O rosto não lhe trai a emoção. Parece atordoada. Quase sem expressão, atrás dos óculos escuros redondos. Mas desta vez está acordada. Desta vez, Gisèle Pélicot toma as rédeas do seu corpo e da sua vida. Quer que a vergonha mude de lado e, por isso, dá a cara. Dá-a de pleno direito e consciência. E através desse gesto deixa de ser a boneca de trapos que o marido, Dominique Pélicot, ofereceu durante anos a desconhecidos que a violaram, drogada, inconsciente, incapaz de se defender.
Gisèle não se esconde atrás de iniciais ou nomes fictícios, não foge às câmaras. São os homens que abusaram dela que tapam o rosto, enquanto passam pelos jornalistas. Foi o marido que, antes de começar o julgamento, confessou à psicóloga que o examinou a inquietação pela imagem com que ficariam dele. A vergonha, em certo sentido, começou a mudar de lado.
Gisèle mostra-se e confronta-nos. Olha de frente para homens que agora balbuciam justificações perante o juiz. Tentam dar a ideia de que talvez a relação com o marido não fosse convencional e obrigam-na a garantir que não, nunca fez swing, não nunca fingiu estar a dormir.
Gisèle quer deixar de ser a vítima, mas a forma como se desenrola o julgamento mostra bem como o jogo está inquinado. A dúvida que paira sobre ela ensombra-nos a todas. Gisèle não é só uma mulher que o marido entendeu oferecer a desconhecidos em fóruns na internet, é um símbolo de uma guerra surda declarada às mulheres e aos seus corpos, por uma cultura que as despersonaliza, as mercantiliza e a desqualifica.
Dominique encontrou os 80 homens que violaram Gisèle em fóruns da internet. Por cada dez homens que abordou, apenas três recusaram a oferta. Sim, porque Dominique sentia-se legitimado a oferecer a “sua” mulher. Era assim que a via. Como uma propriedade de que podia dispor.
Atentemos, porém, nos que disseram que não. Os que recusaram a possibilidade de abusar de Gisèle calaram-se. Não denunciaram Dominique. Talvez tenham recusado mais por medo do que por convicção. Certamente a oferta não os repugnou o suficiente para a denunciarem.
“Os homens não são todos iguais”, reagirão, prontamente, alguns. Não é isso que está em questão. Nunca esteve. O problema é a cultura em que estamos imersos. A mesma que nos faz perceber desde muito novas que não devemos andar por sítios escuros sozinhas, que devemos preocupar-nos com o tamanho das nossas saias, que é melhor a andar com as chaves entre os dedos, preventivamente, não vá ser preciso defender-nos.
Nunca estamos seguras. Não somos senhoras dos nossos direitos. Os nossos corpos são permanentemente avaliados, comentados, observados. Somos presas, ensinadas a fugir a predadores. Somos julgadas, ensinadas a justificarmo-nos. Somos silenciadas, ensinadas a calar-nos. Somos controladas, ensinadas a submetermo-nos.
O nosso corpo, o nosso tempo, os nossos gestos. O pronome é possessivo, mas a verdade é que temos de lutar continuamente por eles. Nada nos é dado. Tudo nos é questionado.
Até para sermos vítimas temos de escolher a maneira certa. A que não ofenda, a que não choque, a que não provoque. O ideal é sermos invisíveis, mas mostrando sempre o melhor sorriso. O ideal é desviarmos o olhar, mas olhando sempre pelos que nos rodeiam. O ideal é conseguirmos ter tudo, mas abdicando do que for preciso.
Gisèle está a mostrar-nos um caminho. Está a ensinar-nos que é o criminoso aquele que tem de se esconder. Fá-lo com um esforço indizível, que talvez não chegue sequer para fazer-nos avançar mais do que uns centímetros nesta longa caminhada. Mas vamos continuar a andar. Por muito que nos travem, não vamos parar.