Quando um grupo de ativistas se encosta à parede numa manhã chuvosa, na Avenida de Roma, três senhoras estacam perante a cena e comentam entre si. “Qualquer dia não pode haver polícia”, diz uma. “Acho isto muito mau”, concorda outra, todas muito indignadas, com esgares de incompreensão nas bocas sublinhadas a batons vivos, fazendo crescer o tom dos comentários para que sejam audíveis a quem se manifesta, mas também aos jornalistas que ali foram registar a cena. Nesse momento, saem da porta do mesmo centro comercial de onde tinham vindo as três amigas dois homens brancos, portugueses, com as caras e as roupas manchadas de tinta e pó das obras. E também eles se detêm perante a cena.
Mas enquanto as senhoras estão paradas no passeio a comentar, os dois homens congelam à saída do centro comercial. Olhos esbugalhados, sobrancelhas franzidas, escrutinam a cena inusitada numa manhã de janeiro, que até lhes parecia igual a qualquer outra, numa das avenidas nobres de Lisboa. “O que é isto?”, perguntam, com uma estupefação que é visível. “É uma manifestação”, respondo, enquanto lhes vejo os olhos a franzirem-se mais um pouco, insatisfeitos com a resposta. “Não há problema. Os que ali estão encostados estão ali porque querem”, sossego-os, enquanto os vejo olhar para os polícias que acompanham a manifestação de perto. “Não queremos problemas”, diz-me um, de fugida, enquanto batem em retirada, outra vez para dentro da loja de onde tinham vindo.
Não tive tempo de lhes explicar que não havia ali problemas nenhuns. Fiquei sozinha com a interrogação sobre o que os terá feito fugir assim, àqueles homens brancos, portugueses, trabalhadores, que vinham com as mãos sujas vazias e não traziam mais do que a roupa do trabalho em cima do corpo. As senhoras continuavam a perorar sobre a falta de respeito e de segurança, seguras de que nada lhes aconteceria ali, em plena Avenida de Roma, seguramente perto das suas casas, numa zona onde o preço do metro quadrado pode facilmente chegar aos sete mil euros.
Lembrei-me, então, de como muito pouco tempo antes um amigo me tinha contado que, quando era gerente de um restaurante, era frequente que os seus trabalhadores fossem obrigados a chegar atrasados por terem sido retidos de manhã numa rusga num dos bairros periféricos de Lisboa que habitam, encostados à parede, impossibilitados de sair para fazer a sua vida normal. Lembrei-me das vezes em que falei com pessoas que moram ou trabalham nestes bairros e em que me contaram como se sentem permanentemente suspeitas e hesitam em pedir ajuda à polícia, como eu sempre achei normal que se fizesse, como eu ensino aos meus filhos que devem fazer.
Lembrei-me da noite em que estive ao telefone com familiares de Odair Moniz, que me contavam como a polícia tinha entrado em casa da viúva e garantiam (e garantem, mesmo depois de todos os desmentidos) que lhes tinham arrombado a porta, que ficou desfeita, quando a chamada caiu com gritos de “Eles vêm aí outra vez” e um pânico que me acertou no peito. E o “eles” eram os agentes. E naquela casa não havia senão gente enlutada. E, claro, revoltada, porque é assim que a revolta cresce e se incendeia.
As senhoras da Avenida de Roma não fazem ideia de nada disto. Eu também não teria maneira de saber se não fosse jornalista. Ou talvez tivesse, mas teria de me esforçar muito para saber, porque muito dificilmente sentiria na pele o que é ser suspeito porque se vive num certo bairro, porque se tem um determinado aspeto. “Tu não sabes”, disse-me uma vez um amigo negro, quando me choquei por ouvir comentários de escárnio racista da boca de uns miúdos que passaram por nós na rua e nos insultaram simplesmente por estarmos ali parados, a conversar, eu pálida, ele escuro. Não, eu não sabia. Mas eu posso (e devo) fazer por saber.
É por isso que não me surpreende que numa sondagem feita com 400 telefonemas se tenha chegado à conclusão de que a maioria dos portugueses concorda com operações policiais como aquela no Martim Moniz que deixou imigrantes encostados à parede por serem suspeitos ainda não se sabe bem do quê e acabou com dois portugueses detidos e uma arma branca confiscada. Só 27% dos inquiridos estão contra ações como essa. E 65% não vislumbram ali qualquer viés racista. Talvez não vejam racismo em nada mesmo, que este já se sabe é um país de “brandos costumes”.
E isto não me sai da cabeça, porque quando escrevo sobre as ferramentas de inteligência artificial que a Europa se prepara para autorizar às polícias, para que nos leiam em segundos a identidade, as crenças e a alma, há quem comente, de ombros encolhidos, “quem não deve não teme”. Há quem não faça ideia de que se pode temer sem dever. E que esse é o verdadeiro perigo e a maior de todas as inseguranças.
Quando a ordem é um monólito que esmaga os direitos, a lei passa a ser não a proteção de todos, como devia, mas um instrumento de violência nas mãos dos mais fortes. Talvez hoje nos pareça que não devemos nada a ninguém e que, por isso, estamos a salvo. Mas quando as garantias dos cidadãos se esboroam, ninguém sabe ao certo se deve ou não e todos (ou quase todos) passam a temer.
Tivemos 48 anos disso em Portugal e parece que não aprendemos nada. Ou talvez só esteja a ficar mais visível que durante essa longa noite foram muitos os que fizeram a sua vidinha, mais ou menos indiferentes, seguros nesta frase cobarde. “Quem não deve não teme”.