“Temos de combinar!”. A frase fica assim pendurada em dezenas de contactos do meu WhatsApp. É um desejo. É uma promessa. É uma falha. A vontade de nos vermos fica enterrada debaixo de horas de trabalho que se multiplicam, da forma como nos dividimos para garantir que estamos com os nossos filhos, da subtração que temos de fazer a cada dia para dormir. É uma matemática complicada. Um jogo de soma zero, em que alguma coisa fica sempre a perder e normalmente são os amigos.
Porque é que a amizade fica sempre para trás? Podíamos dizer que é porque achamos que os amigos estarão sempre lá, quando for preciso. Mas sabemos bem como se deslassam as relações quando não temos tempo para elas. Talvez seja também porque encontrámos nas redes simulacros que nos dão a ilusão de estarmos próximos. Pegamos no telefone e mandamos uma mensagem a partilhar a última frustração, ligamos para desabafar, partilhamos a fotografia do lugar aonde queríamos estar juntos, enviamos links de notícias e podcasts para trocar comentários. E com isso maquilhamos um pouco a solidão.
Mas estamos sozinhos. Demoramos meses a conseguir combinar um café ou um almoço. Temos de consultar agendas. Desmarcamos à última hora. Aparecem imprevistos. Há um esforço de contorcionismo por detrás de cada encontro e há também um esforço financeiro, que faz com que nem sempre seja possível juntar todos os amigos com quem gostaríamos de estar, mas que já não podem ir a mais um jantar e muito menos fazer uma viagem.
Ter amigos custa tempo e o tempo é dinheiro, mas também custa mesmo dinheiro. Tudo custa dinheiro e raramente se fala disso. Talvez porque só pensa verdadeiramente nisso quem o não tem.
Num artigo da revista The Atlantic li sobre um estudo que mostra como os mais ricos conseguem manter mais amizades do que os mais pobres. Um inquérito feito a 6500 adultos americanos, citado pela The Atlantic, revela que americanos com educação superior têm mais probabilidades de receber amigos e vizinhos em casa pelo menos uma vez por mês do que aqueles que só acabaram o liceu.
Reparem que se está a falar de receber em casa. Então, porquê esta disparidade? O mesmo estudo indica que esses americanos privilegiados têm mais probabilidades de viver em zonas nas quais se cruzam repetidamente com as mesmas pessoas, como bibliotecas públicas, jardins e cafés, e que, assim, fazem mais amigos. Também ajuda o facto de não terem de acumular empregos nem trabalharem por turnos.
E isto fez-me pensar em Lisboa. Nos últimos anos, os meus amigos espalharam-se pelas franjas da cidade. E isto já para não falar dos que foram viver para o estrangeiro. Vivendo no centro e tendo o hábito de frequentar os jardins que me rodeiam e de ir quase sempre aos mesmos sítios, comecei a dar-me com as pessoas com quem aí me cruzo. Mas há uma ameaça permanente que paira sobre estas relações, tantas vezes construídas mais em cima da oportunidade de nos vermos com frequência do que de afinidades sólidas. A habitação.
O tema tornou-se numa obsessão coletiva. Quase não há quem não esteja em risco de perder a casa, insatisfeito com a casa que tem, sem conseguir encontrar uma melhor, ou a admitir mudanças de até centenas de quilómetros para ter um espaço que sirva à família que tem. E isso precariza todas as relações.
Não é só já muito difícil encontrar os amigos por causas das agendas incompatíveis. Não é só já muito difícil viver perto das pessoas com quem ao longo dos anos se foram construindo relações. É também extremamente angustiante perceber que os laços desenvolvidos em torno da proximidade podem quebrar-se a qualquer instante.
Quando fizermos uma equação que traduza a dificuldade de ter e manter amigos devemos juntar às horas de trabalho infindáveis e desreguladas, às exigências da família, aos custos da vida social, à emigração forçada de quem procura uma vida melhor, o facto de termos casas incomportavelmente caras e serviços públicos degradados.
Ter uma má rede de transportes, que faz com que atravessar a cidade seja uma dor de cabeça, é parte do problema. Ter escolas públicas transformadas em guetos, que fazem com que os vizinhos de um mesmo prédio dividam os filhos por não sei quantos colégios diferentes em vez de os inscreverem na escola da residência, é seguramente também parte do problema. Assim, como não ajuda ter espaços públicos degradados ou rendas tão altas que tornam impossíveis os pequenos negócios de bairro onde as pessoas se conhecem.
Sim, os “temos de combinar!” vão continuar a pairar nas mensagens de WhatsApp. Mas eles não são tanto o símbolo do nosso fracasso individual como o reflexo de uma estrutura profundamente errada. E, sim, isso também é política.
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