Na terça-feira de manhã, preparar a lancheira dos miúdos para a escola foi um exercício difícil. Eu, a bruxa que impõe as regras alimentares saudáveis cá em casa, vi-me aflita: o que meter no pão? Fiambre, nem pensar, depois de ter lido as recomendações da OMS no dia anterior. Afinal nem o de perú, que ando a tentar impingir (e a pagar mais por ele) dizendo que sabe à mesmo coisa, se safa. Chouriço, que sobrou da festa no fim de semana? Bom, isso então agora é veneno, ainda me mandavam a segurança social cá a casa retirar as crianças. Manteiga? Bom, aquela coisa a que insistimos em chamar manteiga, mas que na verdade não passa de uma pasta light, mole e estranhíssima, tinha acabado – só me sobrava manteiga verdadeira, daquela que fica a cheirar a ranço no frigorífico porque valha-nos-Deus comer aquilo sem ficarmos imediatamente com as artérias entupidas. Pastas de chocolate e afins nem entram cá em casa. Estando o queijo fora de questão porque detestam, o azeite seria o ideal, mas os putos não iam comer… Bolos, bolachas e porcarias empacotadas, todos carregadinhos de açucar, fora de questão. Ainda para mais tinha acabado de ler pela manhã mais um estudo sobre os malefícios deste veneno no organismo das crianças. Sempre há as tostas e bolachas sem açucar, mas demasiados hidratos de carbono e glúten são igualmente terríveis – ainda tenho fresca a dieta paleolítica que mandou abolir os cereais. Reforçar com mais uma peça de fruta? Iam ficar esganados de fome depois de jogar à bola durante meia hora. Cansada deste dilema existencial às primeiras horas do dia, entre um pão de mistura seco e a manteiga semi-rançosa, ganhou a manteiga, ainda que tenha ficado com um bocadinho de peso na consciência.
Comer é, nos dias de hoje, um exercício cada vez mais difícil. Pelo menos para quem tem um grau mínimo de preocupação com a saúde. Dar de comer aos outros então, sobretudo se forem seres pequenos, muito pior, porque se tem de cativar papilas gustativas cheias de vontade própria e tentação para o que lhes faz mal (como a Patrícia Fonseca tão bem explicou aqui). Alimentar responsavelmente crianças em 2015 exige técnicas de negociação avançadas, imaginação ao fogão, pulso forte na hora de dizer que não, coração de aço para lhes recusar coisas que os fazem felizes. E, mais importante do que tudo, um permanente domínio sobre a literatura científica, que obriga à leitura atenta de dezenas de estudos e artigos, que surgem todos os dias como cogumelos transgénicos. E que, para mal dos nossos pecados, na maior parte das vezes teimam em contradizer os anteriores.
Ainda nos anos 80, diabolizou-se o azeite e as prateleiras dos supermercados encheram-se de gorduras polinsaturadas. Andámos anos a consumir cremes vegetais processados na fé de que seriam muito mais saudáveis. Nada de ovos, nada de natas, nada de carnes vermelhas por causa do colesterol. Frutos secos carregados de gordura e más calorias, abolidos. Sardinhas, esse peixe tão gorduroso, isso era coisa do passado. Bacalhau, carregado de sal e cheio de colesterol, era para esquecer. Era tempo de evoluir e abandonar a tradicional dieta mediterrânea.
Em duas décadas, estamos do lado oposto da barricada. O azeite é uma das gorduras mais saudáveis, a sardinha uma preciosidade da alimentação portuguesa, os frutos secos têm benefícios incomparáveis e devem ser consumidos diariamente, os ovos não fazem assim tão mal e mesmo o colesterol já não é, isolado, o bicho papão que tanto se falava. Até voltámos, imagine-se, às manteigas, natas e bifes da vazia de 300 gramas. A Time fez uma capa em Junho do ano passado, com o sugestívo título “coma manteiga” em que anunciava o fim da guerra contra a gordura saturada, que afinal, não é tão má quanto a pintavam.
E os produtos orgânicos? Em 15 anos passaram de feios e cheios de bicho a maravilhas alimentares, viram-se desmascarados e voltaram outra vez a ser bons.
Perdi a conta às dietas e teorias alimentares mais ou menos radicais que me tentaram impingir nos últimos anos: a dieta da sopa durante uma semana, a dieta da seiva (uma xarope açucarado que se comprava nas hervanárias) durante três dias, o limão em água quente todos os dias pela manhã, a beringela demolhada, o alho envelhecido, os suplementos de Omega-3. Nos últimos anos, foi a fúria ad nauseum dos sumos detox, da hiperproteica dieta do paleolítico, o jejum intercalado, a abolição do glúten, do açucar e dos produtos processados. Não se aguenta – tudo é um verdadeiro inferno!
Desisto, danem-se as modas, os estudos e as teorias.
Voltei a dar fiambre aos miúdos (o que são umas 30 graminhas diárias afinal de contas?) e, a mim, a tábua de queijos e enchidos ninguém ma tira. Tal como não vivo sem um bife com natas e ovo a cavalo, uma alheira e uma bela paiola transmontana. Até que se imponha a teoria seguinte, posso estar perigosamente a ultrapassar as 400 gramas semanais recomendadas pela OMS. Posso mesmo arriscar viver menos anos por causa desta irresponsabilidade, mas que se dane, vivo muito mais feliz! Espera… As endorfinas são óptimas para fortalecer o sistema imunitário, certo? Então nada está perdido.