Os nossos vizinhos asturianos costumam dizer que, enquanto Franco adorava a pesca linha, D. Carmen era mais mulher de pesca de arrasto. Contam que, quando o caudilho passava uns dias nas margens dos rios, a mulher corria todas as joalherias da região escolhendo e levando o que muito bem lhe aprouvesse.
Se no início um ou outro comerciante se atreveu a mandar a conta, cedo concluiu que era melhor cerrar portas durante a estada do casal, que tratava Espanha com uma imensa quinta onde se abastecia a seu belo prazer. As Astúrias foram uma das primeiras regiões a criar uma mútua para arcar com as despesas da senhora que não se coibia de inclusivamente mandar fazer esta ou aquela peça de acordo com os seus gostos.
Recordei esta história numa altura em que, celebrando um ano mais sobre a implantação da República, o horizonte se adensa com nuvens negras. Sendo a democracia o pior dos sistemas políticos, tirando todos os outros, encerra em si mesma a sua destruição.
O descrédito no sistema político, ou melhor nos atores políticos e nas figuras públicas, leva a que o povo, que em democracia é quem mais ordena, comece a olhar em redor à procura de outras soluções, outros rumos. Assim se iniciaram as grandes ditaduras dos tempos modernos: com o aval, o voto e a participação ativa das massas cansadas do despautério público, das “xico espertices”, dos pequenos (e grandes!) atropelos à coisa pública.
Perdeu-se a ideia de missão enquanto serviço público e isso é por demais visível quando olhamos como herois os que fazem o que lhes é pedido, lhes compete, com brio e sentido de dever.
Quando o vice-almirante Gouveia e Melo declarou: “a minha missão chegou ao fim” e despiu o camuflado, muitos viram, nesta declaração e no gesto, um golpe teatral. Outros olharam-no como herói quase épico. Uns não entenderam o valor do simbolismo. Outros ergueram-lhe um altar.
No entanto, ele foi o que se pede a qualquer servidor público em qualquer nível de responsabilidade ou hierarquia: cumpridor do que se lhe pedia sem temer cair do alto das boas graças fosse de quem fosse.
Isto não retira ao seu trabalho nem um pingo do valor com que com empenho, brio e distinção, cumpriu o seu dever. Mais, fê-lo de forma abnegada em prol da causa e da missão que abraçou, sem ter como objetivo o louvor ou o reconhecimento que lhe foram atribuídos. Esses foram a consequência, não a causa e isso faz toda a diferença.
Quando a política deixa de ser o colocar do saber acumulado ao serviço do bem coletivo para passar a ser uma carreira profissional… Começa a desenhar-se no horizonte o maior dos perigos da democracia: um sistema ditatorial sufragado pelos cidadãos cansados de tanta impunidade e tanto despudor
É claro que estando nós habituados aos compadrios, aos “golpes nas filas” aos amiguismos, aos pequenos desvios, às frutas, almoços e jantares pagos pelo erário público, um homem que segue um código de honra é quase um ser extraterrestre ou divino: logo um alvo a abater. Sobretudo se a sua notoriedade começa a fazer sombra aos que vivem das palmas e das luzes, sem qualquer mérito que não seja o mero mediatismo.
Os que, por sentido de dever e grande humanismo (estou a recordar-me do saudoso Jorge Sampaio), são por norma seres discretos a quem se tecem grandes louvores mas cujos exemplos poucos seguem.
A causa pública privatizou-se e é, hoje, uma causa sem efeito para aqueles a quem se devia destinar.
Quando assistimos ao esfumar ou ao encolher de verbas destinadas a serem aplicadas no apoio aos mais desfavorecidos. Quando se utilizam dinheiros públicos, em mesquinhos proveitos próprios ou em enriquecimento, “pudim Flan”, instantâneos. Quando a política deixa de ser o colocar do saber acumulado ao serviço do bem coletivo para passar a ser uma carreira profissional (ainda havemos de ver um sindicato dos políticos!…)… começa a desenhar-se no horizonte o maior dos perigos da democracia: um sistema ditatorial sufragado pelos cidadãos cansados de tanta impunidade e tanto despudor.
Os partidos que têm no seu ADN e na sua história uma linha muito clara de humanismo, liberdade, igualdade e fraternidade, não podem continuar a deixar-se contaminar por esta forma de fazer e estar na política! Têm o dever moral e patriótico de evitar, pelo exemplo e pelo rigor, a ascensão de outras forças que não têm soluções, mas que gritam que o “rei vai nu”.
Porque neste momento o rei vai realmente nu. Pior: vai nu, sujo e rastejante.
Qualquer militar sabe que, nas batalhas que se ganham, premeiam-se os que combatem. Nas que se perdem são os comandantes quem assume as derrotas.
Em política e no serviço público, dever-se-ia agir da mesma forma.
Como diz o povo, o exemplo deve vir de cima. Ora, neste caso, os exemplos vêm por aí abaixo, minando toda a estrutura.
Salvam-se os discretos e honrosos servidores, olhados como trouxas, que jamais “sairão da cepa torta”, os utópicos e os que tentam, contra ventos e marés, fazer a diferença. Os primeiros são olhados com desprezo. Aos segundos, é preciso “fazer-lhes a folha”, não vá que consigam mudar alguma coisa, despertar consciências.
Por isso, senhor vice-almirante, não queira ser figura pública, não deixe que lhe apontem todos os holofotes, muito menos queira ser político. Mantenha-se honrosa e honradamente como militar.
Quem sabe se não voltaremos novamente a precisar deles!
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