São 15h29, sábado. À sombra de um chapéu, vermelho como o meu concelho no mapa Covid, assisto à contagem decrescente para o arranque da nova aventura na carreira dos profissionais da restauração: supervisionar cotonetes à entrada, enquanto preparam a mesa com o pãozinho e as azeitonas. Nenhuma escola de hotelaria podia antecipar tal especialização. Dentro de instantes, entra em vigor a regra que obriga à apresentação de certificado digital ou teste negativo para entrada em hotéis e restaurantes. Quem não tem, fica na esplanada, como eu. Cá fora, ouvem-se dúvidas cruzadas sobre vacinas e certificados, zangas e zaragatoas.
Esta semana, Portugal cortou a meta dos 70% de adultos com pelo menos uma dose e vacinou 611 mil pessoas em quatro dias. Como bons portugueses, custa-nos a aceitar que seja um grande feito, mas é. Já no plano das novas regras para os concelhos de alto risco, reina a confusão – em especial nos espaços de turismo e restauração, incapazes de se adaptar às tecnicalidades exigidas com um dia e meio de antecedência, de quinta-feira para sábado. Imaginar que cada Café Central, cada Pensão Albertina, cria, de um dia para o outro, um espaço de testagem à entrada do estabelecimento, com uma pessoa a supervisionar o processo, é irrealista e até cómico – não fosse o impacto nos negócios. Se a testagem e os certificados são caminho para abrir a economia e lançar o verão, fundamental, as dúvidas in loco entorpecem um processo lógico no papel. Levará o seu tempo. Mas a confusão da população com a avalanche semanal de novas medidas é mais grave. A aparente aleatoriedade de algumas restrições põe em causa o sentido das regras como um todo.
“A parte mais longa e aparentemente mais pesada do processo pandémico já passou”, estimou Marcelo Rebelo de Sousa em Miranda do Douro. Graças ao milagre das vacinas, a escalada de casos positivos não tem gerado a mortalidade das vagas pré-vacina, nem a pressão nos hospitais. A todo o vapor na imunização, pede-se cautela e bom senso, coragem e rigor, mas não podemos continuar a existir como se fosse janeiro. O discurso não pode ser o mesmo. O histrionismo de alguns media não pode ser o mesmo. A saúde mental não aguenta mais, nem a saúde não-covid, secundarizada, ou a economia, ligada à máquina, orando à bazuca. Com uma média diária de 5 óbitos a lamentar, para 150 mil vacinas inoculadas, não é tempo de baixar a guarda, mas de impor objetividade: cuidado com as infeções, cuidado com as variantes, cuidado com os efeitos a longo prazo. Mas as vacinas estão a funcionar e tudo indica que falta pouco para sairmos deste filme. Para lá caminhamos. A viragem da página não será, nunca, ter zero casos, mas controlar a doença e alistá-la junto de todas as outras. Marcelo declara podermos estar a falar de “semanas, um mês, um mês e meio mais intenso de vacinação” e “não de mais meio ano ou um ano”.
Há restrições aleatórias à luz das circunstâncias. Noutros momentos, critiquei os constrangimentos horários – da venda de álcool ao fecho dos supermercados. Hoje, ao fresco do alívio das novas regras, a lógica de certas medidas continua a ser difícil de acompanhar. Se os certificados e testes garantem segurança em hotéis e restaurantes, que sentido faz continuarem a ter de fechar às 22h30? Se quem lá entra testou negativo ou está vacinado, o que justifica manter-se esta restrição com tanto impacto no livre consumo, na recuperação do setor, no bem-estar da população, no direito às férias? Mais: porque só se exigem testes ao fim-de-semana? Neste momento, posso entrar num restaurante à terça-feira onde não posso entrar à sexta. O mesmo para os eventos, espetáculos e festivais. Se podemos garantir segurança à porta, de que estamos à espera para retomar a cultura, em pleno, com horários normais?
Salvar o verão é parte do combate à pandemia. Veranear em segurança, todavia sem medo, é uma prioridade de saúde pública. Aqui, compreendendo a cautela que cabe ao Governo, não há espaço para medidas imponderadas. A proibição da circulação na via pública a partir das 23h, por exemplo, é, para além de possivelmente inconstitucional, despropositada e contraproducente. Nada neste momento justifica a supressão de uma liberdade tão básica. No pico das vagas, o recolhimento obrigatório foi prática em muitos países da União Europeia, mas fechar os cidadãos em casa não é algo que possa banalizar-se como estratégia de prevenção, face aos números presentes. É tratar com leviandade a mais primária das liberdades: sair à rua. Além do mais, é ingénuo: as pessoas, e em especial os jovens, não vão passar um segundo verão fechados em casa, a ver a novela com a família. Ninguém vai. Os especialistas em saúde pública Bernardo Gomes e Ricardo Mexia alertam para o facto de que o recolhimento às 23h é um incentivo às festas caseiras, bem mais perigosas do que os encontros ao ar livre. Não faz sentido.
Ainda ninguém recuperou do último verão morno, deprimente, ansiogénico e a meio gás. Ao fim de um ano e meio, tudo aquilo de que precisamos é de normalidade, com segurança, mas coerência. Precisamos de um verão quente, caloroso e estimulante, de olhos no horizonte, nem que tenhamos de nos testar três vezes ao dia, enquanto a vacinação progride. E, para tal, precisamos de lógica, liderança e clareza.
Declaração de interesses: a faixa etária do autor obriga-o à espera paciente da primeira dose da vacina, que estará para breve. O certificado digital será uma realidade a médio-prazo. Ainda assim, apoia vivamente a abertura de hotéis, restaurantes e salões de espetáculos a todos os que lá possam entrar em segurança.
Boas férias.
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Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.