A página está virada, o consenso à esquerda que muitos consideraram impossível, durante décadas, foi alcançado e, quer se queira quer não, existe uma maioria no parlamento para suportar um governo liderado por António Costa. Não vale a pena, por isso, continuar a discutir a legitimidade da solução. Vivemos numa democracia parlamentar, mesmo que por vezes não nos lembremos disso. Quando vamos votar, o nosso voto serve única e exclusivamente para eleger deputados. E as contas são simples: os partidos da esquerda, no seu conjunto, têm mais deputados do que os dois partidos da direita.
Há quem diga, no entanto, que o problema de um governo liderado por António Costa, com o apoio do resto da esquerda, não é tanto a sua legitimidade face aos resultados das eleições de 4 de outubro, mas o sinal de instabilidade que trará para a vida política nacional. E isto porque, avisam, uma aliança motivada pela necessidade de derrubar um governo não tem o cimento necessário para se manter unida durante quatro anos, em especial quando for necessário aplicar medidas ainda não previstas. É um argumento plausível, claro. Mas há também uma certeza: será sempre, no curto prazo, muito menos instável do que manter um governo PSD-PP sem maioria parlamentar e, portanto, permanentemente debaixo de fogo dos partidos da esquerda. As decisões mais importantes da governação só se transformam em lei depois de obterem a maioria dos votos do parlamento. Quer se queira quer não, depois das negociações das últimas semanas, há um grande conjunto de matérias e de decisões em que os partidos da esquerda chegaram a acordo. E nesses pontos, pelo menos, estão reunidas as condições para que se governe com um mínimo de estabilidade – e, até, com maior grau de compreensão por parte das organizações sindicais e sem chumbos do Tribunal Constitucional.
A causa da verdadeira crispação que se vive atualmente em Portugal é que um governo de esquerda vai fazer muito coisa ao contrário do que faria um governo de direita. Não há como o negar. Mas essa é, também, a própria natureza do jogo político e da alternância democrática: quem vem de novo vai sempre mudar políticas e tentar demonstrar que o seu rumo, as suas ideias e os seus planos são melhores para o desenvolvimento do país e para o bem-estar da população. A esquerda acredita que vai conseguir fazer melhor do que a direita fez nos últimos quatro anos. No fim, será avaliada exatamente como foi a direita. Com a força da realidade: os números do desemprego, as contas públicas, as condições de acesso à saúde e educação, o desenvolvimento económico, as oportunidades de inovação, as apostas nas pessoas, o estado da justiça, a eficácia do combate à corrupção, a segurança e, não menos importante, a perceção de auto-estima que cada um de nós tem sobre o país e o nosso lugar no mundo. E com base na avaliação disso tudo, as maiorias podem, depois, ser transformadas em minorias e as minorias em maiorias. E essa é a diferença fundamental entre as democracias e as ditaduras.
Três ideias (des)feitas sobre esquerda e direita em Portugal
1. Um governo PS-PSD seria o ideal para o País. É uma das frases mais ouvidas ao longo dos últimos 40 anos de democracia. Mas isso só sucedeu uma vez e, mesmo assim, não chegou ao fim da legislatura. O único governo de bloco central foi desfeito por Cavaco Silva, em 1985, precisamente no dia a seguir à assinatura do tratado de adesão de Portugal a União Europeia.
2. A esquerda divide-se sempre. Nunca tinha acontecido um acordo como o agora alcançado por António Costa, é verdade, mas ninguém pode esquecer que os dois Presidentes da República socialista só chegaram ao Palácio de Belém graças aos votos decisivos dos comunistas e da extrema esquerda: Mário Soares, em 1986, e Jorge Sampaio, em 1996 (este repetindo a coligação alargada que já lhe tinha dado, em 1989, a presidência da Câmara de Lisboa).
3. Socialistas e comunistas são inimigos desde o PREC . Pode ser verdade para alguns dirigentes comunistas, mas um terço dos membros do atual comité central do PCP ainda não tinham nascido quando Mário Soares fez o célebre comício na Fonte Luminosa, em 1975, que mudou o rumo do PREC e deixou os comunistas isolados do outro lado da barricada.