Em agosto de 1966, a inauguração da Ponte Salazar pela ditadura foi assinalada com uma festa, no Palácio de Queluz, para 1600 convidados nacionais e estrangeiros, a nata da política e da aristocracia europeia. Foi uma noite como poucas para Salazar que, segundo o enviado especial do Diário de Burgos, “não se deitou, com certeza, antes das quatro da madrugada, pois já passava das três quando se retirou para descansar”.
Vinda expressamente de Hollywood, onde cumpria contrato para vários espetáculos, Amália Rodrigues foi a convidada de honra da cerimónia. A fadista deveria cantar ao ar livre, mas um vento frio, pouco típico daquele verão, obrigou a cantora e os ilustres convivas, a recolherem-se nos salões, onde não cabia nem mais um alfinete. Alguns diplomatas tiveram mesmo de sentar-se no chão para poder ouvi-la.
Ia a festa noite dentro quando Amália começou, finalmente, a cantar.
Segundo o repórter espanhol, estava visivelmente nervosa. Não porque a presença de numeroso público lhe fosse estranha, mas por tratar-se da primeira vez que atuava na presença de Salazar. Exausta, por mais de dez vezes ela quis dar por terminada a sua exibição, mas foi ovacionada de tal forma que se sentiu obrigada a manter-se em palco, sem dar descanso à “sua voz mágica, singular, de milagre e exaltação”.
Salazar, do qual se dizia que nunca sorria, estava exultante.
Ou então, teria sido exagero de repórter, pois “não era dos que aplaudiam com menos entusiasmo”.
No final, exibindo rasgados sorrisos, o ditador lá foi cumprimentar Amália, a quem sempre tratara depreciativamente, nas conversas mais recatadas, por “criaturinha”. De resto, o Presidente do Conselho era pouco dado ao fado, género musical pelo qual terá confessado um profundo desprezo, apesar do uso que dele fez para tentar adoçar a imagem do regime.
Nesta como noutras áreas, como se sabe, Salazar revelou-se “duro de ouvido”. Mas naquele momento arrebatador proporcionado por Amália Rodrigues, transfigurou-se, segundo a Imprensa espanhola, num “notívago excecional”. Dessa noite, porém, pouco perduraria: o ditador faleceu quatro anos depois, a ponte ainda se aguentou com o seu nome quase oito anos, mas seria rebatizada “25 de Abril” logo após a revolução. A caminho do centenário do seu nascimento, apenas Amália Rodrigues é hoje fator de união nacional. Passe a expressão, claro.