As paredes estão revestidas a madeira escura, há sofás de veludo, uma iluminação suave e obras de arte. A porta está virada para a avenida principal e há um porteiro de dia e de noite no prédio. Mas nem todos os moradores do edifício passam por aquele lóbi que parece saído de uma revista. Nas traseiras, há uma outra entrada. Tem uma porta frágil de alumínio e vidro, um chão de cimento e lâmpadas fluorescentes. Os que entram por aí têm elevadores diferentes, não podem usar a piscina interior nem pagando e até o espaço exterior onde os filhos podem brincar está dividido por um fosso do lugar a que têm acesso as crianças dos que entram pela porta principal.
Chamam-lhes “portas para pobres”. Existem em Londres e foram proibidas em 2015 em Nova Iorque nas novas construções, mas continuam nos empreendimentos construídos até essa data. Em fevereiro, entraram nas notícias em Espanha, a propósito de um debate sobre a norma municipal, aprovada em 2018, que obriga todos os novos empreendimentos a ter 30% de habitação pública. Elena Massot, vice-presidente da Associação de Promotores de Catalunha, atirou para cima da mesa a ideia de ter “dois acessos” nestes novos edifícios “para que toda a gente possa conviver com as condições económicas que lhes sejam mais razoáveis”.
Quem paga os preços de mercado – o preço médio de um apartamento em Barcelona ronda os 700 mil euros – não quer partilhar a entrada do prédio e o elevador com quem beneficia de casas a custos controlados. E Elena Massot não tem sequer vergonha em admitir que estas pessoas lhe estragam o negócio.
Não só quem tem mais dinheiro não quer conviver com os que não estão tão bem na vida, como os promotores precisam de dar aos compradores a ilusão de que as quantidades absurdas de dinheiro que lhes pedem pelas casas fazem algum sentido. A ideia de que, afinal, podem estar só a ser vítimas da especulação tem de ser varrida para debaixo do tapete ou atirada para a porta das traseiras. Para a mascarar, transformam as entradas dos ricos em espaços com ar de lóbi de hotel e fazem o possível para tornar claro que não compensa pagar um custo mais baixo.
As “poor doors” de Londres escondem ainda outra armadilha. O The Guardian conta como os moradores dos apartamentos de custos acessíveis inseridos em blocos de luxo estão confrontados com aumentos no preço dos condomínios que tornam impossível continuarem a lá morar. John Whelan, diretor de um teatro, e o seu companheiro, Alan Crookham, contam ao jornal como já pagam 4 029 libras ao condomínio, o dobro do que pagavam quando compraram o seu T1 em 2021. “É uma injustiça total. Estamos a subsidiar os serviços dos residentes privados”, queixam-se, notando que estão a ajudar a custear os dois “concierges” que trabalham no empreendimento e a manutenção dos jardins pelos quais entram os mais endinheirados. Outro dos moradores desse prédio, um académico chamado Marco Scalvini, diz ao The Guardian que quem vive nos apartamentos de custos controlados está a gastar mais de 40% do seu rendimento só na habitação. “É preciso ganhar entre 80 mil e 90 mil libras para conseguir morar aqui. É chocante”, queixa-se. No seu caso, o aumento do custo do condomínio foi de 77% num ano. Paga agora 8 mil libras.
Num texto sobre “a vida atrás da porta dos pobres”, Kimberly Dawn Neumann, que paga 1300 dólares por um T1 em Manhattan, conta como o desleixo a que foi votada a parte do prédio a custos controlados foi ao ponto de a porta da entrada deixar de fechar, fazendo com que os moradores se cruzassem frequentemente com estranhos que usavam as partes comuns para pernoitar ou vender droga. Kimberly chama-lhe o “Wild Wild Upper West”.
Reparem que estes “pobres” são aquilo a que sempre se chamou classe média, em alguns casos até média alta, tendo em conta não só o seu nível de rendimentos, mas as suas profissões (Kimberly Dawn Neumann é escritora e artista na Broadway). É uma constatação que vai contra todas as promessas de nivelação das classes ou de ascensão social. Uma proletarização que estas classes não só ainda não interiorizaram como é contrária à imagem que têm de si próprias, tantas vezes ainda iludidas com a ideia de pertencerem a uma elite.
A moral desta história é que o mercado da habitação é agora descaradamente amoral. E tem encontrado formas, em todo o mundo, de contornar ou até subverter as poucas políticas públicas que vão sendo criadas para garantir o acesso à habitação.
Mas há outra lição a retirar daqui. Os “pobres”, esses que se querem fora da vista, não são só os mendigos que se enxotam das arcadas, os trabalhadores explorados que vivem nas barracas, as empregadas que vivem nos bairros sociais. Há muito quem ainda não tenha percebido em que classe está. Mas vi há tempos o humorista espanhol Miguel Maldonado propor um teste que me pareceu muito bem visto. “Se para usar uma frigideira tens de tirar outra de cima, é porque não és de classe alta”.
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