuma relação pessoal e que sabe ser ainda “ideologicamente carregado”. Enquanto os que tiveram de sair de Angola e Moçambique se queixaram de ter sido expulsos das suas terras e espoliados dos seus bens, os que os receberam na antiga metrópole chamaram-lhes invariavelmente colonos, exploradores, racistas. O tempo não se encarregou de polir as arestas, de mostrar que poucas coisas na vida são a preto e branco?

“A cantiga cantada quer no Estado Novo quer no pós-25 de Abril nunca permitiu que os próprios [colonos] pensassem qual foi o seu papel em África – é esse o meu pensamento académico e político”, diz a antropóloga. “Parte do seu trauma tem que ver com essa dissociação, e vão morrer sem perceberem, sem terem esse assunto resolvido.”

A investigadora começou por escavar o arquivo do IARN (Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais) e nunca mais parou de regressar a este passado, também ouvindo os seus protagonistas. Está atualmente a fazer trabalho de campo no Vale da Amoreira, no concelho da Moita, num bairro onde, entre 1975 e 1985, houve uma ocupação de cerca de cinco mil retornados, brancos e mestiços. Muitos nunca de lá quiseram sair.

Os contentores em Belém

“Quem lá mora agora são os que continuam com carências ou os que sentem que mantêm ali o seu sonho de África. ‘Eu estou onde quero estar’, dizem-me várias vezes. As pessoas conhecem-se, há convívios, é uma coisa identitária. Por exemplo, o Ti Caiano, um homem branquinho, de olhos bem claros, com uns 70 anos, vive metade do ano no Cazenga, em Luanda.”

Em 2015, Elsa Peralta comissariou uma exposição para assinalar os 40 anos do momento em que chegaram milhares de portugueses à antiga metrópole na sequência da descolonização em África. O movimento, massivo, conheceu o seu auge com a ponte aérea de 1975 que no pico teve sete mil pessoas a chegar por dia de Luanda (Ver caixa). No total, as estimativas apontam para a chegada de um milhão de pessoas.

Retornar – Traços da Memória estaria quatro meses na Galeria Avenida da Índia, em Belém, mas o roteiro começava no vizinho Padrão dos Descobrimentos, onde impressionava uma grande instalação criada a partir de uma fotografia tirada por Alfredo Cunha, naquele mesmo sítio, às pilhas de malas e de contentores que ali ficaram muito tempo à espera de ser reclamados pelos seus donos.

Para os lisboetas de então, foi essa a imagem que perdurou na sua memória como sinónimo de retornados, porque os seus pertences enviados de navio para Portugal estiveram em Belém durante meses (anos, no caso do edifício hoje sede da Orquestra Metropolitana de Lisboa). “Era a ruína do império ali na forma de caixotes”, observa hoje a antropóloga.

Margarida Cardoso Quando moravam numa casa mais isolada no Macuti, onde há um farol emblemático, o pai, piloto militar, deixava sempre uma pistola com a mãe, antes de se ausentar. Moçambique não foi sempre uma pera doce

Para retornados como Paula Bizarro, nascida em Luanda, em 1952, essa fotografia de Alfredo Cunha remete para o dia em que foi passear a Belém com o marido e reconheceu uma toalha de mesa bordada a espreitar de um malão meio desconjuntado. Paula e a maioria da sua família tinham viajado de barco para Lisboa em setembro de 1975. O marido ficara mais um mês em Angola, acabando por ter de ser ele a fazer as malas.

“Na pressa, enfiou umas coisas à sua maneira”, acha graça Paula. “Fotografias de criança? Não tenho. Recordações? Nada! Mas lá vieram as toalhas e as colchas boas.”

Já escrevemos várias vezes “retornados”, uma palavra que há 50 anos era, no mínimo, um rótulo que nem sequer retratava a realidade de todos porque muitos eram de segunda ou mesmo de terceira geração. “Era um estigma, porque eles eram apontados como colonialistas”, lembra Elsa Peralta.

No início da “ponte aérea” de Luanda, os jornalistas escreviam “refugiados”, mas o nome “retornado” ganharia força legal, até por causa da necessidade de atribuir apoios de vária ordem. Dulce Maria Cardoso havia de lhes chamar “desterrados”, na dedicatória de O Retorno (ed. Tinta-da-China, 2011), um romance em parte autobiográfico que começa pelas cerejas da metrópole e termina com uma citação da poetisa cubana Dulce María Loynaz: “Las cosas que se mueren / no se deben tocar.”

Sem tempo para fazer o luto

Hoje, apetece escrever que eles se refugiam no sonho – e não estaremos assim tão longe da realidade, em muitos casos. Não em todos porque esta não é uma comunidade, é uma população, feita de indivíduos com vivências diferentes, até na maneira como geriram o luto de terem de sair de África (Ver entrevista à psicóloga Ana Sotto-Mayor).

A verdade é que existe uma grande diversidade entre os retornados. Mas há sobretudo uma grande diferença entre os que vieram de Moçambique e os que vieram de Angola. “Os de Moçambique passaram pelo 7 de setembro de 1974, a tentativa de golpe, no dia em que foi assinado o acordo para entregar o território à Frelimo, por perseguições, mas saíram de lá porque não se identificavam com o regime”, observa a antropóloga. “Não saíram porque estavam sob fogo cruzado, como em Angola. Estes não tiveram tempo para fazer o luto. Foi de repente, a sua saída precipitou-se.”

Paula Bizarro acabou por sair de Luanda para ter a primeira filha em Lisboa. Sofia nasceu a 31 de outubro de 1975 e, a partir daí, tornou-se a sua prioridade. Hoje, quando pensa no passado, Paula não vê dor nem drama. “A necessidade de sobrevivência era maior do que tudo o resto. Em parte, sair até foi bom para mim e para o meu marido – não para os meus pais, mas isso já foi algo que elaborei mais tarde”, admite.

O plano era ter a sua filha e terminar o curso de Medicina. Cumpriu-o e nunca mais olhou para trás porque, um ano depois, estava a caminho do Brasil. Se achou Lisboa mais fechada do que Luanda, S. Paulo era um mundo novo. “Tínhamos uma unidade de recém-nascidos e prematuros que não existia em Portugal, havia tanta coisa para eu aprender… Não fiquei nostálgica.”

Belmira e Anabela Rodrigues As duas manas gostavam muito de um dia voltar a Luanda. Enquanto isso não acontece, Belmira vai com frequência à sua terra – em sonhos

Cinquenta anos, quase 20 deles passados em S. Paulo, chegam e sobram para uma pessoa pensar na vida e fazer as contas ao deve e haver. O resultado é positivo, percebe-se ao ouvir a pediatra, de 72 anos. “O que perdi era deles, não era meu. Sinto mais saudade agora, porque no Brasil a vida era muito igual a Angola, com calor e muita praia.”

Paula não é de olhar para trás, percebe-se também quando tenta – e não consegue – descrever um bombardeamento no hospital de Luanda onde fazia o internato, pouco tempo antes de vir para Lisboa. Só se lembra vagamente, tem alguns flashes, talvez seja uma defesa. “Para sobrevivermos a tudo na nossa vida, vamos guardando lá atrás, numa caixinha, não podemos pensar nisso no dia a dia.”

Desde que chegou a Portugal, de vez em quando tira algumas coisas dessa caixinha, porque reencontrou os seus amigos de juventude. Voltou a Luanda, em trabalho, e diz que já viu tudo o que queria ver de África.

Zanga em relação à descolonização não tem. Já a sua amiga Margarida de Castro Ferreira diz que já fez a volta completa. “Estou a entrar na fase em que penso que não deveria ter havido independência. Por que razão aqueles territórios não poderiam ter autonomia, mas com administração do lado de cá e eles continuavam todos portugueses? Genocídio foi o que aconteceu em Angola em 1975. Sinto uma dor enorme pelo que aquela gente sofreu.”

“Estávamos à frente de tudo”

As coisas não correram tão bem como poderiam, concorda o editor e escritor Manuel S. Fonseca, autor de Crónica de África (ed. Guerra & Paz, 2023), em que conta os seus anos de Angola, entre 1959 e 1976. “Quando penso nos dias da independência, não era aquilo que Angola merecia, mas lembro-me disso com uma sensação de orgulho – aquelas pessoas ganharam dignidade, esse é um ponto que não tem discussão. Ter a sua independência, com identidade própria, acho absolutamente essencial.”

Manuel chegou a Luanda aos 5 anos, à boleia de um pai camponês que procurava uma vida melhor. Saiu pela primeira vez de Vale de Madeira, na Beira Alta, descobriu o mar a sério e a eletricidade. Foi viver para um musseque, numa casa de cimento com luz e água corrente, onde pertencia à minoria dos brancos. Fez a primária nuns padres capuchinhos, “para pobres”, sendo novamente um dos raros brancos.

Na adolescência, a família já se mudara para a Vila Alice, onde deixou de ser uma minoria, mas tinha muitas amizades com negros e mestiços. “Havia uma miscigenação real. Não era uma sociedade racista”, há de repetir.

África deles

Quatro livros autobiográficos, mesmo que não inteiramente assumidos como tal

“OS PRETOS DE POUSAFLORES”
Filha de mãe angolana, Aida Gomes ficciona a sua chegada a uma aldeia no interior de Portugal, em 1975, expondo o racismo estrutural da sociedade portuguesa de então (Dom Quixote, 2011)

“CRÓNICA DE ÁFRICA”
Como era a infância, como foi a adolescência nos trópicos? Manuel S. Fonseca leva-nos numa viagem por Luanda e por Angola, de 1959 a 1976 (Guerra & Paz, 2023)

“O RETORNO”
“Mas na metrópole há cerejas. Cerejas grandes e luzidias que as raparigas põem nas orelhas a fazer de brincos”, começa assim este romance de Dulce Maria Cardoso, vinda de Angola como Rui e a família (Tinta-da-China, 2011)

“CADERNO DE MEMÓRIAS COLONIAIS”
Isabela Figueiredo relata a história de uma menina a caminho da adolescência, no final do Império colonial em Moçambique, onde ela viveu. “Venham falar-me do colonialismo suavezinho dos portugueses… Venham contar-me a história da carochinha”, diz a narradora (Editorial Caminho, 2015)

Era, ainda assim, uma sociedade injusta, percebeu aos 15 anos, quando começou a interessar-se pela política. Em 1973, decidiu estudar Direito em Portugal. Depois do 25 de Abril, regressou a Angola, ligou-se ao MPLA e assim ficou até ao final de 1976 (estava em França, apanhou “ao contrário” um avião que andava a fazer a “ponte aérea”).

Quase 50 anos depois de ter saído de vez de Luanda, Manuel recorda uma sociedade com um ritmo de desenvolvimento incrível. “Tínhamos a sensação de que estávamos sempre à frente em tudo”, recorda. Tanto assim, que foi um choque a chegada dos elementos dos movimentos de libertação que haviam saído na década de 50 ou logo após 1961. “Eles não tinham noção de como Angola evoluíra. Eram quase reacionários e vinham de uma luta armada, alguns vinham mesmo do mato.”

Hoje, aos 71 anos, Manuel confessa ter “mesmo” nostalgia. “Ela é muito simples e clara. É produtiva, ajuda-me e faz parte da minha vida.” Podem parecer coisas pequenas, mas… “Por exemplo, todos os dias me lembro de como é que eu lia: na mangueira do meu quintal, uma árvore pujante, de bons ramos. É uma gratidão que tenho – vivia num país com um clima que permite isso. E quando vou medir a tensão arterial, penso que estou a andar de caiaque nos mangais.”

Manuel S. Fonseca andou por Luanda, depois França, depois novamente Luanda nos primeiros anos em que os retornados chegaram a Portugal. A sua luta era a luta do povo angolano, não a dos portugueses que tinham sido obrigados a deixar as antigas províncias ultramarinas.

“Foi preciso alojá-los, houve dinheiro que entrou para o País não se transformar numa Cuba”, lembra Elsa Peralta. “Apanharam um susto, mas tiraram-nos de lá e houve apoios, empréstimos a fundo perdido, um dinheiro valente posto na sua integração. Esse foi o principal fator que fez com que o seu regresso massivo não se tornasse uma tragédia. Não eram pied-noirs, não eram aliens, nem ficaram sem comer nem sem teto. Em finais de 1977, já estavam integrados.”

Mal recebidos pela família

Houve nessa altura uma profunda transformação de Portugal, uma grande mudança das mentalidades, porque eles vinham de uma sociedade mais modernizada. Mas eram apontados a dedo. “Quando eu era pequena, a minha mãe dizia-me na rua: ‘Aquele é retornado’”, recorda a antropóloga. “Não houve um silenciamento, mas houve um silêncio de todos e a razão era estrutural. ‘Perdemos’, foi uma humilhação nacional.”

Não admira que Anabela e Belmira Rodrigues sonhem com o passado, em Luanda. Em Portugal, o percurso de ambas foi de muito trabalho, desde cedo. O pai conseguiria mandar vir o táxi, mas o que ganhava não chegava para o sustento de todos. E, em Alijó, aonde rumaram de início, as miúdas foram mal recebidas pela família.

Nada que se compare com aquilo que sucedeu a Aida Gomes, que chegou a uma aldeia do Interior do País com o duplo estigma de ser retornada e filha de uma angolana. Ao ouvi-la, conclui-se rapidamente que o seu romance Os Pretos de Pousaflores (ed. Dom Quixote, 2011), além de ser o primeiro que pega no tema dos retornados do ponto de vista de uma “meia-africana”, como ela se apresenta, fica a léguas do sofrimento real de Aida criança acolhida por uma tia racista.

Paula Bizarro O facto de ter rumado ao Brasil ao fim de um ano de “retornada” em Portugal poupou-a à mágoa. “S. Paulo era um mundo novo e interessante. Não fiquei nostálgica”

O seu pai era um pé-descalço de Chão de Couce, uma povoação do município de Ansião, que chegou a Angola e, numa aldeia no meio do mato, tomou uma filha adolescente do soba local como lavadeira. Aida nasceu dessa união e tinha 14 meses quando Joaquim decidiu que a rapariga, por ser muito nova, não era uma boa mãe para a sua filha. Ficou então ele a cuidar da menina, acabando por trazê-la para Portugal, em 1975.

“O teu pai devia ser fuzilado, como é que ele foi fazer uma filha a uma negra e ainda a traz para cá? Como é que eu vou agora cuidar de uma pretinha?”, perguntava-lhe a tia Ercília, além de outros mimos do género.

No seu romance, Aida expõe o racismo estrutural e a tacanhez de horizontes no Interior do País nos anos 70 e 80. Mas não pôs essa sua tia “tão mazinha”, porque acredita no karma. “A vida fez contas com ela: esteve 15 anos com Alzheimer, num canto da sala.”

Quando percebeu que se ficasse na aldeia só via o seu futuro como senhora da limpeza ou prostituta, saiu de Portugal aos 17 anos, para ser au pair na Holanda, onde estudou Sociologia. Só regressaria quase 30 anos depois e, até decidir assentar arraiais perto do Porto, onde recebe turistas num moinho, trabalhou em vários países africanos (Angola, claro, e também Moçambique, Guiné-Bissau, Libéria e Sudão), em missões de paz da ONU e em projetos comunitários com jovens.

Uma pistola em Macuti

Tanto mundo deu-lhe para perceber, ao regressar, que hoje há um racismo importante na sociedade portuguesa que é o lugar social da pessoa. Mas não a atinge diretamente. “Tive sorte porque trabalhei na ONU, juntei dinheiro, sou autónoma.”

Neste momento, Aida está a remodelar uma ruína no Alentejo e é doutoranda em História da Literatura numa universidade brasileira. Nunca vai verdadeiramente parar, aposta-se. O seu início de vida transformou-a numa nómada.

Margarida Cardoso também tem sido uma nómada, como se vai ver.

Tinha 2 anos quando foi com a mãe e a sua irmã para a Cidade da Beira, porque o pai era piloto militar e fora mandado para a base da Beira, que abastecia todas as bases do Norte do território. Ele vinha de famílias humildes, de verdadeiros lisboetas de Alfama, e só despertaria para a política com a chegada dos milicianos a Moçambique.

A vida dos Cardoso não era igual à da maioria dos portugueses que tinham ido para Moçambique. “A minha mãe não tinha empregados porque não queria, não íamos à messe [dos oficiais] porque não aguentávamos e, quando começou a guerra, o meu pai não queria transportar pessoas estropiadas.”

Nos últimos 50 anos, Margarida e o pai foram os únicos que se interessaram pelo passado. A irmã mais velha não quis saber, a mãe também não. O marido tinha de a deixar sozinha com as miúdas – e uma pistola –, numa pequena vivenda modernista em Macuti, nos arredores da Beira onde há um farol emblemático. “Não tinha graça nenhuma.”

Eileen Salvação Barreto “Nunca me passou pela cabeça que nós, que nascemos lá, fôssemos corridos. Por isso, tinha aquela magoazinha que o tempo acaba por colmatar”

No 25 de Abril, lembra-se de a mãe dizer-lhe: “É o dia mais feliz das nossas vidas.” Ainda ficaram bastante tempo, ainda viram a cidade esvaziar-se. Na altura, moravam mesmo no centro, num prédio militar onde nos meses anteriores tinha havido uma viúva nova todos os dias.

No regresso a Portugal, em 1975, Margarida ficou em casa de uns primos em Almeirim e quando o pai foi para a base de Tancos, instalaram-se todos no Entroncamento, até a filha mais velha entrar na universidade, em Lisboa.

A realizadora voltaria a África através de vários filmes e documentários, como Natal 71 (sobre um disco do Movimento Nacional Feminino, em que o seu pai é um dos protagonistas), A Costa dos Murmúrios (baseado no romance homónimo de Lídia Jorge) e, mais recentemente, Banzo (passado em S. Tomé, em 1907).

Trabalhou como técnica de cinema durante 16 anos, viveu em França e, quando começou a fazer filmes, sentiu a necessidade de temáticas do seu passado. Em 1999, no documentário Natal 71, mistura a ideia do disco com a dureza da guerra e o que era dito e não dito, graças à propaganda portuguesa. Apercebeu-se, então, da expectativa das pessoas: “Agora, ela vai dizer toda a verdade!” Mas isso não era possível, já sabia.

Hoje, aos 61 anos, Margarida debate-se com a dificuldade de falar na hipótese de sonhar África e com a necessidade de medir bem as palavras. “As coisas agora põem-se no campo da legitimidade de alguém poder ou não falar”, nota, assim como notou, durante os recentes debates após as apresentações de Banzo, o “muito atrito” entre as pessoas.

Nesse filme, as pessoas escravizadas não falam. “O meu ponto de vista é do lado dos brancos, do poder, e se elas não falam é porque eu não quis. Mas sinto que devo deixar espaço aos outros, que tenho de ter cuidado para não ocupar o espaço todo, para que quem foi colonizado possa falar. E acredito que cada um de nós deve trabalhar na descolonização da mente e ver como pode comunicar e abrir pontes.”

Margarida voltaria várias vezes fisicamente a Moçambique, por exemplo, quando trabalhou com a realizadora Solveig Nordlund no seu filme A Comédia Infantil (1998). Mas não se esquece da primeira vez. “A guerra tinha terminado há uns dois anos, deixando tudo muito destruído. Não me pareceu ser o mesmo lugar emocional, portanto vivi o regresso bem, embora fosse um sítio muito duro.”

Entretanto, permaneceu lá seis meses, por causa de um outro filme, e dessa vez teve tempo de ganhar uma nova relação com o território e de fazer amizades com muita gente. “A relação que tenho agora com África é essa e toda a nostalgia desapareceu, passou a ser um novo território, e ainda bem. Estar agarrado ao passado como um trauma… percebo, porque são coisas que não estão resolvidas. No meu caso e no da minha família, como ninguém queria ali estar, foi bom voltar a Portugal.”

Da primeira vez que esteve na Beira, já adulta, conseguiu descobrir a casa onde tinha vivido. Andava ali a rondar quando foi apanhada em flagrante por uma mulher, à janela, e então lá explicou que morara ali quando era pequena.

A avó falava no presente

“A senhora ficou maravilhada e depois desatou a gritar: ‘Chegou a filha da Dona Amélia!’ A minha mãe não se chama Amélia, mas achei que ia ser rápido, não corrigi. Estive uma hora e meia a responder a dez mil perguntas, a sofrer e a pensar: ‘Bem feito, isto é um sinal para que não vás atrás de revisitações. Eu parei com todos os saudosismos, mas nada contra quanto a essa necessidade.”

Manuel Santos Maia também está numa fase pós-memória.

O artista, que nasceu em Nampula, em 1970, e saiu de lá em 1976, regressou uma vez à sua terra natal, mas não tem parado de voltar através das suas obras. Até ao Domingo de Páscoa ainda é possível visitar Nampula Macua Socialismo, a exposição com que encerra os 25 anos de investigação em torno da história da sua família na relação com Moçambique e as culturas africanas.

Manuel era ainda estudante de Artes Plásticas, no Porto, quando arrancou com o projeto alheava, referência ao alheamento que os portugueses mostravam em relação ao tema do retorno. “A minha avó era a única pessoa que me falava sobre Moçambique e sempre no presente. África nunca tinha saído dela e se Moçambique esteve em mim desde que de lá saí, foi porque a minha avó ia alimentando essa presença”, diz.

Quando ela morreu, o artista decidiu trazer luz para o passado coletivo em comum da sociedade moçambicana e dos portugueses vindos de África, através de objetos da sua memorabilia familiar, fotografias e filmes recolhidos junto dos Santos Maia, que foi mostrando em exposições, performances e publicações. A sua família era o ponto de partida, mas a ideia era de um “nós, Portugal”, sublinha.

Manuel nasceu na terra aonde o seu avô Constantino chegou em 1939, vindo da Figueira da Foz com uma carta de chamada. Já casado e com dois filhos, Constantino Maia aportou primeiro em Lourenço Marques e logo subiu para a região de Nampula. Três ou quatro anos mais tarde, mandou chamar a família e por ali ficou a construir por toda a província.

As cidades estavam todas a crescer, a urbanizar-se. E, mesmo sem o canudo de arquiteto, Constantino projetava e construía casas e prédios modernistas que o seu filho fotografava. António também fazia filmes Super 8 que Manuel haveria de montar depois de o entrevistar longamente, para saber mais sobre a vivência dos Santos Maia em Moçambique.

Em 1976, Manuel e o seu irmão gémeo, António, chegaram a Portugal com a mãe e a irmã mais nova, Anabela. A mais velha, Manuela, tinha ido à frente, com a avó. O pai ficaria até 1983. Os dois miúdos, então com 6 anos, não foram aceites na 1ª classe porque falavam metade macua e metade português.

Quase 50 anos depois, Manuel Santos Maia compara deixar um país em guerra civil com abandonar uma família que está em autodestruição, mas sente-se num momento de pós-memória. “Se todos os que nasceram ou passaram por Moçambique soubessem o fulgor deste novo país, não estavam presos ao passado, estavam orgulhosos do presente.”

Ana Sotto-Mayor

“Foi como se lhes morresse alguém”

A psicóloga analisou o luto no retorno dos portugueses das ex-colónias africanas, com base no jornal O Retornado, que existiu entre 1975 e 1980

Ao abordar O Retornado como uma voz, o que encontrou?
O jornal era referenciado como tendo ideias de direita, mas não deixava de veicular emoções e vivências de um grupo amplo. De alguma maneira, funcionava como um órgão agregador, no sentido da identidade. Discutia, reivindicava, dizia mal das entidades. Tentava fazer branqueamento com o que se passara com os indígenas. E, quando começou a integração, em que se dá a assunção da perda, deixou de ter alimento.

Hoje é unânime que a integração dos portugueses das ex-colónias africanas correu bem.
Foi criada uma rede de apoio boa, nomeadamente entre eles, numa situação política muito confusa, que ajudou a que corresse bem, embora com sofrimento. Agora já se fala nisso de uma forma mais tranquila, mas muitos retornados saíram de África já numa idade então considerava avançada, tendo perdido tudo o que haviam construído.

E chegaram à antiga metrópole com o rótulo de exploradores e racistas.
O Fernando Dacosta põe a questão muito bem porque fala deles como bode-expiatório do nosso colonialismo e do nosso racismo [na reportagem Os Retornados Estão a Mudar Portugal, publicada n’O Jornal, em 1983, e mais tarde em livro]. Mas também mostra como foram uma força transformadora num país que era muito conservador, ainda a sair da mentalidade do Estado Novo, em que elas usavam minissaia e nós olhávamos com desconfiança. Foi uma população que alterou a nossa geografia, trouxe novos costumes e abriu a hipótese de entendimento das culturas africanas.

A sociedade acolheu-os bem?
Pelo jornal, o que encontramos em comum é o sentimento de injustiça de terem sido abandonados, desprezados e mal aceites pela sociedade de acolhimento. E eles nem gostavam dela. Tinham saído de Portugal porque queriam outras coisas. Eram corajosos, saíram e foram obrigados a voltar e sem nada. Há uma zanga da maioria por ter regressado a um país frio, pobre, pequenino, chato.

Houve sempre perda e sofrimento?
Depende. Muitas pessoas sentiram que perderam a maioria dos seus recursos – e falo também dos recursos pessoais de recomeçar e realizar o sonho que tinham de alcançar uma melhor qualidade de vida. Em Portugal, não encontraram a capacidade de realizar que os países africanos tinham permitido, e para esses e as suas famílias foi uma perda profunda. Mas, para alguns, foi uma oportunidade de encontrar uma nova forma de estar.

Todos passaram pela fase da idealização?
A idealização é porque desapareceu tudo das suas vidas. Eles vieram sem nada, vazios, e a idealização permite repor o objeto só bom. Porque ele ao ser bom, nós também somos bons. Quando uma pessoa tem de aceitar uma perda, idealiza. Há um lembrar as coisas boas como uma forma de manter o que foi perdido. A idealização pode continuar como referência ao objeto perdido: neste caso, a África como um território com um potencial imenso, a ligação a uma terra, a várias culturas. E só à medida que aceitamos que aquilo que perdemos não está na nossa vida é que pensamos que não era tão bom assim. Começa-se a ver mais realisticamente essa perda e a perceber que os recursos [pessoais] não se perderam.

Os sentimentos foram mudando?
Ao longo do tempo, houve perda, desespero, atribuição de culpa a terceiros, humilhação, traição… e triunfo. Tão depressa se diziam vítimas como mostravam que eram bons, houve essa duplicidade. E houve um desejo de integração e, ao mesmo tempo, de vingança.

Cinquenta anos depois, a verdade é que ainda há quem sonhe que está em África.
Os retornados sonharem é uma forma de voltarem à vivência que tinham. Já não estão lá, mas ela está neles. Tem que ver com a identidade, de se perder uma parte da identidade. Foi como se lhes morresse alguém. Pensarmos numa pessoa e idealizá-la é uma forma de sentimos que não nos perdemos a nós próprios. Essa pessoa representa parte de nós, é a nossa ligação ao mundo. Com o seu desaparecimento, há uma sensação de hemorragia interna. E a negação, a idealização, é porque estamos a lutar contra esse sentimento de hemorragia.

Os sinais já vinham de longe. Há muito que se pressentia que a geopolítica caminhava num sentido contrário ao do rumo da globalização. Por isso, ainda antes da pandemia, da invasão russa da Ucrânia e das outras crises sucessivas que nos têm baralhado as contas, já António Guterres tinha alertado, em setembro de 2019, para o que poderia estar a desenhar-se no horizonte: “O mundo a dividir-se em dois, com as duas maiores economias da Terra a criarem dois mundos separados e concorrentes, cada um com a sua moeda dominante, regras comerciais e financeiras, a sua própria Internet e capacidades de Inteligência Artificial, e as suas próprias estratégias geopolíticas e militares.”

Nas últimas semanas, este movimento ganhou uma nova e vertiginosa aceleração, ainda com consequências imprevisíveis. Primeiro, com a declaração de guerra de Donald Trump ao resto do mundo (com a notória exceção da Rússia…), através da arma, que brandiu durante toda a campanha eleitoral, que o fez regressar à Casa Branca: a imposição daquilo a que ele chama “tarifas recíprocas”, mas que constituem, na verdade, um autêntico ataque nuclear à ordem mundial existente. Depois, com a resposta “olho por olho” da China a essas mesmas tarifas, a demonstrar que Pequim não tem qualquer receio em escalar uma guerra comercial e, porventura, até quer aproveitar este momento para ganhar vantagem geopolítica: apresentar-se às outras nações como a única superpotência que respeita os acordos internacionais e, portanto, confiável aos olhos do resto do mundo, que se encontra estupefacto com os ziguezagues contínuos do novo poder em Washington.

Vivemos, portanto, num tempo de extrema volatilidade, mas que deve ser também de clarificação. De repente, vemo-nos constrangidos a redefinir as nossas parcerias e, se calhar, a mudar a identificação dos nossos adversários. Temos um Presidente dos EUA que se ufana, publicamente e com o mau gosto do costume, de declarar que pôs metade das nações do mundo dispostas a “beijar-lhe o rabo” (sic) para que ele aceite renegociar o pacote de tarifas que decretou unilateralmente. Mas também o mesmo Presidente dos EUA que, após criar o caos na economia global, decide adiar a entrada em vigor dessas mesmas tarifas por um período de 90 dias, à espera que o resto do mundo capitule aos seus ditames – ou, para usar a sua linguagem, que lhe vá “beijar o rabo”. E, não nos esqueçamos, também o mesmo Presidente que repetidamente nomeia a China e a União Europeia como os principais inimigos dos EUA.

Ninguém se pode admirar que, num curto espaço de tempo, se tenham alterado as prioridades. Lembram-se como, ainda há poucos meses, a preocupação das instituições europeias, com receio de violação de dados, era a de tentar restringir ou proibir o uso de componentes das empresas chinesas Huawei e ZTE nas suas redes de telecomunicações 5G? Pois, agora, pelos mesmos motivos, a Comissão Europeia passou a fornecer telemóveis descartáveis e computadores básicos aos altos funcionários que viajam para os EUA – com medo de ver os seus segredos devassados.

A desconfiança alastrou-se ou somente mudou de geografia? E vai ser mesmo preciso escolher um lado nesta disputa que se avizinha ou será que ainda há espaço para se conseguir encontrar um caminho próprio e independente face às duas grandes potências? São muitas as dúvidas e inquietações que necessitam de ser ponderadas, e quase todas elas de resposta difícil e complexa. Mas há, no entanto, várias certezas que precisam de começar a ser enfrentadas, sem rodeios. Já não é sensato pensar que Donald Trump está a fazer bluff. Nem é admissível continuar a ignorar a sua sistemática destruição da democracia americana e da ordem global que, apesar de tudo, estava assente em tratados e acordos internacionais. E, acima de tudo, temos de preparar-nos para tempos de grande instabilidade, em que vai ser preciso não ter medo de enfrentar o desconhecido, saber procurar novas alianças baseadas no interesse comum e ir em busca de novos parceiros económicos.

Neste contexto, não deixa de ser quase surreal a forma como a atual situação internacional tem estado quase ausente da atual campanha eleitoral para as legislativas de 18 de maio. Ao ouvir os debates e a maior parte das intervenções públicas, quase parece que todos têm planos blindados às convulsões internacionais, quando apresentam as suas soluções para os problemas do País. A verdade é que uma campanha eleitoral devia servir para ajudar a clarificar o que pensa e como age cada candidato. E, nos tempos que correm, o mais importante é tentar perceber como agirá um futuro primeiro-ministro em circunstâncias excecionais, como as que se adivinham para as primeiras semanas do novo Governo – quando as tarifas de Donald Trump baterem com força na Europa. 

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De acordo com o jornal online Observador, o Ministério Público abriu uma investigação preventiva a Pedro Nuno Santos, devido a suspeitas sobre a aquisição de dois imóveis, um em Lisboa e outro em Montemor-o-Novo.

“Na sequência de receção de denúncias e tendo em vista a recolha de elementos, o Ministério Público determinou a abertura de averiguação preventiva, a qual corre termos no DCIAP. Estas ações de prevenção encontram-se previstas na Lei 36/94, de 29 de setembro”, pode ler-se numa resposta da Procuradoria-Geral da República (PGR) ao Observador.

Os imóveis em questão já tinham sido alvo de polémica em 2023, após a revista Sábado noticiar que o secretário-geral do PS, na altura ex-ministro de António Costa, não declarou como pagou uma casa de 740 mil euros.

A eletrificação dos carros veio para ficar. Se um dos grandes entraves iniciais era o elevado preço de aquisição de um veículo elétrico, hoje em dia já não é bem assim. Fomos à procura de carros elétricos até 25 mil euros e testámos sete máquinas diferentes — cada uma com a sua autonomia, estilo e características distintas. Este é o tema de capa da Exame Informática nº 355, no qual apresentamos uma gama variada de opções para quem não quer entrar em ‘loucuras’ por um carro elétrico novo. Mas, como pode ver em baixo, há muito mais nesta edição da Exame Informática que merece a sua atenção.

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Testes

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Asus ROG Flow Z13: Um tablet mais poderoso que muitos portáteis

Xiaomi Watch S4: Smartwatch equilibrado

Asus ZenScreen Smart MS27UC: Monitor e televisor

Sony WF-C710N: Auriculares funcionais

Lenovo ThinkPad X9-14 Aura Edition: Um portátil completo

HP Envy 6530E: Impressora multifunções

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Samsung The Premiere LPU9: IMAX em casa

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