A invasão russa da Ucrânia que desencadeou o início da guerra em fevereiro de 2022 foi mais uma chamada de atenção – a par do que aconteceu na pandemia da Covid-19 – para algo que devemos ter como preocupação e prioridade se queremos futuro e relevância para o projeto europeu nas próximas décadas: a autonomia estratégica da União Europeia.
Autonomia não significa isolamento nem fechamento, mas antes, a União Europeia entender que deve ser inteligente na forma como se posiciona no mundo, deve fortalecer competências e capacidades próprias, acelerar em algumas áreas cruciais, como é o caso da tecnologia, para se afirmar num mundo em que o eixo Sul/Pacífico ganha cada vez mais importância enquanto o Norte/Atlântico está a perder a centralidade que teve até aos nossos dias.
A Europa tem conseguido apresentar bons indicadores no que diz respeito a sustentabilidade, inclusão e crescimento, nomeadamente na capacidade de as pessoas deixarem a pobreza geracional ou na redução de emissões de carbono. As 3 dimensões podem reforçar-se ou prejudicar-se mutuamente, tendo em conta que necessitamos de crescimento para garantir maior inclusão social e sustentabilidade ambiental. Porém, é na área da tecnologia que se jogará muito do nosso futuro enquanto comunidade no espaço global. E é nesta área que estamos a ficar para trás.
As empresas europeias na área da tecnologia têm ficado para atrás, em comparação com as americanas e chinesas, em termos de crescimento, lucro e inovação. É verdade que na Europa existem empresas de grande dimensão, mas por exemplo as tecnológicas e farmacêuticas estão a investir muito menos do que as americanas em pesquisa e desenvolvimento.
A este propósito, a consultora McKinsey & Company concluiu recentemente que a Europa está atrás das outras potências globais em oito de dez competências transversais ao desenvolvimento tecnológico, sete das quais estão ligadas à digitalização. Nas dez maiores empresas a investir em computação quântica, não há uma empresa europeia, sendo todas americanas ou chinesas. Em termos de valor de mercado, nas dez maiores empresas tecnológicas, o padrão repete-se: não há empresas europeias. E nas vinte maiores, consta apenas uma à data de hoje.
Na área da inteligência artificial, o investimento das empresas americanas é seis vezes superior ao investimento das empresas europeias, e mesmo no tão badalado 5G, a Europa está atrasada na sua implementação. Ao mesmo tempo, a China começa a ameaçar a liderança europeia no campo da produção de tecnologia limpa, até aqui um baluarte europeu. E no campo da indústria automóvel, na qual os maiores fabricantes são europeus, os concorrentes americanos são hoje responsáveis por 70% dos quilómetros percorridos por veículos totalmente autónomos, um dos eixos dos futuros sistemas de mobilidade.
Estes indicadores, a que se podiam juntar outros, devem merecer reflexão e ação por parte dos decisores europeus. Não dá para assobiar para o lado. O futuro do mundo será cada vez mais alicerçado na tecnologia, e mesmo em áreas vitais, como a defesa e a segurança, não podemos descurar o papel que hoje já têm as novas tecnologias e a cibersegurança, área em que a Europa investe menos duas vezes e meia do que os Estados Unidos. Os recentes episódios em torno do futuro do TikTok revelam bem o alcance político e as preocupações que devemos ter com o alcance estratégico da tecnologia nos nossos dias. Num mundo cada vez mais polarizado, a autonomia estratégica da Europa está em risco se nada fizermos para inverter o rumo atual.
Na pandemia da Covid-19 descobrimos à pressa e em emergência o valor da autonomia estratégica da Europa numa área da maior relevância, como a da saúde pública. A resposta que foi dada na Europa, nomeadamente ao nível da aprovação, financiamento e produção das vacinas, pode servir de exemplo para um futuro em que a Europa, através das suas empresas, ganha escala, velocidade e competitividade. O cenário é desafiante e a preocupação que os números trazem deve levar ao fortalecimento das boas práticas.
Num mundo novo, no qual a Índia ultrapassará a China ao longo deste ano de 2023 em população (juntos são quase 3 mil milhões de pessoas), a Europa deve usar as suas maiores forças – os sistemas de educação de elevada qualidade, o mercado comum, o crescente número de unicórnios e iniciativas como o Digital Markets Act ou o Horizon Europe – para recuperar o tempo perdido na área da tecnologia. É tempo de agir e acelerar.
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